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127

Bulletin

Transição

126

Bulletin

Vida monástica hoje

125

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“Toda a vida como liturgia”

124

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Capítulos Gerais cistercienses
(OCSO e OCist, Set. e Out. 2022)

123

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Vida monástica e sinodalidade

122

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A gestão da Casa comum

121

Bulletin

Fratelli tutti,
A fraternidade na vida monástica

120

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Formação monástica hoje (Segunda parte)

119

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Formação monástica hoje
(Primeira parte)

Transição

Boletim da AIM • 2024 - No 127

Índice

Editorial

Dom Bernard Lorent Tayart, OSB, novo Presidente da AIM


Perspectivas

• Intervenção no Congresso dos Abades

Dom Jean-Pierre Longeat, osb, que deixa a presidência da AIM


• Intervenção no Congresso dos Abades 

Dom Gregory Polan, osb, que deixa de ser Abade Primaz


• Dom Jeremias Schröder, Abade Primaz

Segundo um artigo de Vatican News


Reflexões

Autoridade e liberdade

Dom Mauro-Giuseppe Lepori, OCist, Abade Geral


Abertura ao mundo 

A situação atual da Índia no cenário internacional

Dom Jean-Pierre Longeat, OSB


Testemunhos

A fé cristã revelada com uma aproximação mística oriental e ocidental por J.Monchanin, H.Le Saux e B. Griffiths

Dom Dorathick Rajan, OSB


Liturgia

“Precisamos de uma formação litúrgica séria e vital”

Ir. Patrick Prétot, OSB


Grandes figuras da vida monástica

• Abade Notker Wolf 

Dom Cyrill Schäfer, OSB


• Adeus a Dom Notker Wolf 

Dom Jeremias Schröder, OSB


• Irmã Lazare de Rodorel de Seilhac 

Irmã M.-Madeleine Caseau e  Irmã Fabienne Hyon, OSB


Notícias

• Viagem à Índia (4-11 de Fevereiro 2024)

Dom J.-P. Longeat, OSB


• Viagem ao Togo (17 -24 Fevereiro 2024)

Dom J.-P. Longeat, OSB


• Relatório do encontro dos superiores monásticos da África Ocidental de língua francesa

Irmã Thérèse Benoît Kaboré, OSB


• Crônica do 21º Capítulo Geral da Congregação de Subiaco-Monte Cassino

Dom Josep-Enric Parellada, OSB

Sommaire

Editorial

No mês de junho passado, o Abade Primaz Gregory Polan, depois de ter consultado as autoridades competentes, nomeou-me Presidente da AIM, substituindo o Padre Jean-Pierre Longeat, que concluiu 11 anos de serviço preciosos para todas as famílias beneditinas. O anúncio oficial de minha nomeação foi feito durante o Congresso dos Abades, que aconteceu em Roma de 10 a 20 de setembro de 2024. O meu ofício começa em 1º de janeiro de 2025. Até essa data continuo como Abade de Maredsous.

A motivação dessa nomeação levou em conta, certamente, o seguinte: sou abade de Maredsous desde 2002, fui responsável pelo priorado de Gihindamuyaga no Ruanda até sua autonomia em 2018; pertenço à Congregação da Anunciação, que é internacional e está presente em vários Continentes; sou copresidente, com Dom Sayaogo, arcebispo de Koupéla em Burkina, da Fundação Internacional “Religions et Sociétés”, que promove na África o pacto da educação do Papa Francisco, e o acolhimento de padres e consagrados africanos na Europa; minha perceção da Igreja é universalista, e me maravilho sempre mais com o modo como o Cristo fala e se expressa por meio de rostos, mãos e corações tão ricos e diferentes.

Quando do Congresso dos Abades, dois temas apareceram no final de nossos debates: os mosteiros presentes em lugares de conflito e o aniversário da fundação da abadia do Monte Cassino, em 529.

Várias abadias e priorados estão situados em zonas de conflito: Terra Santa, Ucrânia, República Democrática do Congo, vários países do Sahel, Venezuela e outras regiões. Nossas comunidades partilham a angústia dos habitantes, e organizam também a acolhida e o cuidado dos refugiados. Como nossos irmãos e irmãs implicados nessas situações de conflito podem expressar a voz de paz tão cara a São Bento? Outros mosteiros estão situados em zonas de conflito com a natureza: a abadia de Valyermo na Califórnia foi ameaçada pelos incêndios a ponto de precisar evacuar toda a comunidade. A questão ambiental permanecerá ainda durante muito tempo.

Dentro de 5 anos a Abadia de Monte Cassino festejará 1500 anos de sua fundação, ou seja, em 2029. Devemos, portanto, preparar-nos, pois esse aniversário é simbólico em três níveis. A abadia fundada por São Bento conheceu a guerra várias vezes até à sua destruição em 1943. Está, portanto, ligada ao problema das abadias que vivem em meio a conflitos. Fundada em 529, a abadia assumiu a missão cultural da Escola Neo-Platônica de Atenas supressa nesse ano. É um símbolo forte da transmissão de valores entre a antiguidade e a cristandade. Nossa época vive essa mesma tensão hoje e convida-nos a refletir se queremos instalar-nos na posição de uma instituição, que está morrendo, e transmite seus valores, ou se queremos “reverdescer” e propor à humanidade o Cristo, que é sempre novo. Finalmente, a atual comunidade de Monte Cassino vive a fragilidade das comunidades pequenas e o risco de acabar. A AIM irá propor pistas para que todas as comunidades vivam esse acontecimento da instalação de São Bento no Monte Cassino, onde escreveu sua Regra.

Começamos também uma reflexão sobre o papel da AIM, da solidariedade que encarna e expressa, tendo em conta a fragilidade de tantas comunidades do Norte e a vitalidade de numerosas comunidades do Sul. O Ano Santo de 2025, consagrado à esperança e à confiança, é a melhor motivação para nos ajudar.


Dom Bernard Lorent Tayart, OSB (Maredsous)

Novo Presidente da AIM

Artigos

Intervenção no Congresso dos Abades (Dom J.-P. Longeat)

1

Perspectivas

Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

Presidente que finaliza seu tempo na AIM


Intervenção no Congresso dos Abades

Texto lido no Congresso dos Abades

por Dom Bernard Lorent Tayart


Depois de 11 anos a serviço da Aliança Inter Mosteiros, como Presidente, estou feliz por passar este belo serviço a um abade competente e empreendedor que vai continuar o esforço de abertura e de partilha, que está ligado a este organismo.

Gostei muito de participar nesta obra, que põe em relação as comunidades beneditinas, cistercienses e trapistas, masculinas e femininas do mundo todo. É uma rede impressionante de quase 1800 comunidades. Não hesitem em ver detalhadamente esta obra, no site da AIM, que foi renovado recentemente (https://www.aimintl.org/).

Num mundo tão instável, como é o nosso, são indispensáveis estruturas transversais que permitem agir em rede. Neste sentido, a AIM encorajou o aparecimento e a vitalidade de associações monásticas regionais em todos os continentes. Isto permite que superiores, formadores e jovens monges e monjas beneficiem-se de laços preciosos de partilha, de formação e de reunião de ideias. É evidente que as Ordens e as Congregações já o fazem desde sempre, mas muitas vezes por falta de renovação, ou por problemas estruturais, ou por hábito, tais informações não chegam. É por isso que a AIM, embora não tenha nenhuma missão hierárquica, pode favorecer, com liberdade, práticas que são muito apreciadas pelas comunidades jovens.

Durante os últimos 60 anos foram feitas muitas fundações (mais ou menos 600). Desde há 10 anos, o ritmo das fundações passou de dez por ano, no mundo, para umas três por ano. Assim os pedidos de ajuda que a AIM recebe são para a formação, mesmo que apareçam outros, como por exemplo para novas construções, ou manutenção, ou atividades lucrativas. É claro que todas as fundações devem se consolidar, para perdurarem com bases sólidas.

A AIM ajuda os mosteiros nos seus projetos de desenvolvimento, bons para si mesmos e para a população local. Criamos uma fundação sob o auxílio da Caritas, a Fundação Benedictus, para acompanhar esses projetos e receber donativos e heranças com deduções fiscais.

Algumas regiões continuam vivas, do ponto de vista monástico, na Ásia, ou na África, enquanto outras começam a ter dificuldades de vocações. Muitos países lutam contra o fenômeno da secularização – e na América Latina com a “concorrência” das comunidades evangélicas, que avançam sobre o catolicismo. Tudo isto cria novos contextos contra os quais os mosteiros devem reagir.

Pode-se constatar em muitos lugares um progresso na ligação com os leigos. Não é uma realidade nova para a vida monástica, que conheceu os conversos, os oblatos, os familiares etc sob diversas formas; hoje esta questão aparece de maneira nova, no prolongamento da Eclesiologia do Vaticano II. Seria um erro grave não levar isto em consideração.

Durante os anos do meu mandato como Presidente, vários documentos foram feitos pela nossa equipe internacional, para ajudar as comunidades: O Espelho Monástico, O Sonho Monástico, e recentemente, as respostas a um questionário sobre o estado da vida monástica hoje. Isto é a resposta que a AIM dá à sua missão de ser um observatório da vida monástica. Para isto a Equipe internacional foi rejuvenescida com uma irmã Indiana, e em breve mais uma de Burkina Faso (obrigada às irmãs Gisela, Mary Placid e Christine, que animaram o secretariado durante o tempo do meu mandato); um grande número de membros do Conselho e da Comissão executiva foram renovados. Deixo ao meu sucessor e a seus colaboradores uma organização bem viva, apta a enfrentar os desafios sempre novos.

Minhas últimas palavras são um imenso agradecimento pela vossa contribuição humana, espiritual e econômica neste empreendimento, e um apelo a fazer mais e melhor no campo da solidariedade. Nossa rede monástica é capaz de grandes coisas se estiver unida. Obrigado por serem solidários uns com os outros e de sempre responder às necessidades das comunidades mais pobres, que muitas vezes são as mais jovens e as mais dinâmicas.

Que Deus seja bendito e em tudo seja glorificado.


Visita à Abadia de Santa Escolástica, Victoria (Argentina) durante a viagem para o encontro do EMLA em 2019.
Visita à Abadia de Santa Escolástica, Victoria (Argentina) durante a viagem para o encontro do EMLA em 2019.

Intervenção no Congresso dos Abades (Dom G. Polan)

2

Perspectivas

Dom Gregory Polan, OSB

Abade Primaz, que termina seu cargo


Intervenção no Congresso dos Abades

10 de setembro 2024


Passaram-se oito anos desde que nos reunimos como Sínodo de Abades Beneditinos. Muitas questões importantes surgiram no nosso mundo, em nossa Igreja e em nossa Ordem Beneditina. Fomos confrontados, e continuamos a sê-lo, com um mundo dividido em diversos níveis, pela guerra, a violência, a morte e por formas de extremismo. Da mesma forma a nossa Igreja, de que somos uma parte vital, creio-o, atravessou períodos de sofrimento e de cura, de humilhação e de honra, de morte e de vida nova. E nossa Igreja nos indicou novas direções para o futuro, no sentido de uma consagração renovada a Cristo, e às verdades do Evangelho. Esta consagração será sempre mais fecunda por meio da nossa capacidade de viver uns com os outros de modo sinodal. Tal como a nossa Igreja, a nossa Ordem beneditina encontrou a dificuldade de enfrentar a realidade de comunidades menores, vocações menos numerosas em muitas partes do mundo, ao mesmo tempo procurando uma sabedoria mais profunda, para tentar novas orientações para a formação em todos os níveis, incluindo a nossa como abades e monges anciãos das nossas comunidades. Os desafios, de que falamos, não serão um convite para renovar a vida beneditina em todos os níveis? Nossas dificuldades não serão um caminho a seguir para enfrentar resolutamente os problemas e elaborar um plano para uma renovação contínua e permanente da nossa Ordem Beneditina, da nossa missão em Cristo, e no convite que nos é dirigido para promover um espírito beneditino vivo, positivo e são? Nosso lema simples e profundo “Ora et Labora” faz-nos ver, de muitos modos, como a Ordem Beneditina pode seguir em frente e ser uma orientação criativa e cheia de esperança na Igreja. São muitos os modos como podemos tocar a nossa Igreja e o nosso mundo por meio desses elementos, que identificaram os beneditinos através dos séculos: a liturgia, a oração, o silêncio, a escuta, a contemplação, o diálogo, o ecumenismo, o equilíbrio, a humildade, a obediência e a hospitalidade.

Eucaristia na igreja abacial de Stanbrook (Inglaterra) durante a reunião do Conselho da AIM que aconteceu na abadia de Ampleforth em 2023. © AIM.
Eucaristia na igreja abacial de Stanbrook (Inglaterra) durante a reunião do Conselho da AIM que aconteceu na abadia de Ampleforth em 2023. © AIM.

Esta manhã, minha intenção não é apresentar uma síntese sobre o mundo beneditino. Isso será o trabalho dos membros do Sínodo dos abades presidentes, que prepararam relatórios e curtas intervenções, que escutaremos nos próximos dias. Gostaria de vos falar, como irmão-abade que assumiu a tarefa de ser abade primaz, vivendo e trabalhando neste lugar único e maravilhoso, aqui, em Santo Anselmo, em Roma. O que posso dizer, e o direi mais ao falar do papel do Abade Primaz, amanhã, é que foi completamente diferente da minha experiência precedente de serviço, como abade da Abadia da Imaculada Conceição, mais conhecida como Abadia Conception no coração dos Estados Unidos. Agradeço sinceramente terem-me chamado para esta responsabilidade atual em Santo Anselmo para representar a Ordem beneditina em tantos lugares diferentes pelo mundo. Ao mesmo tempo posso dizer que isso me pôs à prova, tanto com relação aos dons que Deus me deu, como no desenvolvimento das competência latentes em vista do bem estar dos que vivem em Santo Anselmo, e em todo o tipo de situação nas comunidades monásticas através do mundo. Isto me forçou a ir além das minhas possibilidades, revelou-me minhas fraquezas e me desafiou a crescer de muitos modos. Deu uma nova profundidade ao meu crescimento espiritual e alargou meus horizontes. Pude ver melhor como a nossa Ordem Beneditina, tanto masculina, como feminina, propõe caminhos maravilhosos, para que o nosso serviço aos outros os atraia para o Cristo, por meio do espírito de São Bento.

Durante estes anos como Abade Primaz, e vivendo em Santo Anselmo, desenvolvi uma amizade espiritual com os primeiros fundadores monásticos, os Pais e as Mães do deserto. Esses homens e essas mulheres foram para o deserto na Palestina e no Egito, no século IV, depois do Edito de Constantino. Foram à procura da alma humana, sobretudo de sua alma. A solidão lhes deu o espaço para ruminar finamente, e isso lhes deu a capacidade de responder com simplicidade e profundidade, com eloquência e autoridade aos desafios de seu tempo. Também deixaram uma herança, que nos fala ainda hoje. Embora citem raramente longas passagens da Escritura, eram moldados pelo Espírito divino que permanecia na Palavra divina das Escrituras. A Escritura estava no íntimo de seus ossos e sangue, no seu espírito e coração. Constantino deu ao cristianismo a liberdade de expressão, mas estes monges do deserto procuravam uma liberdade que lhes abriria os olhos para que pudessem ver de modo mais penetrante, e os ouvidos para que escutassem ainda  mais profundamente, e o coração para que acolhessem ainda mais abertamente os caminhos por onde o Espírito Santo os queria orientar numa meditação sempre mais profunda. A fuga para o deserto era para os levar para esse lugar, que seus antepassados na fé, conheciam. Aí Deus falava diretamente ao coração com uma força transformadora, que levava a uma verdadeira conversão do coração. O profeta Oseias os inspirava: “Vou seduzi-la; levá-la ao deserto e aí falarei ao seu coração” (Os 2, 16). À medida que seu número aumentava, novos buscadores de Deus, mais jovens, chegavam, com suas perguntas sobre qual o caminho que leva à vontade de Deus. Suas perguntas e suas respostas revelam-nos a intensidade da sabedoria, que a experiência humana e o sofrimento ensinam.

Há muitas e várias coleções de textos que reúnem as palavras de nossos antepassados do deserto. Uma delas, em particular, foi-me muito útil para destacar os temas chave que voltam várias vezes nos seus escritos. Trata-se da Palavra no Deserto, de Burton-Christie. “Ler a Tradição do Deserto” (Burton-Christie: The Word in the Desert. Scripture and the Quest for Holiness in Early Christian Monasticis, Oxford University Press, 1993).  É quase como ler o livro dos Provérbios. As sentenças curtas e sábias obrigam-nos a parar e a refletir sobre o que o autor quer partilhar conosco. Mas penso que uma leitura superficial destes textos não seja suficiente. Podemos aborrecer-nos e abandonar uma leitura lenta e atenta destas palavras, semelhante ao esforço da lectio divina. Por isso considero 4 pontos chaves: 1) a importância de conhecer-se, auto conhecimento; 2) a importância da paciência; 3) um conhecimento profundo dos salmos, e 4) a paternidade espiritual e o amor fraterno. São palavras de uma antiga tradição monástica que se expressa num estilo muito diferente do nosso, mas que tem alguma coisa a dizer-nos hoje, sobretudo aos membros das nossas comunidades monásticas.


A importância do auto conhecimento

Abba Poemén diz que o texto do salmo 54 (55), 23 é essencial para o monge e para o pai espiritual: “Lança sobre o Senhor teus cuidados, porque ele há de ser teu sustento, e jamais ele irá permitir que o justo para sempre vacile”. Abba Poemén retoma este versículo e muda-o para ler: “Lança-te diante do Senhor; lança-te a ti e a teus cuidados diante de Deus”. Para Poemén, uma atitude de total dependência de Deus nos permitirá vermo-nos tal como somos. Se não temos nada sobre que contar, nada que nos dê um sentimento de segurança, chegaremos ao ponto em que nos vemos como somos, despojados do que nos dá uma falsa ideia de quem somos neste mundo.

É o conhecimento de si que vem o fato de ser completamente vulnerável diante de Deus. A tradição do deserto trata a importância do auto conhecimento como um desafio constante na nossa vida. Mesmo quando pensamos que chegamos ao ponto de nos aceitarmos como somos, o que é único em nós (tanto no positivo, como no negativo), com as fraquezas, descobrimos que esta prática de “lançar sobre o Senhor o que somos e o que nos preocupa,” dura a vida toda. Cada dia, há ocasiões em que a nossa singularidade diante de Deus é obstáculo para uma liberdade interior, que é própria do monge. Contudo a confiança total em Deus dá-nos a força para ver as coisas com a liberdade interior, que nos permite julgar corretamente. Nem sempre é fácil. No entanto, é muito libertador, quando encontramos um problema que exige uma análise profunda e a liberdade interior nos mostra que caminho seguir. Quando há um verdadeiro autoconhecimento, vemos mais claramente como julgar o que é bem e o que é mal, o que é útil ou não. Quando estamos sozinhos diante de Deus, sem a ajuda de ninguém, nem de nenhum pensamento, compreendemos quem somos, e sentimo-nos livres para ver a vida e todas as suas complexidades, com uma visão certa, confiante e reta. Isto não acontece de um dia para o outro. A liberdade interior vem depois de anos passados a olhar a vida através da perspectiva da dependência total de Deus, vivendo ao mesmo tempo com o Espírito Santo como guia.

Na prática: apresenta-se uma situação que tem importância, porque implica a vida de alguém. Quando se tem este autoconhecimento e esta liberdade interior, vê-se claramente em que direção decidir e o que temos de fazer. Não quer dizer que seja fácil, mas sente-se, por causa da liberdade interior, que se recebeu a graça de Deus e a abertura à voz do Espírito Santo. A velha sentença “Seja verdadeiro consigo mesmo” dá testemunho deste autoconhecimento e desta liberdade interior.


Importância da Paciência

Hoje em dia, a vida evolui tão rapidamente, e esperamos resultados imediatos, que muitas vezes sentimo-nos frustrados. Lembro-me que na minha infância, minha mãe dizia: “lembre-se que a paciência é uma virtude”. Hoje compreendi como é essencial para os habitantes do nosso mundo, crescer nesta virtude. Muitas vezes contamos só com os esforços humanos, nossos e dos outros, para fazer as coisas. E, no entanto, nós abades, e pais espirituais de comunidades, sabemos que o trabalho de modelar corações humanos é uma obra que exige oração, reflexão, paciência. É Deus quem modela os corações humanos, e de uma forma muito mais maravilhosa do que tudo o que podemos fazer. E muitas vezes, a grande sabedoria de Deus tem algo de bem mais profundo e de mais importante do que tentamos fazer. Mas é preciso esperar, e nesta espera temos de ter a paciência de esperar que Deus realize, com sua graça, algo bem mais importante do que poderíamos imaginar. Escutemos algo da tradição do deserto.

“Quando o Santo Abba Antão vivia no deserto, sua alma caiu no cansaço e na confusão de pensamentos, e começou a dizer a Deus: Senhor, como gostaria de ser curado, e de que meus pensamentos não me façam sofrer tanto. Que fazer nesta tribulação? Como ser curado? Pouco tempo depois levantou-se e começou a andar na natureza e viu alguém. Pensou que era ele mesmo sentado e trabalhando; depois levantando-se, rezava; depois sentava-se de novo e fazia uma coroa de folhas de palmeira, depois levantava-se de novo para rezar. Ora, na verdade era um anjo do Senhor enviado para o corrigir e avisar. Pouco tempo depois ouviu uma voz que dizia: “Faz isso, e serás curado; sê paciente”. Escutando estas palavras, Antão sentiu uma grande alegria e coragem com esta exortação. E pondo-a em prática, encontrou a libertação que procurava para a sua alma, e que tinha pedido na oração”.

Escolher a paciência tem efeito sobre aquele que é objeto da paciência e sobre nós mesmos. Aquele que é objeto de paciência, descobre que é respeitado, que não havia pressa para resolver um problema. Dando tempo aos pensamentos, aos sentimentos e às reações para se acalmarem, provamos ao outro que o problema não é um jogo de poder para ver quem vai ganhar. Pelo contrário, a paciência evela a nossa vontade de dar tempo ao problema, para ver qual é a boa direção a seguir. Isto pode ser ensinado a um membro da comunidade para sempre. A paciência pode tornar possível um laço de comunhão entre duas pessoas – primeiro em desacordo sobre uma questão, depois chegando a uma visão comum diante da solução.

Assim, escolher a paciência traz-nos muitas bênçãos. Antes de mais nada reconhecemos, no fundo do coração, que se trata de um assunto em que só a graça de Deus pode fazer um milagre. E isto faz-nos instrumento de Deus. E isto deveria dar-nos o sentimento do nosso valor: ser instrumento de Deus. Em segundo lugar, cada vez que colocamos o cuidado de nossos irmãos, irmãs, nas mãos de Deus, e esperamos pacientemente que alguma coisa os leve a seguir o caminho perfeito que Deus preparou para eles. É a segunda bênção. Terceira, descobrimos muitas vezes que nosso plano bem intencionado para ajudar alguém, não é o plano de Deus para esse irmão, ou essa irmã. Ou que nosso plano, objeto de nossa esperança, está ainda se realizando no mistério da graça, no “tempo divino” e não no “tempo humano”. Quarta, a paciência quando é praticada muitas vezes, pacifica a nossa alma, o que faz a diferença no modo como abordamos as pessoas, e no modo como elas vêm nos ver. Um abade mais pacificado, mais tranquilo, mais refletido é sempre alguém de quem é mais fácil a pessoa se aproximar, e abrir seu coração. Quinta, - e é talvez a mais importante, - praticando a paciência imitamos Deus, cuja paciência infinita para cada um de nós, e é uma das bênçãos da existência. Quando pensamos nesses momentos em que Deus esperou que fossemos pacientes, abertos, prontos para escutar sua voz, vemos até que ponto somos abençoados. E agradecemos.


Um profundo conhecimento dos salmos

Os salmos são os nossos companheiros no dia a dia. Encontramo-los 3, 4 ou 5 vezes por dia, conforme a repartição do saltério que seguimos. Algumas comunidades recitam os 150 salmos numa semana; a maior parte reza os 150 em duas semanas; e certas comunidades menores em 3 ou 4 semanas, conforme o número dos monges. Sabemos que estas orações foram traduzidas a partir da versão hebraica, original, para o grego, o latim, o siríaco, o aramaico. A maior parte dos salmos estão nos fragmentos dos Manuscritos do Mar Morto. Esta coleção de orações tem sido recitada e utilizada como fonte de oração desde há mais de 2.500 anos, tanto no culto, como na oração privada. Os eruditos que estudam a tradição do deserto notam que é o Novo Testamento o mais citado. No entanto, quando o Antigo Testamento é citado pelos Pais ou Mães do deserto, é a partir dos salmos. É interessante notar que quando os salmos são citados, muitas vezes um só versículo é repetido várias vezes, enquanto tecem as cestas ou as cordas.

Não pensamos fazer a nossa lectio divina, ou meditar sobre os salmos, e no entanto, é o que está no coração da recitação dos salmos na Liturgia das Horas e na tradição do deserto. A Instrução Geral para a Liturgia das Horas estabelece claramente uma distinção entre a “recitação dos salmos” e a nossa “oração a partir dos salmos”. Nas primeiras edições da Liturgia das Horas, depois do Concílio Vaticano II, foram inseridas breves coletas para acompanhar os salmos. Às vezes eram recitadas, às vezes rezadas em silêncio, às vezes ignoradas. Mas o fato é que a tradição de rezar a partir do texto dos salmos vem da tradição antiga da nossa oração comunitária. A pergunta que nos é feita é esta: “Como o texto dos salmos suscita a oração no nosso coração? Como é que as palavras dos salmos suscitam em nós um fogo que chama Deus na oração do coração?”

Menciono isto porque muitas vezes avançamos na recitação dos salmos sem nenhuma pausa que ajudaria à oração, ou à reflexão. Tal como qualquer outro livro da Bíblia, os salmos são palavra de Deus inspirada. Deus nos fala através dessas palavras e suscita uma resposta da nossa parte. Nestes últimos anos, o estudo dos salmos mostrou que o Salmo 1 é um “salmo da Torah”, um salmo de instrução. Será que este salmo sugere que o conjunto do livro dos salmos é mais do que uma coleção de orações, é sobretudo um guia para uma vida justa e virtuosa, em contraste com a violência e a guerra que invadem o nosso mundo hoje, e nos convida a rezar nesta intenção? Posso partilhar convosco que desde o meu noviciado o saltério foi um companheiro constante de oração e de reflexão. Reúne um grande número de tipos de oração diferentes, que orientam os corações para a luta contra os inimigos, a violência da guerra, e também para um louvor profundo, e compreensão da riqueza que encontramos no saltério, para a vida cotidiana, e nossa reflexão de cada dia sobre os acontecimentos do mundo de hoje. Meus irmãos e minhas irmãs, aprendam a conhecer e a amar o saltério!


Paternidade espiritual e amor fraterno

Lendo a Regra de São Bento, percebe-se que a imagem característica daquele que dirige a comunidade, é a de pai espiritual. “Sua ordem e ensinamento, como o fermento da divina justiça se espalhe na mente de seus discípulos (filhos)” (RB 2,5); o abade deve mostrar a todos o mesmo amor e a mesma disciplina “Seja pois igual a caridade dele para com todos; que uma só disciplina seja proposta a todos conforme os merecimentos de cada um” (RB 2,22). O abade deve sempre lembrar-se do que é e de como é chamado: “Deve sempre lembrar-se o Abade daquilo que é, lembrar-se de como é chamado – pai” (RB 2,30). Há muitas outras referências à paternidade espiritual do abade, e as conheceis bem. No entanto, o título de pai espiritual contem perigos. Se for exercido com força, os monges se sentirão como crianças, pessoas sem responsabilidade, sem iniciativas e sem inteligência. Quando o título é fortemente acentuado, pode criar uma atmosfera de imaturidade, que tem efeitos negativos sobre o crescimento e a vitalidade da comunidade. Mas também quando se tem o sentimento forte de ter à frente da comunidade um pai espiritual, a comunidade é cheia de boa vontade, tem o desejo de que todos sejam felizes e tenham confiança no futuro.

Um dos modos como a paternidade espiritual pode criar um equilíbrio são, está no sentido do amor fraterno, que procede do abade. Escutemos mais uma vez a tradição do deserto.

“Um dia, Abba João subiu a Ceteia com um certo número de irmãos. O monge que os guiava enganou-se no caminho, porque já estava escuro. Alguns irmãos disseram ao Abba João: Que vamos fazer, Pai, nosso irmão enganou-se de caminho e corremos o risco de nos perdermos nesta escuridão e até de morrer nestes caminhos tão acidentados?” Abba João respondeu: “Se lhe dissermos alguma coisa negativa, ele vai sentir-se mal e ficar desanimado. Vou fingir que estou esgotado e que não consigo mais caminhar, e que vou ficar deitado no chão até amanhã” E fez isso. O outro irmão disse. ”Também nós não iremos mais longe, vamos sentarmo-nos a teu lado”. E ficaram sentados até de manhã para não ferir, nem desanimar o irmão”.

O exemplo do abade foi muito forte para seus filhos e seguiram o seu exemplo. Perceberam o amor do pai espiritual e quiseram imitá-lo.

O amor pelos irmãos é muito importante. Cada monge deve saber duas coisas: primeiro que é amado, que se lhe presta atenção, e também que tem um pai espiritual na pessoa do abade da comunidade. A diferença que isso faz na vida da comunidade é tão tangível e distinta que se vê que essa comunidade vive um amor fraterno que decorre da relação com o pai espiritual. A palavra “amor” às vezes não deixa as pessoas à vontade. Alguns usam essa palavra para descrever o amor como ser solidários, mostrar-se animador, cheio de atenção, simpático, gentil, compreensivo, cheio de compaixão. Isso é útil, mas não devemos perder de vista o verdadeiro sentido da palavra amor, pois as Escrituras lembram-nos que “Deus é amor e que quem permanece no amor, permanece em Deus” (1Jo 4, 16b). São Paulo diz na carta aos Romanos: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Sabemos também pelas Escrituras, que o amor que Jesus exigia dos seus discípulos nem sempre era fácil. Às vezes para amar verdadeiramente um dos irmãos, ou irmãs, precisa corrigi-lo, ou impor uma mudança na sua vida, que não será uma coisa fácil; contudo se isso for feito com amor, vai dar certo. Quando um monge sabe que seu abade o ama, e cuida, que está pronto a sacrificar-se por ele, mesmo que o que é pedido seja difícil, para seu bem, ou o bem de outro, se houver amor fraterno, haverá também uma comunhão de espíritos, que mostra que o amor de Deus está presente neste lugar.

Uma coisa muito prática, e que é importante para mim, é a oração pelos irmãos. Não falo aqui de “ver uma necessidade e lembrar-se disso nas suas intenções”, o que é importante. É mais ainda. Primeiro como Abade da Abadia de Conception, e agora como abade de Santo Anselmo, rezei por cada um dos monges, por seu nome, cada dia. E posso dizer que continuo a rezar por cada um dos monges da minha comunidade de origem, Conception. Gosto de acreditar que é por isso que estou tão contente de voltar para o meu mosteiro, depois de 8 anos em Roma. Sim, gostei muito de Roma, encontrei amigos maravilhosos, vivi experiências muito enriquecedoras, gostei muito de visitar as comunidade beneditinas, homens e mulheres, conheci lugares e pessoas que amo profundamente e por quem sou amado. Sei onde está minha casa, e tenho pressa de voltar para lá, para começar um próximo capítulo de minha vida monástica.

Vendo bem estas quatro ideias – crescer no autoconhecimento, dar provas de paciência, estar em casa com os salmos e amar o serviço de abade, ou de abadessa, - são simples, mas característicos não só de São Bento, mas também de Jesus, como se vê nos Evangelhos. Temos a nosso cargo almas humanas – homens e mulheres com grande ideal, mas também personalidades e capacidades frágeis. Quando a nossa relação com cada um dos membros da nossa comunidade se transforma em experiência de comunhão, a comunidade monástica mostra uma vitalidade que só pode vir da graça de Deus que age nela. Quando estamos prontos a percorrer o caminho difícil com o outro, e mesmo que não saibamos qual vai ser a etapa seguinte, estamos realizando a obra da Regra e do Evangelho. Pode parecer simples, mas é autenticamente profundo para a construção do Reino de Deus no seio das nossas comunidades monásticas.

Antes de terminar este discurso quero agradecer a certas pessoas pela ajuda e encorajamento que me deram ao longo destes oito anos. O prior de Santo Anselmo, o padre Mauritius Wilde, de Münsterschwarzach, que viveu comigo 8 anos. Agradeço-lhe por ter posto em ação, generosamente, suas capacidades e talentos de organização em favor da vida do Colégio. Quando não estou em Santo Anselmo, tenho a certeza de que ele cuida dos monges que vivem e estudam aqui. Agradeço igualmente ao vice-prior, padre Fernando Rivas, da abadia de Lujan, na Argentina, por seu generoso serviço tanto no Colégio como no Ateneu. Multiplicou os programas de formação monástica, em várias línguas para os beneditinos e os cistercienses do mundo inteiro. Agradeço ao reitor do Ateneu, padre Bernhard Eckerstorfer da abadia de Kremsmünster, na Áustria, por seu gênio criativo que permitiu que a universidade fosse para a frente e formasse uma comunidade sólida entre professores e alunos. Agradeço ao padre Geraldo Lima y Gonzalez por seu trabalho na Tesouraria e como Procurador de várias de nossas Congregações. P. Geraldo é uma das pessoas mais generosas que põe seus talentos onde é necessário. O padre Rafael Arcanjo, que trabalha no escritório administrativo e supervisiona os benfeitores, que contribuem para que a vida avance. O senhor Fabio Corcione é o supervisor do escritório administrativo. Padre Benoît Allogia da Abadia Saint-Vincent e o irmão Victor Ugbeide, de Ewu, na Nigéria, cuidam dos nossos hóspedes.

O padre Josep Maria Sanroma de Montserrat, que é igualmente secretário do prior e supervisiona com competência a gestão da casa como curator domus. Padre Laurentius Eschelböch, canonista e professor, foi muito generoso em tempo e energia para ajudar a resolver questões canônicas e os problemas que chegam ao Abade Primaz. Meu secretário pessoal na cúria M. Walter Del Gaiso foi extraordinário em todos os seus esforços. Trabalha com cuidado, generosidade e rapidez para fazer um dia inteiro de trabalho, dia após dia. E como bem sabeis “uma boa cozinha torna uma casa feliz e sadia”. Agradeço ao senhor Antonio Giovinazzo e sua equipe de cozinha, do qual estamos nos beneficiando nestes dias. A última palavra é para os abades que permitem que seus monges estejam aqui em Santo Anselmo, homens capazes que certamente fazem falta nas suas comunidades de origem, mas que colocam seus dons aqui nesta comunidade. A vós queridos irmãos abades obrigado, com sincera gratidão. Santo Anselmo vive e respira uma nova vida graças à vossa generosidade e à abnegação dos monges que permitis servir aqui, com coração generoso.

“Nada preferir ao amor de Cristo, que nos conduza juntos para a vida eterna. Amém” (RB 72,11)

Dom Jeremias Schröder, Novo Abade Primaz

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Perspectivas

Segundo um artigo de Vatican News

de 14 de setembro de 2024


Dom Jeremias Schröder,

Novo Abade Primaz da Confederação Beneditina


Dom Jeremias Schröder, 59 anos, foi eleito Abade Primaz da Confederação Beneditina, em 14 de setembro deste ano.

©Sant'Anselmo.
©Sant'Anselmo.

O novo abade primaz era até agora Abade Presidente da Congregação de Sankt-Ottilien, na Baviera. A eleição aconteceu durante o último Congresso dos Abades, em Santo Anselmo, de 9 a 19 de setembro de 2024.

O abade Jeremias, monge há 40 anos, estudou filosofia, teologia e história e arquivística no Ateneu Pontifício Santo Anselmo, e em St Benet’s Hall em Oxford. É muito conhecido na AIM, pois durante muito tempo foi membro do Conselho deste organismo, que aproveitou  bem de seus talentos.

Desde a eleição, Padre Jeremias tem falado sobre a situação dos países vítimas de conflitos:

“O mundo está ardendo neste momento. Temos aqui no Congresso dos superiores monásticos em Santo Anselmo, testemunhos de abades que vêm de países em guerra, Ucrânia e Terra Santa”.

“Ao longo do Congresso tentaremos refletir sobre como podemos viver o nosso lema, que é PAX, paz. Refletiremos para ver como poderemos realmente contribuir para a paz pelo trabalho das nossas comunidades, pelo testemunho, por meio de pontes entre as culturas.”

“O Oriente e o Ocidente separaram-se. Os beneditinos têm por missão, desde sempre, de estar em relação com as Igrejas Orientais. Há aqui, de fato, algo em que poderemos contribuir, e vamos fazê-lo”.


A contribuição dos beneditinos

No dia 19 de abril de 2018, o Papa Francisco, no seu encontro com os monges da Confederação Beneditina, falou sobre sua “consideração e gratidão pela contribuição significativa dos monges beneditinos para a vida da Igreja, em todas as partes do mundo, durante mais de 1.500 anos, vivendo o lema: Ora et Labora et Lege (oração, trabalho e estudo).

“Nesta época em que as pessoas estão tão ocupadas, que não têm mais tempo para escutar a voz de Deus, os vossos mosteiros e conventos devem ser como oásis em que homens e mulheres, de todas as idades, origens, culturas e religiões podem descobrir a beleza do silêncio, e de se redescobrirem a si mesmos, em harmonia com a criação, permitindo que Deus ponha uma ordem justa em suas vidas. O carisma beneditino de acolhimento é muito precioso para a nova evangelização, pois permite acolher o Cristo em cada pessoa que chega, ajudar os que procuram a Deus e receber os dons que Deus quer dar a cada um de nós”.

Autoridade e liberdade

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Reflexões

Dom Mauro-Giuseppe Lepori, OCist

Abade Geral


Autoridade e liberdade

Curso para superiores da Ordem Cisterciense

Roma, 21-26 de setembro de 2023


Propondo um caminho de conversão

Para entender o que significa exercer a responsabilidade na Igreja e no meio monástico sem abusar do poder e da consciência, é mais útil olhar para o tema de forma positiva do que negativa, e entender também que, se houver abusos entre nossos superiores e em nossas comunidades, a solução é mais a conversão do que a correção. Muitas vezes procuramos corrigir comportamentos errôneos sem discernir qual conversão é necessária para que uma pessoa, uma comunidade ou uma situação seja corrigida. Por outro lado, Cristo veio para elevar a humanidade, propondo um caminho de conversão, para segui-lo. É importante entender isso.

Creio que todos nós temos a experiência, praticamente em todos os níveis do compromisso pastoral que nos foi confiado, de que cada tentativa de corrigir sem propor um caminho de conversão permanece estéril, infrutífera e não muda nada, mas, ao contrário, piora a situação. A tentação de tentar retificar sem propor um caminho de conversão contradiz um princípio expresso pelo Papa Francisco na exortação apostólica Evangelii Gaudium, um princípio que considero fundamental: é mais importante iniciar processos de vida do que conquistar áreas de poder. Vamos reler este parágrafo da Evangelii Gaudium:

“Um dos pecados que às vezes encontramos na atividade sociopolítica consiste em dar prioridade aos espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço nos leva a enlouquecer tentando resolver tudo no momento presente, tentando tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. Trata-se de cristalizar processos e fingir que somos donos deles. Dar prioridade ao tempo significa ter o cuidado de iniciar processos em vez de possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e os transforma em elos de uma cadeia cada vez maior, sem caminho de volta. Precisamos dar prioridade a ações que gerem novos dinamismos na sociedade e envolvam outras pessoas e grupos que as desenvolvam, até que frutifiquem como grandes eventos históricos. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenacidade”. (EG 223)

Ao analisar situações de abuso de poder e de consciência que chegam a um ponto de crise extrema, como um abscesso que estoura, não tenho dificuldade em reconhecer, em nível de uma pessoa ou comunidade em particular, o que o Papa descreve aqui para a sociedade como um todo. Muitas vezes acontece que, mesmo nos mosteiros, “na tentativa de se apoderar de todos os espaços de poder e de autoafirmação”, algumas pessoas se recusam a promover processos que pacientemente engendram a vida da comunidade, também na esfera econômica, processos necessários de comunhão, de serviço recíproco, de humilde afirmação do outro e não de si mesmo.

© OCist.
© OCist.

Um perigo já vislumbrado no Evangelho

Mas muito antes do Papa, toda a tradição monástica, a Regra de São Bento e, acima de tudo, o próprio Jesus no Evangelho, nos falaram sobre isso. É interessante notar que, quando Jesus fala sobre autoridade e poder na comunidade cristã, ele imediatamente adverte contra o perigo de abusar deles:

“Estejam preparados, vocês também, pois o Filho do Homem virá na hora em que vocês menos esperam.

Que dizer do servo fiel e sensato a quem o seu senhor confiou o cuidado das pessoas da sua casa, para lhes dar o alimento a seu tempo? Bem-aventurado é aquele servo que o seu senhor, quando vier, encontrará fazendo exatamente isso! Em verdade vos digo: ele o designará sobre todos os seus bens. Mas se aquele servo mau disser a si mesmo: ‘Meu senhor está atrasado’, e começar a bater em seus companheiros, e comer e beber com os bêbados, então, quando seu senhor vier, em um dia em que seu servo não o espera e em uma hora que ele não sabe, ele o rejeitará e o fará compartilhar o destino dos hipócritas; haverá choro e ranger de dentes”. (Mt 24, 44-51)


Nutrir e guiar

O primeiro aspecto que torna dramática qualquer responsabilidade na Igreja, em qualquer nível, é a estrutura escatológica na qual ela é confiada e exigida. Jesus nos pede que a assumamos dentro da vigilância que aguarda a vinda do Filho do Homem. Aqueles que recebem o poder na Igreja não são solicitados a pensar primeiramente no espaço em que esse poder terá de ser exercido, mas no tempo definido pela iminência imprevisível da vinda de Cristo. A autoridade é vivida no “Esteja pronto” para dar as boas-vindas ao Filho do Homem que vem para cumprir o universo e a história.

Esse “Estejam prontos” é uma atenção muito densa que não se contenta em olhar para as nuvens na expectativa de Cristo, como os apóstolos fizeram após a Ascensão (Atos 1, 11).

Na parábola que acabamos de ler, Jesus diz explicitamente para o que deveríamos estar olhando em vez das nuvens: “E o servo fiel e prudente, a quem o senhor confiou o cuidado do povo da sua casa, para lhe dar o alimento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo a quem o seu senhor, quando vier, achar fazendo isso” (Mt 24:45-46). O servo é colocado à frente de seus companheiros “para lhes dar o alimento a seu tempo”.

Essa imagem pode parecer um pouco mundana para nós e, no entanto, até mesmo para o primeiro dos apóstolos, Pedro, ou seja, para a mais alta autoridade da Igreja, o Senhor Ressuscitado não confia nada mais no topo de sua vocação:

“Depois de terem comido, Jesus disse a Simão Pedro: Simão, filho de João, você me ama mais do que estes? Ele respondeu: “Sim, Senhor! Você sabe que eu o amo. Jesus lhe disse: “Seja o pastor dos meus cordeiros. E outra vez lhe perguntou: “Simão, filho de João, você realmente me ama? Ele respondeu: “Sim, Senhor! Você sabe que eu o amo. Jesus lhe disse: “Seja o pastor das minhas ovelhas. Ele lhe perguntou pela terceira vez: “Simão, filho de João, você me ama? Pedro ficou triste porque Jesus lhe perguntou pela terceira vez: “Você me ama? Ele respondeu: “Senhor, tu sabes tudo: tu sabes que eu te amo. Jesus lhe disse: “Seja o pastor das minhas ovelhas. (Jo 21, 15-17)

Jesus acabou de dar algo para os discípulos comerem: “Depois de terem comido, Jesus disse a Simão Pedro...”. Uma refeição de peixes que o próprio Jesus havia preparado, complementada pelos peixes trazidos pelos discípulos, que eles haviam pescado graças ao milagre possibilitado pela presença e pelo pedido do Ressuscitado (cf. Jo 21,1-14). É nesse ambiente eucarístico que Jesus pede a Pedro que seu amor seja igual ao dele, que deu a vida na cruz por Pedro e por todos. É nesse cenário eucarístico que Jesus dá a Pedro e à Igreja a missão de alimentar o rebanho. “Apascentar” significa, acima de tudo, nutrir, alimentar as ovelhas, preocupar-se com o fato de elas encontrarem pasto, um lugar onde possam comer grama verde e beber água fresca. É isso que diz o Salmo 22:

“O Senhor é o meu pastor; nada me faltará.  Ele me faz repousar em verdes pastos. Ele me conduz a águas tranquilas e me reanima; guia-me pelo caminho certo, para honra do seu nome (...) Preparas uma mesa para mim diante dos meus inimigos; derramas perfume sobre a minha cabeça; o meu cálice transborda”.

Para expressar o pedido tríplice de alimentar as ovelhas que o Senhor ressuscitado dirige a Pedro, o texto grego usa dois verbos diferentes: boskō (Jo 21:15, 17) e poimainō (Jo 21:16). O primeiro verbo se refere a “fornecer alimento” para o rebanho, enquanto o segundo parece se referir ao dever mais complexo de “alimentar” o rebanho, ou seja, conduzi-lo, vigiá-lo, protegê-lo, mas sempre fornecendo-lhe água e alimentos frescos. Por que apascentamos um rebanho, por que o guiamos, se não for para conduzi-lo a lugares gramados e águas tranquilas, como canta o salmo?

Cada função pastoral na Igreja, cada autoridade sobre as ovelhas e o rebanho que lhes foi confiada por Cristo, sempre contém o dever fundamental de alimentar os cordeiros, as ovelhas, o rebanho, para que possam viver e crescer, para que sejam frutíferos e se tornem capazes, por sua vez, de alimentar outras ovelhas, de alimentar e guiar outros rebanhos.

O papel essencial do pastor (homem ou mulher) é alimentar as ovelhas para que elas tenham vida. Jesus diz isso repetidas vezes no capítulo 10 do Evangelho de João: “Eu sou o bom pastor, o verdadeiro pastor, que dá a vida pelas ovelhas” (Jo 10:11). Como ele dá a sua vida? Fazendo-se o pão da vida, dando seu Corpo e derramando seu Sangue como alimento e bebida para a vida eterna (cf. Jo 6).


O Pão é a Palavra de Deus

Esse dom sacramental de Cristo não é simplesmente pão ou vinho. É a Palavra de Deus feita carne (Jo 1:14). De fato, como o próprio Jesus lembrou ao diabo para resistir à sua tentação, “Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4:4). No texto que é a fonte dessa citação, no livro de Deuteronômio, Moisés explica que a dádiva do maná, o alimento físico fornecido por Deus para o povo, também deve nos levar a nos alimentarmos da Palavra de Deus:

“Ele os fez pobres e famintos e lhes deu o maná para comer - alimento que nem vocês nem seus pais conheciam - para que soubessem que nem só de pão vive o homem, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (Dt 8:3).

O pão da Palavra de Deus alimenta e guia o povo, e é somente se colocando a serviço da escuta da Palavra de Deus, da Palavra de Deus que é Cristo, do Evangelho, que o pastor pode realmente alimentar as ovelhas, nutri-las, guiá-las e libertá-las.

Por essa razão, quando houve descontentamento na comunidade cristã com relação à distribuição de alimentos materiais, os apóstolos imediatamente perceberam que o mais importante para eles era servir o pão da Palavra: “Não é bom que abandonemos a Palavra de Deus para servir às mesas” (Atos 6:1).

É interessante notar que, posteriormente, mesmo para os diáconos instituídos para esse serviço de mesa, o ministério que seria enfatizado em primeiro lugar não seria esse serviço prático, mas ainda e sempre o da Palavra de Deus, da proclamação, da catequese, do testemunho público. O exemplo de Santo Estêvão mostra claramente que os diáconos também dão a vida pelas ovelhas, sobretudo proclamando a Palavra.

Não posso me aprofundar nesse tema como ele merece. Mas gostaria de enfatizar que, se quisermos entender nossa vocação para exercer a responsabilidade pastoral em nossas comunidades e na Ordem, em todos os níveis, e se quisermos entender como evitar ou reparar os abusos de poder, é importante nos concentrarmos nesse aspecto. Se a autoridade na Igreja é chamada a apascentar as ovelhas, o rebanho, se é chamada a nutrir e guiar os irmãos e irmãs, não devemos nos esquecer de que, para Cristo, esse ministério é essencialmente um serviço da Palavra de Deus, a Palavra que, por si só, nutre verdadeiramente o coração dos homens e os guia pelo caminho certo.

Repeti em várias ocasiões as últimas palavras que o Abade Godefroy d’Acey me disse antes de deixar o pasto da montanha de Hauterive para uma caminhada de bicicleta na montanha durante a qual ele morreu na tarde de 3 de agosto passado. Ele havia se juntado a mim e a um de meus colegas no dia anterior e deveria passar uma semana conosco. Quando ele saiu, eu estava pintando uma aquarela de um pastor na estrada, cercado por uma dúzia de ovelhas. Ele se inclinou sobre meu trabalho para dar uma olhada e eu lhe disse que não estava satisfeito com ele porque havia algo errado com as proporções  entre o pastor e as ovelhas. Ele respondeu - e essas foram praticamente as últimas palavras de sua vida - “Não, está ótimo. Mas as ovelhas deveriam ter orelhas!

Desde então, nunca mais parei de pensar nesse conselho, e entendo que ele se refere ao dever essencial que São Bento atribui ao abade de um mosteiro. Falei sobre isso recentemente em minha homilia por ocasião da bênção abacial da abadessa de Seligenthal:

“São Bento estava perfeitamente consciente de que o primeiro serviço da autoridade é o serviço da Palavra de Deus, a ser oferecida incessantemente aos irmãos e irmãs como a luz dos passos no caminho que nos leva à vida eterna. Parece até que toda a responsabilidade do superior, pela qual ele será julgado na vinda de Cristo, é precisamente a de ensinar os irmãos e as irmãs a ouvir o chamado da Palavra, o chamado do Esposo para a união com Ele.

São Bento escreve no capítulo 2 da Regra: “O abade deve, portanto, ensinar, estabelecer ou ordenar nada que se desvie dos preceitos do Senhor; mas suas ordens e ensinamentos devem ser difundidos nas mentes de seus discípulos, como um fermento da justiça divina. O abade deve se lembrar constantemente de que, no terrível julgamento de Deus, ele terá de prestar contas exatas de duas coisas: seus ensinamentos e a obediência de seus discípulos.” (RB 2, 4-6)

A obediência de seus discípulos, antes de ser um “fazer”, é um “ouvir”, como sugere a conhecida etimologia da palavra obedecer: ob-audire. A obediência é uma escuta intensa que envolve toda a nossa liberdade e toda a nossa capacidade de decidir, e que envolve nosso coração. Sem essa escuta, é difícil seguir Cristo de todo o coração, ou seja, não apenas exteriormente, aparentemente, mas de fato, com todo o nosso ser. Por essa razão, ouvir os discípulos deve ser a principal preocupação daqueles que os guiam”. (Bênção abacial de Madre Christiane, Seligenthal, 19 de agosto de 2023).


O domínio da autoridade é a liberdade

Estar ciente de que São Bento torna o superior do mosteiro responsável, diante do julgamento final de Deus, “por seu ensino e pela obediência [isto é, escuta] de seus discípulos” (RB 2,6) significa estar ciente de que o domínio da autoridade na Igreja, antes de ser a disciplina, o bom funcionamento e a ordem das pessoas e comunidades, é essencialmente a liberdade delas, atraídas por Deus para a amizade com Ele.

Nossa responsabilidade não é primordialmente disciplinar, o que significa que não somos primordialmente responsáveis pelo que nossos irmãos ou irmãs fazem ou deixam de fazer. A principal preocupação de São Bento era, antes, que as ovelhas do rebanho tivessem “ouvidos” para ouvir a voz do Senhor. E essa é a responsabilidade que todo pastor de uma comunidade deve assumir, uma responsabilidade que é exercida acima de tudo por sua própria obediência, por sua própria escuta da Palavra de Deus, da voz do Noivo.

Isso significa que os abusos de poder não são combatidos principalmente por meio de protocolos de comportamento destinados a evitar erros e atitudes ruins. É claro que os protocolos também são necessários, mas eles são como diques que só fazem sentido e servem a um propósito se o rio estiver correndo. Quando o rio está seco, os diques são inúteis.

São Bento também adverte o abade contra possíveis excessos no exercício de sua autoridade: por exemplo, preferir pessoas (RB 2, 1ss.), ou dar “mais cuidado às coisas transitórias, terrenas e sem utilidade” do que às almas (RB 2, 33), ou a tendência ao perfeccionismo que leva a raspar a ferrugem até que o vaso se quebre (RB 64, 12), ou ter ciúmes dos próprios colaboradores (RB 65, 22). Negligenciar os conselhos da comunidade ou dos anciãos também é um abuso no qual o abade pode cair (RB 3, 13); não corrigir os irmãos maus por pusilanimidade também pode ser um abuso grave, um abuso por omissão no exercício da autoridade que nos foi confiada (RB 2, 26). A Regra contém muitos exemplos de como um superior ou uma pessoa responsável por uma área da vida comunitária pode abusar de sua responsabilidade.

Mas a grande e constante preocupação de São Bento é que o abade deve educar a escuta dos irmãos por meio de um ensino de sabedoria permeado pela Palavra de Deus e da Igreja. O ensino que realmente transmite a Palavra de Deus, que realmente transmite Cristo, a Palavra da vida, liberta o coração e a alma das pessoas, porque não as atrai para aquele que ensina, que governa, mas para o Senhor que chama todos a segui-lo, que atrai todos à amizade com ele.

Quando esse dever é negligenciado - e, infelizmente, muitas vezes é negligenciado, pelo que vejo -, então tudo o que o superior pede, tudo o que ele exige, aconselha, decide, permite ou proíbe, tudo pode se tornar abusivo, porque é como se não estivéssemos tratando da liberdade das pessoas. Não se trata tanto da liberdade de escolher por si mesmo, mas da liberdade que Deus atrai para si com amor e como amor. Se não abordarmos essa liberdade, se não abordarmos o coração feito para Deus, acabaremos abordando apenas a vontade de aceitar ou recusar-se a entrar em um padrão.  Em outras palavras, se não transmitirmos a voz do Noivo que chama e atrai os corações para a união com Ele e Nele, inevitavelmente estaremos propondo moral, regras de comportamento e não uma vida, a vida para a qual fomos criados pelo Pai e chamados pelo Filho no dom do Espírito.


Autoridade humilde e pobre

Viver em autoridade dessa forma requer pobreza, requer humildade mais do que habilidade. Acima de tudo, pobreza diante de Deus, a humilde pobreza de ser o primeiro a ouvir, o primeiro a ter fome e sede da Palavra de Deus mais do que de qualquer outra coisa. Os primeiros que, por pobreza, desistem de se satisfazer com outra coisa, com outras satisfações que não são Cristo, o Noivo que está chegando.

O servo infiel da parábola que citei no início é condenado porque, além de maltratar seus companheiros, começa a comer e a se embriagar com o que deveria estar dando a seus irmãos, e não quer mais que seu senhor volte.

“Se aquele servo mau disser a si mesmo: ‘Meu senhor está atrasado’, e começar a bater em seus companheiros, e comer e beber com os bêbados, então, quando seu senhor vier, num dia em que seu servo não o espera e numa hora em que ele não sabe, ele o rejeitará e o fará compartilhar o destino dos hipócritas; haverá choro e ranger de dentes”. (Mt 24, 48-51).

Jesus o chamou de “hipócrita”. No caso dele, a hipocrisia consiste em tirar proveito, em benefício próprio, de uma tarefa que o mestre lhe confiou para o bem dos outros. Ele abusa de seu poder ao buscar seus próprios interesses em vez de exercê-lo no interesse de seus semelhantes e do próprio mestre. Ele come a comida que deveria estar distribuindo. Ele toma para si o que deveria dar se fosse obediente e fiel (cf. Mt 24:45).

Deus nos confia uma autoridade, um poder, para dar alimento aos nossos irmãos e irmãs no momento certo, para transmitir aos outros o alimento de que necessitam de acordo com o tempo e as circunstâncias da vida. Deixar de cumprir esse dever por interesse próprio é um abuso hipócrita da responsabilidade recebida. Autoridade e responsabilidade são carismas e não funções. Deus nos concedeu os talentos e dons necessários para o bem e o crescimento de nossos irmãos e irmãs. É um dom do amor de Cristo, um dom do Bom Pastor e, se não tivermos esse dom, devemos pedi-lo com a certeza de que o receberemos, porque Deus nunca nos nega o que é necessário para o bem dos outros. O Espírito nunca nega aos pastores os dons necessários para o crescimento e o progresso de suas ovelhas.

Quando lembro aos superiores de seu dever de ensinar para que os irmãos e as irmãs possam “ter ouvidos” para ouvir o Senhor e segui-lo com amor e, assim, viver nossa vocação com amor e alegria, eles geralmente me dizem que não são capazes de fazer isso, que se sentem vazios, secos, sem ideias. Essa resposta reflete uma abordagem e uma interpretação errôneas da autoridade. Não somos chamados para transmitir o que vem de nós, nossas ideias, nossas palavras. Somos chamados para transmitir a Palavra de Deus. E isso não é possível sem antes recebermos o que temos para dar. Não é possível dar sem pedir que esse dom seja transmitido. Por isso, muitas vezes acho que é aí que está o verdadeiro problema de nós, superiores, homens e mulheres: não pedimos a Deus a sua Palavra. Em outras palavras, não ouvimos ou, em outras palavras, não sabemos ficar em silêncio.


Dando ouvidos aos pastores

Contei a um Superior Geral o que Dom Godofredo havia me dito sobre os ouvidos das ovelhas. Ele respondeu: “É verdade! Entretanto, não são apenas as ovelhas que precisam de ouvidos, mas também os pastores! Com certeza! De fato, são os pastores em particular que precisam de ouvidos, ouvidos voltados para Deus, para Cristo, mas também para seus irmãos e irmãs; ouvidos atentos aos pobres.

Muitos abusos decorrem justamente do fato de que alguns superiores não ouvem ninguém, ouvem apenas a si mesmos. Não ouvem a Deus na oração, não ouvem humildemente os superiores acima deles, não ouvem a comunidade, não ouvem seus conselheiros etc.

Ainda na parábola em que estivemos meditando, há uma frase que nos ajuda a entender onde começa o abuso de poder por parte daqueles que receberam autoridade. É aí que Jesus diz: “Mas se aquele servo mau disser para si mesmo [literalmente: em seu coração]: Meu senhor demora...” (Mt 24:48). É exatamente aí que começa o abuso: dizendo a nós mesmos o que nos convém, o que parece nos oferecer mais poder, mais segurança, cultivando em nosso coração uma falsa verdade sobre Cristo e, consequentemente, sobre tudo e todos, uma mentira que não corresponde à realidade do Reino de Deus. De fato, o Senhor virá em breve e exporá a hipocrisia de seu servo infiel e o chamará para prestar contas de tudo. Essa frase nos ajuda a entender que, para exercer nossa responsabilidade com a verdade, o mais importante é manter a verdade em nosso coração, em nossos pensamentos e, portanto, estar sempre prontos para a conversão do coração.

É também por isso que os superiores devem se ajudar mutuamente em amizade fraterna. Aqueles que têm autoridade não devem apenas cuidar do rebanho: devem primeiro cuidar de seus próprios corações, do que seus corações dizem a si mesmos. Falamos ao nosso coração de maneira que não ouvimos a voz de Deus, mas sim a voz do tentador, do demônio que nos encanta fazendo-nos acreditar que seu poder mundano é algo maior e mais autêntico do que o poder humilde de Cristo crucificado, de Cristo que lava os pés dos discípulos, de Cristo que está no meio dos outros como aquele que serve, que ama, que se sacrifica, que dá frutos caindo na terra e perdendo a vida por nós.

Esse trabalho de conversão do coração não é um ascetismo íntimo e individual: é a “melodia contínua” de uma jornada sinodal que nos leva a descobrir que caminhar com os outros, ouvir uns aos outros, compartilhar, é o que nos faz crescer em profundidade, o que nos faz progredir e nos purifica internamente, tornando-nos instrumentos de comunhão. Pois Deus nos deu um coração sedento de comunhão, um coração à imagem do Coração Trino de Deus, no qual ninguém pode dizer “eu” sem pensar em “nós”.

Mas isso é algo que só posso mencionar, embora seja fundamental. Graças a Deus, estamos no processo de aprofundá-lo à medida que caminhamos com toda a Igreja ao longo do caminho sinodal destes anos, do qual todos nós precisamos muito.


© AIM.
© AIM.

A situação atual da Índia no cenário internacional

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Abertura ao mundo

Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

Presidente cessante da AIM


A situação atual da Índia no cenário internacional:

um importante protagonista


A Índia, uma nação em ascensão, agora ocupa um lugar central no cenário internacional. Com uma população de mais de 1,4 bilhão de habitantes, ela é hoje o país mais populoso do mundo, ultrapassando a China em 2023. Essa dinâmica demográfica, combinada com o rápido crescimento econômico, confere à Índia uma importância estratégica cada vez maior, tanto regional quanto internacionalmente.

Vijayawada, Andhra Pradesh. © AIM.
Vijayawada, Andhra Pradesh. © AIM.

Uma economia em rápido crescimento

A economia indiana é uma das mais dinâmicas do mundo, registrando taxas de crescimento anuais impressionantes, muitas vezes superiores a 6-7% nos últimos anos. Atualmente, o país é a quinta maior economia do mundo em termos de PIB nominal e, em breve, poderá ultrapassar gigantes como a Alemanha e o Japão para assumir o terceiro lugar. Essa expansão econômica é alimentada por uma classe média crescente, um setor de tecnologia florescente e uma força de trabalho grande e jovem.


Um importante protagonista geopolítico na Ásia

Em termos geopolíticos, a Índia é um importante protagonista no sul da Ásia e em outros lugares. Ela exerce uma influência considerável sobre seus vizinhos imediatos, principalmente o Paquistão, Bangladesh, Nepal e Sri Lanka. A Índia também é um membro importante do BRICS[1], uma aliança de países emergentes que busca remodelar a ordem econômica global.

Diante da ascensão da China ao poder, a Índia fortaleceu suas alianças estratégicas, principalmente com os Estados Unidos, o Japão e a Austrália, como parte do Quad, uma coalizão que visa manter o equilíbrio de poder no Indo-Pacífico. A rivalidade com a China, exacerbada pelas disputas de fronteira no Himalaia, está levando a Índia a modernizar rapidamente suas forças armadas e a fortalecer sua postura diplomática.


Diplomacia focada no multilateralismo

A Índia adotou uma diplomacia multilateral proativa, desempenhando um papel crucial em organizações internacionais como a ONU, onde almeja um assento permanente no Conselho de Segurança. O país também tomou iniciativas no campo das mudanças climáticas, com compromissos ambiciosos para reduzir suas emissões de carbono e promover as energias renováveis, principalmente por meio da Aliança Solar Internacional.

Como presidente do G20 em 2023-2024, a Índia usou essa plataforma para destacar as preocupações dos países em desenvolvimento, enfatizando seu papel de liderança na promoção de uma ordem mundial mais equitativa.


Desafios internos e internacionais

Apesar de seus sucessos, a Índia enfrenta desafios significativos. Internamente, a desigualdade econômica persiste, a pobreza continua sendo um grande problema e as tensões comunitárias ameaçam a coesão social. No cenário internacional, a Índia precisa lidar com rivalidades geopolíticas complexas, principalmente com a China e o Paquistão, enquanto se esforça para manter relações equilibradas com as principais potências do mundo.


Religião na Índia: complexidade e influência  na sociedade contemporânea

A Índia, conhecida por sua diversidade cultural e religiosa, é um país onde a religião desempenha um papel central na vida cotidiana de seu povo. Com uma história rica em tradições religiosas, a Índia é o lar de algumas das maiores religiões do mundo, incluindo o hinduísmo, o islamismo, o cristianismo, o sikhismo, o budismo e o jainismo. Essa pluralidade religiosa, que é tanto uma força quanto um desafio, molda profundamente a sociedade indiana contemporânea.

Hinduísmo: a religião majoritária

O hinduísmo é, de longe, a religião mais praticada na Índia, com cerca de 80% da população reivindicando essa fé, que engloba uma vasta gama de crenças, práticas rituais, filosofias e tradições. Os templos hindus, os festivais religiosos, como Diwali, Holi e Navratri, e as peregrinações, como o Kumbh Mela, são elementos essenciais da cultura indiana.

O sistema de castas, embora oficialmente abolido, continua sendo um aspecto profundamente enraizado de certas práticas sociais hindus. Ele continua a influenciar as relações sociais, o acesso a recursos e as oportunidades econômicas, apesar dos esforços do governo para promover a igualdade.

Islã: uma presença importante

Com cerca de 14% da população, o Islã é a segunda religião mais importante da Índia. Os muçulmanos indianos, que formam uma das maiores comunidades muçulmanas do mundo, têm uma influência significativa na cultura, na política e na economia do país. Mesquitas, escolas islâmicas (madrassas) e as festas religiosas, como o Eid al-Fitr e o Eid al-Adha, fazem parte da vida indiana.

Entretanto, as relações entre as comunidades hindu e muçulmana às vezes são tensas, marcadas por episódios de violência comunitária. As tensões religiosas são frequentemente exacerbadas pela polarização do discurso político, o que representa um desafio para a coesão social no país.

Cristianismo e outras religiões

O cristianismo é praticado por cerca de 2,3% da população, principalmente nos estados de Kerala, Goa e no nordeste da Índia. A maioria dos cristãos na Índia é católica, mas também há comunidades protestantes e ortodoxas. A Igreja na Índia é ativa em educação e saúde, com muitas escolas e hospitais cristãos desempenhando um papel vital no país.

Escola dirigida pelos irmãos beneditinos de Shivpuri.
Escola dirigida pelos irmãos beneditinos de Shivpuri.

O sikhismo, fundado em Punjab no século XV, é praticado por cerca de 2% da população. Os sikhs têm uma forte presença no noroeste da Índia, onde são a maioria no estado de Punjab. Suas contribuições para a agricultura, as forças armadas e a indústria são amplamente reconhecidas.

O budismo e o jainismo, duas religiões originárias da Índia, são praticados por minorias, mas sua influência filosófica e cultural é imensa. O budismo tem um significado histórico especial, tendo sido fundado pelo príncipe Siddhartha Gautama, conhecido como Buda, no norte da Índia.

Desafios e questões religiosas atuais

A diversidade religiosa da Índia, embora seja uma fonte de riqueza cultural, também é fonte de desafios sociais e políticos. Nos últimos anos, o país testemunhou um aumento do nacionalismo hindu, personificado pelo Partido Bharatiya Janata (BJP), que foi acusado de marginalizar as minorias religiosas e promover uma visão da Índia como uma nação hindu. Essa política levou a tensões intercomunitárias, com violência religiosa, linchamentos ligados à proteção de vacas sagradas e debates sobre conversão religiosa.

O governo também foi criticado por seu tratamento de muçulmanos e cristãos em casos como a Lei de Cidadania de 2019 (CAA), que é vista por muitos como discriminatória. Esse clima de tensão religiosa levantou preocupações sobre o secularismo da Índia, um princípio consagrado em sua Constituição.


Conclusão

A religião na Índia é uma força complexa e generalizada que influencia todos os aspectos da vida social, cultural e política. Embora a diversidade religiosa do país seja uma de suas maiores riquezas, ela também é um terreno fértil para tensões e conflitos. A Índia moderna deve buscar continuamente um equilíbrio entre o respeito às suas tradições religiosas e a promoção do secularismo e da harmonia social, a fim de preservar sua unidade e estabilidade.

© AIM.
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A fé cristã revelada por meio de uma abordagem mística oriental e ocidental por J. Monchanin, H. Le Saux e B. Griffiths

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Testemunhos

Dom Dorathick Rajan, Camaldolense

Prior de Shantivanam (Índia)


A fé cristã revelada por meio de uma

abordagem mística oriental e ocidental

por J. Monchanin, H. Le Saux e B. Griffiths


I- A exploração mística da Trindade por Jules Monchanin

Jules Monchanin foi um padre, filósofo e místico francês visionário que dedicou sua vida ao estudo e à interpretação da espiritualidade, em especial ao conceito fascinante e fundamental do cristianismo conhecido como Trindade. A Trindade, na teologia cristã, refere-se à fé em “Deus em três pessoas” - o Pai, o Filho e o Espírito Santo. J. Monchanin explorou esse conceito em profundidade, oferecendo percepções e perspectivas únicas que ressoam com os buscadores da sabedoria mística.

Entendendo a Trindade a partir de uma perspectiva mística - Reconhecendo a natureza trinitária da realidade

J. Monchanin percebeu que o conceito da Trindade não se limitava ao cristianismo, mas se estendia além das fronteiras religiosas. Ele acreditava que a Trindade era uma qualidade inerente à própria estrutura da realidade. Assim como há três pessoas distintas, mas interdependentes, na Trindade, J. Monchanin sustentava que toda a vida consiste em três elementos interdependentes: consciência física, consciência espiritual e consciência transcendental como princípio unificador. De acordo com Monchanin, a essência da Trindade está no princípio da consciência, que permeia todos os aspectos da existência. Ele descreve a consciência como uma força unificadora por meio da qual os aspectos físico, espiritual e transcendental são expressos. Nesse entendimento, a consciência atua como a ponte entre o material e o divino.

A Trindade e a jornada espiritual

Ao explorar a Trindade, J. Monchanin enfatizou a importância da jornada espiritual e a busca pelo autoconhecimento. Ele sugeriu que, assim como a Trindade representa três realidades, os indivíduos têm uma trindade interior - mente, coração e alma - e que, ao harmonizar esses três aspectos, podemos embarcar em uma jornada transformadora rumo ao despertar espiritual e à união com Deus.

A relevância da Trindade de J. Monchanin hoje:

– Unindo ciência e espiritualidade

O entendimento de J. Monchanin sobre a Trindade é uma ponte entre o científico e o espiritual, criando uma visão holística que integra os dois. Enquanto a ciência continua a explorar a interdependência do universo, as ideias de J. Monchanin criam uma estrutura metafísica para reconhecer a unidade de toda a existência.

Abraçando a diversidade e a unidade

Em um mundo marcado por divisões e conflitos, a Trindade de J. Monchanin nos lembra da unidade essencial na diversidade. Ao reconhecer o físico, o espiritual e o transcendente, podemos apreciar a beleza dos sistemas de crenças e encontrar pontos em comum para promover a harmonia e o entendimento.

Despertando a Trindade interior

O conceito de J. Monchanin sobre a trindade dentro de nós - mente, coração e alma - oferece um caminho profundo para o crescimento pessoal e a autodescoberta, nutrindo todos os três aspectos do nosso ser. Podemos embarcar em uma jornada de aprendizado e aprender a lidar com a vida. Podemos embarcar em uma jornada de transformação rumo à integridade, ao equilíbrio e ao propósito em nossas vidas. A pesquisa de Jules Monchanin sobre a Trindade vai além das explicações religiosas tradicionais, oferecendo um entendimento místico que ressoa com aqueles que buscam sabedoria espiritual além da tradição. Ao reconhecermos a Trindade da existência e abraçarmos a unidade da diversidade, podemos embarcar em uma jornada transformadora rumo à autorrealização e a um relacionamento mais profundo com Deus. A Trindade de Monchanin serve como uma luz orientadora, combinando aspectos científicos e espirituais e nos lembrando da profunda interdependência dos aspectos físicos, espirituais e transcendentais. Vamos abraçar essa unidade e embarcar em uma jornada rumo a uma maior conscientização e ao despertar espiritual.


II- Os ensinamentos de Swami Abhishiktananda (Henri Le Saux)

Descobrindo o Advaita Vedanta

Swami Abhishiktananda, também conhecido como Henri Le Saux, foi um monge beneditino francês que dedicou sua vida ao estudo e à prática do Vedanta Advaita. Ele passou vários anos na Índia, mergulhando na tradição hindu e se esforçando para preencher a lacuna entre o cristianismo e o hinduísmo.

Entendendo o Advaita Vedanta

Advaita Vedanta é uma escola de filosofia hindu que enfatiza a unidade da vida e a realidade suprema, também conhecida como Brahman. A palavra “Advaita” é traduzida como “não-dual”. De acordo com o Advaita Vedanta, não há diferença entre a alma individual (Atman) e a alma universal (Brahma), pois elas são uma só por natureza.

A jornada de Swami Abhishiktananda

Swami Abhishiktananda passou muitos anos de sua vida em ashrams indianos e em profundas discussões espirituais com sábios hindus. Com um desejo sincero de reconciliar sua fé cristã com as percepções mais profundas obtidas por meio do Advaita Vedanta, Swami Abhishiktananda embarcou em uma notável jornada de autodescoberta.

A unidade da espiritualidade

Swami Abhishiktananda acreditava firmemente na unidade subjacente a todos os caminhos espirituais. Ele via o Advaita Vedanta como um meio para que os indivíduos transcendessem as fronteiras religiosas e alcançassem a verdade universal que sustenta todas as crenças. De acordo com Swami Abhishiktananda, a essência da espiritualidade não se limita a rituais ou ensinamentos específicos, mas à experiência direta do divino interior.

Advaita Vedanta e Cristianismo

A pesquisa de Swami Abhishiktananda sobre Advaita Vedanta influenciou muito sua compreensão do cristianismo. Ele encontrou semelhanças entre o conceito de Brahman no hinduísmo e a compreensão cristã de Deus. Para Swami Abhishiktananda, a realização da realidade não dual era semelhante ao ideal cristão de união com Deus. Como diz São Paulo, comparando-o ao Corpo de Cristo: cada um de nós é uma das muitas partes de um corpo, e todos pertencemos uns aos outros.

A ilusão da separação

Um dos principais ensinamentos do Advaita Vedanta é o conceito de maya ou ilusão. Swami Abhishiktananda entendeu que, em última análise, nossa percepção da separação divina é uma ilusão causada pelo ego. A liberação espiritual pode ser alcançada transcendendo as limitações do ego e abandonando a ilusão da separação.

O caminho da introspecção

O ponto central dos ensinamentos de Swami Abhishiktananda era a prática da introspecção, conhecida no Vedanta Advaita como Atma Vichara. Esse processo envolve o questionamento da verdadeira natureza do homem e a descoberta do divino subjacente. Ao nos interessarmos por nós mesmos, podemos transcender os movimentos da mente humana e experimentar diretamente a unidade da existência.

Viver no momento presente

Swami Abhishiktananda enfatizou a importância de viver no momento presente como um meio de transcender o tempo e o egoísmo ilusório. Podemos nos imergir completamente no presente e adquirir uma consciência profunda para nos conectarmos com o divino eterno.

Amor e compaixão universais

Swami Abhishiktananda acreditava que a unidade visível com o divino leva naturalmente a uma efusão de amor e compaixão cósmicos. Quando percebemos que nosso próprio ser é divino, torna-se impossível para os outros discriminar ou ter preconceitos. Os ensinamentos da Advaita Vedanta incentivam o indivíduo a ver o divino em todos os seres e a tratá-los com amor e respeito.

A jornada de Swami Abhishiktananda pelo Advaita Vedanta foi uma exploração da profunda relação entre o cristianismo e o hinduísmo. Seus ensinamentos enfatizam a unidade de todos os caminhos espirituais e a universalidade da verdade divina. Ao adotar os ensinamentos do Advaita Vedanta e embarcar na jornada transformadora da autorrealização, podemos experimentar a unidade eterna que reside dentro de cada um de nós.


III- A união única: explorando o casamento entre o Oriente

e o Ocidente - Bede Griffiths

Em um mundo cada vez mais globalizado, o intercâmbio de ideias e culturas está mais difundido do que nunca. Uma área em que esse intercâmbio é particularmente desafiador é a da espiritualidade e das práticas religiosas. Bede Griffiths é uma das pessoas que dedicou sua vida a preencher a lacuna entre as tradições espirituais orientais e ocidentais.

Juventude e jornada espiritual

Bede Griffiths foi profundamente influenciado por suas primeiras raízes na tradição cristã ocidental. Entretanto, sua jornada espiritual deu uma guinada decisiva quando ele se deparou com os ensinamentos místicos do Oriente. Por meio do estudo do hinduísmo e do budismo, B. Griffiths começou a reconhecer os pontos em comum que ligavam essas tradições orientais às suas crenças ocidentais.

A virada para as tradições orientais

O profundo interesse de Bede Griffiths pela espiritualidade oriental o levou a viajar para a Índia na década de 1950, onde acabou optando por se estabelecer em um mosteiro beneditino. Isso deu início a uma jornada que durou a vida inteira, ligando o Ocidente e o Oriente. Abraçando os ensinamentos do hinduísmo e do budismo, B. Griffiths procurou reconciliar essas tradições com suas raízes cristãs.

© AIM.
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Diálogo e cooperação inter-religiosa

Uma das contribuições mais importantes de Bede Griffiths foi seu compromisso inabalável com o diálogo e a cooperação inter-religiosa. Ele acreditava firmemente que, por meio de uma comunicação aberta e respeitosa, pessoas de diferentes religiões poderiam encontrar pontos em comum e promover o entendimento mútuo. B. Griffiths incentivou os médicos de tradições orientais e ocidentais a se reunirem e trocarem ideias significativas.

Espiritualidade universal

A visão mais ampla de Bede Griffiths era a criação de uma espiritualidade universal além das fronteiras religiosas. Ele acreditava firmemente que no centro de toda tradição espiritual, independentemente de seu contexto cultural ou histórico, havia uma verdade compartilhada. Abraçando essa verdade universal, B. Griffiths se propôs a criar uma estrutura espiritual que pudesse ser usada por pessoas de diversas origens.

O papel das práticas contemplativas

As práticas contemplativas desempenharam um papel importante na exploração de Bede Griffiths sobre o casamento entre o Oriente e o Ocidente. Essas práticas, baseadas em meditação, oração etc., permitiram que os indivíduos se conectassem mais intimamente com o divino e superassem as limitações de seu ego. Bede Griffiths recomendou práticas de meditação das tradições orientais e ocidentais de inclusão e reconheceu seu poder transformador na promoção do crescimento espiritual.

Legado e impacto

O trabalho inovador de Bede Griffiths inspira e toca pessoas em todo o mundo. Seu compromisso inabalável com o diálogo inter-religioso e uma visão de espiritualidade universal teve um impacto duradouro na maneira como entendemos e praticamos a espiritualidade hoje. Seus escritos, ensinamentos e trabalho local (The Name of Peace) são um farol de esperança e um lembrete infinito. O poder da conexão e da solidariedade entre o Oriente e o Ocidente, o casamento do Oriente e do Ocidente, conforme previsto por Bede Griffiths, representa uma união harmoniosa de tradições espirituais. A extensa pesquisa de Griffiths sobre as filosofias orientais e seu compromisso com o diálogo inter-religioso transcenderam as diferenças culturais e religiosas e produziram uma espiritualidade universal. Por meio de sua perspectiva única, B. Griffiths deixou uma marca indelével no cenário espiritual, lembrando-nos do poder da unidade e da compreensão em um mundo cada vez mais interconectado. Nesta jornada de consciência, está claro que a união do Oriente e do Ocidente não é apenas possível, mas também benéfica. Ao adotar os ensinamentos e as práticas de ambas as tradições, nós nos abrimos para um mundo de crescimento e transformação espiritual. O legado de Bede Griffiths é um testemunho do poder infinito desse casamento e nos fornece um modelo para um futuro espiritual inclusivo e integrado.


Conclusão

Há quatro pilares “muito” essenciais para nossa vida monástica atual, com uma dimensão universal:

Pilar 1: Silêncio e solidão. Pilar 2: Oração e meditação.

Pilar 3: Simplicidade e pobreza.

Pilar 4: Comunidade e trabalho.

O futuro da vida monástica está ligado aos desafios e oportunidades apresentados por um mundo em rápida transformação. Ao integrar a tecnologia, adotar uma vida sustentável, reimaginar a educação, abrir suas portas aos visitantes e adotar um equilíbrio delicado entre tradição e mudança, as comunidades monásticas podem permanecer relevantes e continuar a cumprir sua missão atemporal como indivíduos que buscam consolo e propósito em um mundo cada vez mais caótico. Como resultado, elas oferecem um santuário de paz, sabedoria e iluminação espiritual.

© AIM.
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“Precisamos de uma formação litúrgica séria e vital”

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Liturgia

Irmão Patrick Prétot, OSB

Institut Supérieur de Liturgie Institut Catholique de Paris

Abadia de la Pierre qui Vire (França)

 

“Precisamos de uma formação litúrgica séria e vital”

 

A carta Desiderio desideravi do Papa Francisco, publicada em Roma em 29 de junho de 2022, é um ato importante deste pontificado em termos de liturgia[1]. É certo que ela parece tratar de uma questão específica, a saber, “a formação litúrgica do Povo de Deus”, mas, na realidade, ela aborda a questão litúrgica hoje, pois é apresentada pouco mais de 50 anos após a reforma geral solicitada pela Constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II (4 de dezembro de 1963). Sem pretender oferecer um comentário detalhado sobre o texto, o objetivo aqui é introduzir sua leitura, destacando algumas das questões em jogo nesse documento magisterial. Em um cenário de mudanças aceleradas, Desiderio desideravi desvia o foco dos debates ruins em que a Igreja parece ter ficado presa desde a reforma solicitada pelo Concílio Vaticano II[2]. O papa reposiciona a reflexão, por um lado, sobre a formação e, por outro, sobre uma dupla questão à qual ele atribui grande importância.

Por um lado, ele está questionando a capacidade do homem moderno de entrar em um processo simbólico e, portanto, no universo relacional no qual a liturgia cristã se baseia. A publicação, em 17 de julho de 2024, de uma carta “sobre o papel da literatura na formação” é um documento no qual a preocupação do Papa Francisco com a “capacidade simbólica” do homem contemporâneo[3] é expressa com força especial. Na liturgia, a questão é se, e se sim, como a vida litúrgica de hoje pode oferecer um caminho de encontro com Deus.

Por outro lado, o Papa denuncia incansavelmente duas tendências profundamente arraigadas que ele descreve como “o veneno do mundanismo espiritual”: o “neopelagianismo”, que tende a enfatizar o trabalho do homem com o risco de transformar a liturgia em uma performance ritual, e o “neognosticismo”, que tende a reduzir a liturgia a um conhecimento destinado a uma elite. Nesse ponto, o Papa traz para a Igreja os reflexos do mundo latino-americano, que leva muito a sério os recursos da piedade popular. O treinamento litúrgico que Francisco pretende promover não tem como objetivo principal criar “conhecedores”, ou mesmo especialistas em liturgia, mas prestar realmente atenção ao que a liturgia nos dá a experimentar. Poderíamos dizer que é uma questão de formar o ser interior por meio da celebração  e na celebração.


A liturgia: uma preocupação constante do magistério da Igreja

A partir do século XVII, mas especialmente no século XIX e início do século XX, a ciência histórica entrou no campo da liturgia.  Essa abordagem histórica demonstrou amplamente que as práticas aceitas têm uma história e que as instituições mudaram muito, às vezes radicalmente, ao longo do tempo. Com base nisso, não podemos mais falar, de um ponto de vista histórico, de uma continuidade formal entre a Última Ceia de Jesus e a missa, seja a de São Paulo VI ou a de São Pio V. Essa consciência, que hoje muitas vezes não existe, nos levou a reconsiderar a relevância dos legados que herdamos.  E foi nessa linha que, entre 1951 e 1956, o Papa Pio XII decidiu por uma grande reforma da Semana Santa, um passo decisivo para a renovação litúrgica. Mas é claro que a dinâmica de aggiornamento do Vaticano II levaria a um grande projeto de reforma que seria realizado nos anos seguintes ao Concílio. Com um conhecimento muito amplo das fontes, esse trabalho deveria seguir um princípio duplo: um “reabastecimento da tradição” por meio de um retorno a práticas antigas esquecidas (por exemplo, a oração dos fiéis) e uma abertura para inovações de acordo com as necessidades de nosso tempo (por exemplo, o uso de línguas vernáculas). Desse ponto de vista, muitas das “inovações” do Missal de 1970 foram inspiradas e justificadas por práticas antigas, muitas vezes da antiguidade cristã. Esse projeto se beneficiou da atenção constante e vigilante, do apoio e até mesmo do compromisso direto de Paulo VI. Em uma catequese em 19 de novembro de 1969, pouco antes da implementação do novo Missal Romano, ele declarou que a reforma era “um ato de obediência” (ao Concílio) e “um passo adiante em sua autêntica tradição”.[4]

Apesar dessas afirmações, no entanto, constatamos uma rejeição dessa reforma, essencialmente realizada sob a autoridade do Papa Paulo VI. O debate foi relançado várias vezes, sem que se vislumbrasse um resultado possível. Está além do escopo deste artigo reconstituir a complexa história da rejeição do aggiornamento litúrgico desde o Vaticano II até o motu proprio Traditionis custodes (16 de julho de 2021), que pôs fim ao regime introduzido por Bento XVI (motu proprio Summorum pontificum, 7 de julho de 2007).

Esse último procurou resolver a oposição à reforma introduzindo um regime duplo para a liturgia: a “forma ordinária”, de acordo com os livros litúrgicos revisados, e a “forma extraordinária”, de acordo com os livros litúrgicos anteriores à reforma.

As aproximações de linguagem nessa área complexa foram, e ainda são, muito frequentes, com o risco de multiplicar os debates irrefletidos. Falar do “Rito Tridentino” ou do “Rito Tradicional” é contrário ao pensamento de Bento XVI. Ao mesmo tempo em que autorizou amplamente o uso de livros litúrgicos anteriores à reforma, Bento XVI especificou que não é “apropriado” falar de “dois ritos”. Além disso, ele afirmou que “o Missal publicado por Paulo VI (...) é e obviamente continua sendo a forma normal - a forma ordinária - da liturgia eucarística”, pedindo que “em princípio, a celebração de acordo com os novos livros não pode ser excluída”.

Depois de consultar os bispos, Francisco pôs fim a esse regime declarando: “Os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano” (Traditionis custodes, art. 1). Em Desiderio desideravi, como guardião da unidade da Igreja, ele explica mais uma vez sua posição, pedindo que uma compreensão “superficial” e “redutora” do valor da liturgia ou “sua instrumentalização a serviço de uma visão ideológica” não desfigure a celebração da liturgia, que é o “sinal da unidade” e o “vínculo da caridade” (nº 16). Ele resume seu convite a todos em uma frase: “A não aceitação da reforma, bem como uma compreensão superficial dela, nos distrai da tarefa de encontrar respostas para a pergunta que repito: como podemos crescer em nossa capacidade de viver plenamente a ação litúrgica? (nº 31)[5]. E, para remediar esses obstáculos, ele propõe dois caminhos, que podemos esperar que contribuam para superar a ferida da Igreja em relação à sua vida litúrgica.


Prestar atenção à liturgia

A ideia é “permitir que nos surpreendamos com o que está acontecendo diante de nossos olhos na celebração” (nº 31). Em um mundo que constantemente captura os sentidos de várias maneiras, a atenção à ação litúrgica tornou-se frágil. Os muitos debates e até mesmo conflitos sobre hinos ou gestos são sintomáticos dessa dificuldade de entrar profundamente na liturgia como um lugar de encontro com o mistério de um Deus que vem ao homem para salvá-lo.

Essa exigência de atenção se baseia na novidade permanente desse encontro. Na liturgia, a repetição de palavras e gestos serve a essa novidade. Para aqueles que estão dispostos a entrar nessa aparente repetição, por exemplo, na oração dos salmos, a novidade vem na forma de uma prontidão para acolher o grande diálogo entre Deus e a humanidade. Pois é o Espírito de Deus que faz novas todas as coisas.


Maravilhar-se com a beleza do Mistério Pascal

O Papa Francisco desenvolve esse caminho de atenção convidando-nos a nos maravilharmos como “uma parte essencial do ato litúrgico” e como “uma experiência do poder do símbolo” (nº 26). Entretanto, essa não é uma abordagem estética: a beleza não combina necessariamente com a riqueza ou a profusão de meios, uma tentação frequente que corre o risco de alinhar as celebrações com as modas de uma sociedade do espetáculo. Nessa linha, o Papa denuncia os dois excessos que impedem que a beleza na liturgia alcance a verdade. Por um lado, ter prazer “apenas em cuidar da formalidade externa de um rito” ou contentar-se “com a observância escrupulosa das rubricas”. Por outro lado, há “a atitude oposta, que confunde simplicidade com banalidade desleixada, essencialidade com superficialidade ignorante, ou a concretude da ação ritual com um exasperante funcionalismo prático” (n° 22).

Na realidade, trata-se de maravilhar-se com a beleza da Encarnação e do Mistério Pascal que salva toda a humanidade, a beleza do dom de Deus, porque “os esforços para melhorar a qualidade da celebração, embora louváveis, não são suficientes, nem o apelo a uma maior interioridade”. Ainda precisamos acolher a revelação do mistério cristão: “O encontro com Deus não é fruto de uma busca interior individual, mas um acontecimento dado” (nº 24).


Uma formação “séria”

O segundo caminho é o da formação: “Temos necessidade de uma formação litúrgica séria e vital” (nº 31). E nesta frase, é preciso sublinhar os adjetivos que qualificam este projeto de formação.

Para colocar-se opostamente os slogans e convicções infundadas, sério se opõe ao diletantismo tão frequente em uma sociedade do Zap. A formação litúrgica requer um esforço contínuo apoiado em trabalhos de qualidade. Assim, só podemos enfatizar a importância de publicações e de periódicos sabendo que as opções nesse campo são diversas e, algumas, opostas. Diante do que se apresenta como um verdadeiro emaranhado de opiniões, a formação em liturgia requer a aquisição de algumas bússolas para não permanecer na confusão e poder entrar numa escuta comunitária, pois não podemos discernir sozinhos.


Um formação “vital”

Para o adjetivo “vital”, Francisco nos traz uma marca específica, que ele desenvolveu na carta apostólica Gaudete et exsultate (19 de março de 2018), que propõe um verdadeiro tratado de vida espiritual para o nosso tempo. Ele também nos convida a não nos fecharmos na busca de uma atuação ritual, esquecendo a missão e a vida de caridade. Os pilares da vida cristã não podem ser separados: martyria (proclamar o Evangelho e dar testemunho), diakonia (serviço, especialmente aos pobres e aos pequenos) e leiturgeia (o culto prestado a Deus). Contra a tentação de transformar a liturgia em um meio de evasão, ele nos recorda que a liturgia oferece um caminho, o da vida do Espírito, sem o qual o testemunho se perde na propaganda e a caridade no ativismo.

Falar de “formação vital” é, portanto, vislumbrar uma experiência espiritual. Dizer que somos formados “pela liturgia” significa que esta não é um serviço que avaliamos com critérios subjetivos (o ambiente, a “beleza”, os cantos, etc.), mas um caminho de conversão. Enquanto distingue a formação “para” a liturgia (para conhecê-la) e a formação “pela” liturgia (deixar-se formar por ela), ele deixa claro que, se a formação “pela” liturgia é “funcional”, a formação “para” a liturgia é a seus olhos “essencial” (nº 34). A prioridade dada a uma pesquisa de ambiente e de uma preocupação para “fazer algo” conduz ao esquecimento deste aspecto ainda essencial: nós somos “feitos cristãos” pela própria liturgia.

Esta realidade se manifesta, antes de tudo, nos sacramentos da Iniciação Cristã seguramente. Mas também dizendo juntos “Pai Nosso”, que os fiéis se unem ao Filho de Deus que reza ao Pai do céu. É dizendo juntos “Eu creio”, que os fiéis se tornam confessores da fé diante do mundo e por ele. É aclamando “mistério da fé” durante a anamnese que os fiéis confessam a glória do Ressuscitado. É ainda respondendo “Amém” durante a Comunhão que eles ratificam sua vocação de membros do Corpo de Cristo.


Conclusão

Finalmente, o convite a conjugar inseparavelmente formação “para” e formação “pela” liturgia manifesta quanto a atenção (e não o julgamento) deveria ser a atitude primordial. Mas, trata-se de tornar-se atento a um mistério invisível que se percebe através de sinais visíveis. Num mundo de hipercomunicação (onde, no entanto, a relação verdadeira é tão frágil e mesmo tão difícil), surge o convite a manter-se longe da vontade de manipular a liturgia, para transmitir uma mensagem, suscitar uma adesão ou cultivar convicções. Porque se trata, acima de tudo, de comungar desta vida divina que nos é comunicada pela celebração dos mistérios.



[1] PAPA FRANCISCO, Carta Apostólica Desiderio Desideravi, 29 de junho de 2022; utilizamos a versão online disponível no site do Vaticano.


[2] Cf. Pio X, Motu proprio Abhinc duos annos, 23 de outubro de 1913, que exprimia esta necessidade não hesitando em falar da necessidade de “limpar” a “sujidade” que se tinha instalado no edifício litúrgico herdado do passado.


[3] PAPA FRANCISCO, Carta sobre o papel da literatura na formação, 17 de julho de 2024.


[4] Cf. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Vicesimus quintus annus para o 25º aniversário da Constituição Conciliar sobre a Liturgia, 4 de dezembro de 1988, nº 4, que elogia o fruto de um “trabalho considerável e desinteressado de um grande número de peritos e pastores de todas as partes do mundo” e, sobretudo, de um funcionamento “estritamente tradicional”.


[5] Desiderio desideravi é útil para todos. A falta de formação continua a ser flagrante, mesmo entre aqueles que se referem à reforma do Vaticano II. Os princípios aqui expostos permitem abordar em profundidade a grande questão litúrgica, como fator de unidade e não de divisão (Nota do Editor).

Abade Notker Wolf (1940-2024)

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Grandes figuras da vida monástica

Dom Cyrill Schäfer, OSB

Abadia de Sankt Ottilien (Alemanha)

 

Abade Notker Wolf, OSB,

missionário beneditino de Sankt Ottilien

(21 de junho de 1940 - 2 de abril de 2024)

 

O abade Notker Wolf morreu inesperadamente na noite de 2 de abril no hotel do aeroporto de Frankfurt am Main. Ele se encontrava na Itália desde a segunda-feira de Páscoa, em peregrinação pelos caminhos de São Bento. Começando a não se sentir bem, tomou um vôo de regresso a Sankt Ottilien. Durante a viagem, na noite que teve de passar em Frankfurt, morreu de ataque cardíaco no seu quarto. Algumas semanas antes, o seu companheiro de vida e prior de longa data, o Padre Claudius Bals, o havia precedido na eternidade.

Dom Notker descreveu a sua própria vida, em alguns detalhes, em várias publicações, incluindo uma biografia publicada em 2010. A sua família era originária da região do Mosela e mudou-se para o Allgäu durante os anos da guerra, para Grönenbach (distrito de Unterallgäu, diocese de Augsburgo), onde Werner nasceu a 21 de junho de 1940, o primeiro filho de Josef Wolf, alfaiate e operário de fábrica, e da sua mulher Katharina, nascida Haas. Teve uma infância marcada por privações e falta de comida, o que fez com que o rapaz sofresse de atraso de crescimento e problemas gástricos durante toda a sua vida. Só conheceu o pai após o seu regresso do cativeiro britânico, em 1947. Em 1952, nasceu sua irmã. Cursou a escola primária de Grönenbach, seguindo em 1951 para a escola secundária de Memmingen. O jovem frágil, mas bem talentoso, não teve dificuldade no aprendizado, sobretudo música e línguas. A leitura da revista do mosteiro de Sankt Ottilien “Missionsblätter” (Folhas de Missão), que descobriu por acaso, marcou uma virada em sua vida. As descrições das vidas de missionários que se sacrificavam em países exóticos o cativaram e ele conseguiu convencer os pais a inscrevê-lo no seminário missionário de Sankt Ottilien em 1955.

A comunidade do seminário, com a sua camaradagem natural e a sua educação humanista alargada, incluindo o teatro e a música na orquestra da escola, causou uma forte impressão no jovem rapaz. Após a obtenção do bacharelato, no verão de 1961, faz uma peregrinação para La Salette e Ars com um colega seminarista, antes de entrar no noviciado do mosteiro. Foi nessa ocasião que lhe foi dado o nome do estudioso monge e poeta de St. Gallen, Notker der Stammler, cuja atividade musical atraiu o jovem candidato. Os passos monásticos seguintes foram a profissão temporária (17 de setembro de 1962) e os votos solenes (10 de outubro de 1965). A partir do semestre de inverno de 1962, estuda filosofia em Sant’Anselmo. Os seus estudos em Roma coincidiram com a abertura do Concílio Vaticano II, que, segundo ele, o influenciou profundamente em termos de liturgia, compreensão da Igreja e missão. A partir do semestre de inverno de 1965, partiu para estudar teologia em Munique, onde já estava fazendo numerosos cursos de filosofia e de várias disciplinas científicas, em preparação para o doutorado. A sua ordenação sacerdotal aconteceu em 1º de setembro de 1968, como era costume na época, quando ainda era estudante de teologia. Depois de ter se licenciado na Universidade de Munique, em 1970, o Padre Notker iniciou o doutorado em filosofia da natureza em Sant’Anselmo (sob a orientação do Professor Zeno Bucher, OSB, a quem estava destinado a suceder), lecionando neste domínio, bem como teoria da ciência e questões interdisciplinares. Durante estes anos, mergulhou também profundamente na cidade de Roma, de modo que falava bem italiano, que lhe era muito familiar, com um suave sotaque romano. Obteve o doutorado sobre a “visão cíclica do mundo da Stoa” em 1974 e dirigiu também a Schola de Sant’Anselmo. Mais tarde, usaria o titulo da gravação da Schola, “Iubilate Deo”, como seu lema abacial.

Mas o ponto de virada na sua vida ocorreu no final do verão de 1977. Numa cadeia de acontecimentos, o Abade Primaz Rembert Weakland foi surpreendentemente nomeado Arcebispo de Milwaukee no Congresso dos Abades, e o Arquiabade de Sankt Ottilien, Viktor Josef Dammertz, foi eleito seu sucessor. A 10 de outubro de 1977, o convento da Arquiabadia elegeu o Professor Notker Wolf, de Roma, como seu novo Arquiabade. Por sorte, o novo Abade Primaz Viktor acompanhou o seu sucessor ao Capítulo Geral de 1977, cujos relatórios e conhecimentos ajudaram muito o novo superior do mosteiro a familiarizar-se com o campo ainda completamente desconhecido da liderança congregacional. Outro fato importante foi o novo superior ter sido dispensado da gestão da casa, graças ao muito competente Prior Paulus Hörger (1910-1996). Na altura, a arquiabadia contava legalmente com cerca de 380 monges (num total de cerca de 1100 missionários beneditinos), dos quais cerca da metade se encontrava em missão no estrangeiro. O estilo do novo abade do mosteiro foi descrito como “rapidíssimo”, mas isso não foi sentido como um problema devido à sua grande inteligência, a sua disponibilidade generosa e confiante para delegar, num estilo muito confraternal e ao seu sentido de humor filantrópico. Graças a uma grande desvinculação das tarefas internas do mosteiro, o arquiabade pôde efetuar várias viagens anuais ao estrangeiro, às casas da Congregação. Tendo um estilo dinâmico, realizou muitas mudanças, permitindo à Congregação evoluir. Entre elas, a passagem da missão clássica europeia para as igrejas locais, a conversão de mosteiros missionários para assumirem tarefas diocesanas específicas, a mudança de comunidades majoritariamente europeias para comunidades locais, o acompanhamento ou integração de comunidades locais como na Índia ou no Togo, novas fundações como nas Filipinas com uma abordagem mais monástica, e a abertura ao diálogo inter-religioso. Era este último que estava mais próximo do coração do Arquiabade Notker, de tal forma que ele encorajou intercâmbios entre mosteiros cristãos e budistas, que continuam até hoje, e visitou várias vezes mosteiros budistas no Japão.

Dom Notker Wolf na assembleia da ISBF (Índia) em 2015. © AIM.
Dom Notker Wolf na assembleia da ISBF (Índia) em 2015. © AIM.

O intercâmbio com a Igreja chinesa tornou-se uma preocupação especial para Dom Notker. Depois da expulsão dos missionários europeus pelo governo chinês em 1952, o contato com as paróquias estabelecidas nesse país foi cortado. Após uma abertura inicial tímida da China, o Dom Notker empreendeu uma viagem à antiga diocese de Yenki/Yenji, no nordeste da China, em 1985. Os cristãos remanescentes, que tinham muitas vezes experimentado destinos incertos, foram alcançados por caminhos aventureiros. O abade lançou então uma série de projetos de ajuda aos antigos territórios de missão (hoje sobretudo a diocese de Jilin), incluindo a construção de um novo seminário, um hospital, igrejas, escolas e jardins de infância, projetos sociais, a formação contínua de padres e religiosos locais e muito mais. Acima de tudo, os contatos humanos foram reforçados por numerosos convites à Alemanha e visitas recíprocas à China. Várias grandes delegações de bispos chineses indo à Alemanha contribuíram particularmente para reforçar a confiança.

Em Santk Ottilien, Dom Notker acompanhou uma série de processos de renovação, como o encerramento de anexos e de empreendimentos que já não eram viáveis, a integração crescente das forças leigas, a renovação litúrgica e a grande renovação da igreja, sempre com a participação plena da comunidade, de modo a que houvesse poucos conflitos. Mas, acima de tudo, introduziu mudanças de estilo que transformaram um modo de governar bastante hierárquico em formas de relações horizontais. Não se esquivou ao contato e também se apresentou como “abade roqueiro” com uma guitarra elétrica nas atuações do antigo grupo de estudantes ‘Feedback’. Mas era igualmente adepto do repertório clássico, que interpretou durante décadas com flauta transversal no festival beneditino “Serenata no Lago”.

O Conselho da AIM em 2015. © AIM.
O Conselho da AIM em 2015. © AIM.

No Congresso dos Abades, em Roma, de 1996, o Dom Notker já tinha sido abordado para se tornar Abade Primaz, mas rejeitou a oferta, invocando os projetos muito complexos em curso na China. Mas quando a questão de um novo Abade Primaz surgiu novamente em 2000, o Dom Notker não pôde continuar recusando e disponibilizou-se a 7 de setembro. Na qualidade de Abade Primaz, continuou com suas atividades habituais de viagem, que fazia com todo o gosto. Durante as suas visitas aos mosteiros, para além do seu conhecimento das línguas (era fluente em inglês, italiano e francês e falava várias outras línguas), beneficiou-se sobretudo da sua capacidade de se adaptar a cada situação e a cada pessoa, demonstrando uma presença forte e um empenho genuíno. Em Sant’Anselmo, um grande programa de renovação e modernização estava na ordem do dia, incluindo a renovação das instalações, novas janelas, um sistema eficiente de internet, transformações no colégio e muito mais, o que exigiu muita consulta e trabalho em comissões dentro do colégio e com a Ordem, o Vaticano e as autoridades romanas. A 13 de outubro de 2012, no Congresso dos Abades, foi confirmado no cargo para um novo mandato de quatro anos. A 9 de setembro de 2016, no próximo Capítulo Geral, pôde entregar o seu cargo ao seu sucessor, o norte americano Gregory Polan.

Antes do regresso ao seu mosteiro, a Confederação Beneditina ofereceu-lhe uma viagem à volta do mundo, para que o abade, grande viajante, pudesse visitar, com um pouco mais de tempo livre, os lugares que, na maior parte das vezes, só tinha tocado a um ritmo acelerado. Regressa então a Sankt Ottilien, a que sempre se referiu com grande convicção como “a minha casa”. Embora estivesse agora livre de todas as obrigações, continuava a empenhar-se no mosteiro, planejando o futuro, recolhendo donativos, fazendo aparições públicas e encontrando sempre uma palavra certa nas discussões comunitárias. Mas, acima de tudo, assumiu um volume de trabalho impressionante e, por vezes, inacreditável, com palestras, emissões de rádio, aparições na televisão, retiros, exercícios espirituais, missas festivas e eventos de todo o gênero, que o levaram pela Alemanha e ao mundo. Graças a uma disciplina férrea e a um elevado nível de disponibilidade para com os outros, conseguiu levar a cabo este programa com êxito, mesmo que a sua saúde tenha sido por vezes severamente posta à prova. Os encontros com os outros o inspiravam e encantavam-no, pelo qual o seu vasto conhecimento foi sempre um elixir de vida para ele. As suas grandes expectativas em relação a si próprio foram formuladas nos seus escritos sociais e espirituais, nos quais é concedida ou exigida ao indivíduo uma grande liberdade, mas também uma grande responsabilidade. A oração das horas, a que assistia de boa vontade e fielmente, e a vida comunitária, que claramente apreciava, permaneceram sempre para ele um lugar de descanso.

As suas atividades literárias merecem uma menção especial. Durante décadas, limitou-se a ensaios acadêmicos ocasionais e a tratados espirituais, mas isto mudou após a sua eleição como Abade Primaz, com o seu programa obrigatório um pouco menos denso. Em 2005, a editora Rowohlt, de Hamburgo, convidou-o a produzir um livro, que deu origem a “Worauf warten wir” (“De que estamos à espera?”), publicado no ano seguinte, apresentando teses provocadoras sobre a situação social na Alemanha e permitindo ao Abade Primaz Notker tornar-se um autor best-seller. Desde então, Dom Notker tem publicado vários títulos por ano ou escrito textos inspiradores para revistas, alguns dos quais alcançaram grandes tiragens e lhe granjearam uma grande simpatia por parte do público, porque transmitia a sua rica experiência de vida e de fé de uma forma fácil de compreender e numa linguagem simples.

Entre as cerca de trinta distinções e prêmios recebidos por Dom Notker, destacam-se a Ordem de Mérito da Baviera (1986), a Grã-Cruz de Mérito da República Federal da Alemanha (2007) e a Medalha de Mérito Social do Estado da Baviera (2021), bem como dois doutoramentos honoris causa e várias cidadanias honorárias (incluindo a de Norcia). Estamos gratos pelas muitas sementes que o nosso confrade soube lançar ao longo da sua vida e rezamos para que a sua última grande viagem o tenha conduzido àquela que anunciou durante toda a sua vida!

© AIM.
© AIM.

Homilia nas exéquias de Dom Notker Wolf

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Grandes figuras da vida monástica

Dom Jeremias Schröder, OSB

Presidente da Congregação de Sankt Ottilien


Homilia nas exéquias de

Dom Notker Wolf

em 6 de abril de 2024



“Conservador, mas com um coração aberto”. Esta é uma anotação em meu diário sobre o encontro com o Arquiabade Notker pela primeira vez após uma visita a Sankt Ottilien em 1982.”

Hoje, 42 anos depois, eu e toda a nossa comunidade estamos ao lado de seu caixão. Milhares de pessoas de todo o mundo se juntaram a nós em oração e luto. Centenas de mensagens de pesar foram recebidas.  Muitas vezes, não se trata de expressões formais de simpatia, mas de testemunhos muito pessoais. Muitos contam como Dom Notker foi importante para eles, como ele os ajudou pessoalmente, com incentivo e apoio, com palavras gentis e exemplos, com humor e empatia. É difícil fazer justiça a todos eles, mas temos que tentar.

Aos 37 anos, Dom Notker tornou-se o abade de nossa comunidade. Ele era muito jovem, recém-chegado de Roma, onde havia trabalhado como professor de filosofia e cantor. Um candidato surpreendente que trouxe consigo uma perspectiva externa. Ele liderou e moldou nossa comunidade por 23 anos. Não fez isso sozinho - muitos outros o ajudaram, como é o costume entre os beneditinos. Mas sua atitude foi formadora. Depois de muitos anos tentando cautelosamente ver como nossa vida missionária beneditina deveria ser vivida nessa nova era pós-conciliar, Dom Notker chegou com vigor juvenil e uma certa imprudência. Seus anos em Roma lhe ensinaram abertura, maneiras urbanas e flexibilidade pragmática. Ele trouxe consigo uma confiança fundamental de que o mundo não é tão ruim, que Deus está disposto a nos fazer o bem e que nosso mosteiro e ele - Notker - têm um lugar e uma tarefa neste mundo.

Em uma das biografias, uma imagem dele em preto e branco com alto contraste foi elaborada por motivos dramatúrgicos. Antes de Notker e depois de Notker. Isso foi um exagero, pois esse mosteiro sempre foi maior e mais amplo do que qualquer indivíduo poderia ser. No entanto, Dom Notker trouxe um otimismo alegre a essa comunidade monástica, que enfrentou lentamente os altos e baixos do último quarto do século passado.

Ele voltou para nós há oito anos como ex-Abade Primaz, muito naturalmente, sem desvios ou confusão. Ele não era um prelado emérito, mas um confrade cuja presença enriquecia nossa vida cotidiana. Hoje, estamos dolorosamente conscientes do quanto sentimos sua falta em nossa vida diária. Como Arquiabade, ele era responsável pela administração de toda a Congregação. Foi uma época de mudanças. Os antigos territórios missionários tornaram-se dioceses. A missão foi examinada de forma crítica e até mesmo rejeitada por muitos. Dom Notker, que veio para cá por entusiasmo missionário, foi capaz de dar à nossa antiga missão uma nova forma, fundando mosteiros onde o monaquismo ainda não existia; mosteiros como centros de vida para igrejas e sociedades locais; os missionários não precisavam necessariamente vir da Baviera. A Coreia e a Tanzânia poderiam facilmente enviar missionários beneditinos. Ele estava feliz em promover novos começos e novas fundações, mesmo quando isso parecia difícil ou até absurdo, como no caso dos mosteiros na China comunista. Vamos tentar isso. Um hospital na Coreia do Norte, “Por que não? As Filipinas e o Zaire, Uganda e Togo. Nem todos foram bem-sucedidos, mas muitos o foram. Foi a dinâmica do Evangelho de hoje que o levou a continuar: “Vão pelo mundo inteiro e proclamem o Evangelho a toda a criatura!”

Em 2000, algo novo lhe ocorreu, de forma inesperada na época, ele se tornou Abade Primaz em Roma. Ele não queria isso. Eu estava lá quando, por um breve momento, ele foi tomado pela emoção ao arrumar sua mesa aqui na abadia. Ele tinha planos grandiosos e promissores para Sant’Anselmo, mas logo teve que aceitar que estava sendo solicitado a fazer algo muito mais realista. O orgulhoso mosteiro beneditino no Aventino, em Roma, havia se tornado uma espécie de edifício abandonado em 100 anos. Em vez de sonhar com novas fundações sofisticadas, ele teve que se concentrar em reformar e equipar os edifícios. Para isso, ele recrutou colaboradores de dentro e de fora da Ordem, com os quais começou a trabalhar. Por mais de 16 anos, ele colocou Santo Anselmo de volta nos trilhos para oferecer à nossa família religiosa mundial um lugar onde podemos aprender a olhar além das paredes estreitas de nossos mosteiros, entender a Igreja e valorizar a diversidade. Um lugar onde a antiga sabedoria monástica é cultivada e transmitida ao mundo.

Ele deu pouca atenção ao aparato do Vaticano e ao trabalho tedioso dos Comitês. Isso foi criticado algumas vezes, mas não nos prejudicou muito. Com sua presença mundial - as muitas milhas voadas que são frequentemente mencionadas - entre dezenas de milhares de religiosos, centenas de milhares de estudantes e muitos outros, ele fortaleceu a consciência de que somos uma verdadeira família. E há muitas outras pessoas para quem ele significava muito. Sua família, em especial sua irmã Rita, que chora conosco aqui hoje. Amigos de todas as fases de sua vida. Pessoas que cruzaram seu caminho em algum momento e com quem ele permaneceu próximo por anos e décadas. Dom Notker tinha uma paixão pelas pessoas. Suas respostas por e-mail eram muitas vezes louváveis, geralmente chegando em poucas horas e a qualquer hora do dia ou da noite. Nenhuma solicitação era muito complicada para ele. Se houvesse algum espaço em sua agenda, ele aceitava, vinha e lia ou tocava música, rezava a missa ou dava uma palestra, batizava, casava ou acompanhava uma peregrinação, como fez no início desta semana. Ele se doava, generosamente e com humor.

Uma série de qualidades o ajudou a se tornar o Notker de que nos lembramos hoje. Vou mencionar apenas algumas delas: Dom Notker era um homem de imensa lealdade, uma vez que apoiava alguém, sua lealdade dificilmente era abalada, mesmo que uma certa prudência sugerisse o contrário. Nos últimos dias, vários monges me escreveram sobre como ele ajudou alguns deles a ter uma segunda ou até mesmo uma terceira chance em Roma e em outros lugares. Ele tentou manter aberto o caminho para o futuro de mosteiros cujo fim parecia certo, muitas vezes com sucesso. Quando a Federação Bíblica Católica entrou em queda livre há algum tempo, ele se dedicou a anos de trabalho árduo como presidente. Como diz o profeta Isaías: “Não se pode apagar o pavio que ainda está fumegando”. Dom Notker já passou por isso.

Quase como uma contradição, mas na realidade mais como um complemento, ele também estava preparado para aceitar o inevitável, e sempre com total comprometimento de si mesmo. As eleições de 1977 como arquiabade e de 2000 como primaz, que realmente viraram sua vida de cabeça para baixo, não foram planejadas. Muitas coisas aconteceram durante seus 39 anos de liderança que ele gostaria que fossem diferentes. Esse é um dos segredos da vida humana, hoje frequentemente chamado de disponibilidade, e tem a ver com Deus. Dom Notker não era um fetichista do planejamento. Ele sabia que não podemos prever e planejar tudo. Ele não se deixava frustrar e sabia como aceitar o inesperado como um presente e uma graça, ou pelo menos como uma tarefa. Seu amor pela música tinha algo a ver com isso. Era música viva, não música enlatada. Música que é criada de novo no momento e só está disponível quando é ouvida. Jubilate Deo!

No final, reconheci em Dom Notker um amor muito profundo por Cristo. Ele podia rir de muitas coisas e zombar de muitas coisas, inclusive dos caprichos monásticos e dos absurdos eclesiásticos. Mas quando se tratava do essencial, ele era realmente piedoso! Ele estava chateado com o fato de que, especialmente em nossos círculos, Deus não era levado a sério. A proclamação do Evangelho e o seguimento de Cristo o comoviam e eram o motivo mais profundo de sua aparente preocupação.

Não há nada mais precioso do que o amor de Cristo, não é mesmo?

Mas há mais uma coisa que eu gostaria de mencionar, e vou colocá-la no final, porque é fundamental para entender a vida de Dom Notker. O ex-arquiabade de Pannonhalma, na Hungria, Asztrik Várszegi, certa vez fez um elogio a Dom Notker dizendo: “Mas, acima de tudo, ele era um homem, um homem de verdade!”

Todos aqui hoje concordarão. A humanidade de Dom Notker saiu por todos os poros. Estruturas, sistemas, planos. Como um homem inteligente e filósofo, ele sabia como gerenciá-los. Mas o que mais importava para ele eram as pessoas. Nesse aspecto, ele se assemelhava àquele que seguiu durante toda a sua vida. Dom Notker amava as pessoas. Muitas vezes, era de uma natureza refrescantemente terrena, mas também estava imbuído do amor de Deus pelo mundo de que fala o Evangelho de João. “Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único Filho por nós.”

Estamos tristes pelo fato de Dom Notker não estar mais conosco. Mas, acima de tudo, somos gratos por ele ser quem era e por ter ficado conosco por tanto tempo. Amém - Aleluia.


© AIM.
© AIM.

Irmã Lazare (Hélène) de Rodorel de Seilhac

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Grandes figuras da vida monástica

Irmã Marie-Madeleine Caseau, OSB, e Irmã Fabienne Hyon, OSB

Congregação de Sainte-Bathilde


Irmã Lazare (Hélène) de Rodorel de Seilhac

(10 de agosto de 1928 - 27 de novembro de 2023)


É uma alegria compartilhar o que recebemos de Madre Lazare, tanto na comunidade, na congregação de Santa Bathilde, quanto entre as monjas da França, da África e de outros lugares. Nos dias que se seguiram à sua morte, recebemos muitos testemunhos daqueles que ela tocou e daqueles que ela conheceu. Cada um deles pode testemunhar uma palavra que a acompanhou e a iluminou em um momento ou outro.

Quando ela comentava sobre a Regra de São Bento, costumava nos dizer: “Não é porque está na Regra que você faz tal e tal coisa, é porque é bom, que está na Regra”. Ou ainda: “A Regra é um manual de discernimento. Nós não adaptamos a RB, a RB forma pessoas que se adaptam”. Tentaremos compartilhar alguns de seus insights que nos marcaram, na esperança de que outros se juntem a nós para transmitir essas palavras de vida.

Nascida em 10 de agosto de 1928, em Paris, ela tinha um grande amor pelas raízes de sua família em Corrèze, especialmente pela casa da família, em Mons, que ela adorava. Ela tinha muitas boas lembranças de seus dois irmãos mais velhos. Enquanto estudava letras clássicas, frequentava o círculo Saint-Jean-Baptiste com o Padre Daniélou, que a apresentou à Bíblia. Foi nessa época que ela descobriu o mosteiro beneditino em Vanves e passou a frequentá-lo regularmente. Quando disse aos pais que queria entrar no mosteiro, o pai decidiu dissuadi-la e deu-lhe a oportunidade de experimentar várias coisas, na esperança de distraí-la de seus planos. Foi assim que ela conheceu a fábrica, uma experiência à qual voltaria muitas vezes, mesmo em sua velhice, tão marcada por essa descoberta do ateísmo do qual se sentia tão próxima! Seu pai lhe deu uma viagem à Grécia, o que a encantou! Vendo que não poderia desviá-la de sua vocação, ele permitiu que ela entrasse em Vanves em fevereiro de 1953. Fez a profissão em fevereiro de 1956 e a profissão perpétua em 24 de junho de 1961. Ensinou latim e foi zelosa no noviciado. Escreveu uma tese em latim cristão, que defendeu em 1967: “O uso da Regra de Santo Agostinho por São Cesário de Arles”, publicada em 1973. Ela teve o prazer de retornar ao seu amado Cesário de Arles graças à revisão publicada pela associação “Aux Sources de la Provence”, para a qual retomou seu trabalho sobre Cesário e Agostinho.

A partir da década de 1970, ela organizou várias sessões sobre patrologia e a Regra de São Bento para mosteiros na França e na África de língua francesa. Durante muitos anos, ela organizou sessões de patrística em Jouarre para treinar professoras em mosteiros femininos, insistindo para que as irmãs fossem às fontes, lessem os textos para mergulhar neles e torná-los seus. Ela também participou da tradução de textos monásticos e patrísticos para o francês, em colaboração com a irmã Lydie Rivière, xaveriana. Para os mosteiros femininos na França, ela também conduziu várias sessões de reflexão sobre o trabalho e o equilíbrio da vida monástica.

Enquanto isso, em 1968, ela se tornou Priora Delegada do mosteiro de Vanves, enquanto parte da comunidade, a Priora e o noviciado se mudaram para Saint-Thierry, com um capítulo conjunto para as duas comunidades. Em 1974, depois que as instalações desocupadas pela comunidade de Vanves foram alugadas, ela, também, se mudou para Saint-Thierry. Além de cuidar da liturgia e da sacristia, e de ensinar as irmãs em formação, ela se encarregou da oficina de impressão, onde sempre se empenhava em fazer com que as irmãs trabalhassem juntas. Ela tinha talento para encontrar trabalho para todas as estagiárias que passavam pelo mosteiro. Ela continuou seu trabalho de pesquisa e participou do Conselho da AIM, a fundação do STIM, e por 25 anos ensinou patrologia no seminário de Reims.

Por muitos anos, ela trabalhou com as irmãs para apoiar a redação de nossas Constituições. Elas foram aprovadas em 1982, e ela dedicou tempo para dar várias sessões às irmãs para apresentá-las.

Madre Lazare no Conselho da AIM em 2002. © AIM.
Madre Lazare no Conselho da AIM em 2002. © AIM.

Em 2003, aos 75 anos de idade, foi eleita Priora de Vanves e continuou seu serviço até 2010, assegurando a continuidade enquanto a Congregação estudava como continuar sua presença em Vanves. Após o Capítulo Geral de 2010, várias irmãs chegaram a Vanves e ela pôde retornar a Saint-Thierry, enquanto Madre Marie-Madeleine a substituiu como priora.

Este último período em Saint-Thierry foi marcado por uma escrita difícil, mas perseverante, da história de nossa Congregação, com a ajuda e o apoio da Irmã Marie-Samuel, uma história cujos frutos ela está compartilhando conosco ao longo do ano do centenário (2021). Ela não a terminou, mas continuou preocupada com ela até o fim.

Talvez haja quatro características principais em seu trabalho:

- Estudo rigoroso das fontes. Uma abordagem baseada em texto.

- Tornar esses textos acessíveis (contexto e estilo literário, linguagem).

- Uma abordagem feminista.

- Todo argumento defendido faz sentido, em uma obediência de fé comprovada.

Além de todos os seus compromissos e de sua pesquisa, ficamos com o testemunho de uma irmã que nunca “se esquivou” de um serviço na comunidade, que sempre foi atenciosa com as irmãs em dificuldade, uma irmã que acreditava na vida monástica e dava testemunho do que ensinava com seu modo de ser, uma anciã que sabia como confiar nas mais jovens e praticava a abertura de coração por convicção, mesmo que isso fosse difícil para ela.

É por isso que gostaríamos de compartilhar com vocês, acima de tudo, as palavras e reflexões de Madre Lazare, que nos nutriram e iluminaram em nossa vida monástica, na vida dos Oblatos e dos amigos que reuniram essas palavras de vida.

Mère Charles, Mère Marie-Madeleine e Mère Lazare no claustro do convento Sainte-Bathilde em Vanves.
Mère Charles, Mère Marie-Madeleine e Mère Lazare no claustro do convento Sainte-Bathilde em Vanves.

Palavras de Madre Lazare

“Quando eu era uma jovem postulante, ao descer uma escada, acidentalmente coloquei meu pé em um belo jarro recém colocado ali e o quebrei. Com o coração cheio de contrição, fui falar com a superiora para confessar minha culpa. Ela respondeu: “Somente aqueles que não fazem nada não quebram nada”. Surpresa e aliviada com essa resposta reconfortante, continuei minha vida monástica. Na semana seguinte, ao lavar a louça, inadvertidamente quebrei um pires velho que já estava lascado. Talvez movido pelo demônio da acédia, mas, de qualquer forma, feliz por ter essa oportunidade de conversar, saí toda feliz e animada para confessar essa nova falha à superiora. Recebi então um “sabão” memorável: Se você fosse de uma família nova e sem dinheiro, daria tão pouca importância ao respeito pelos bens materiais da cozinha? Etc. Saí com o rosto vermelho de confusão e com a força dessa bela lição de vida monástica que me acompanhou por toda a vida.”

“No mosteiro, encontramos todos os vícios da Igreja e do mundo, mas como não há escapatória, eles são mais visíveis do que em qualquer outro lugar. E no mosteiro, todos sabem que os outros também vieram para combater os demônios.”

“As pessoas costumam dizer que a razão pela qual os monges vivem até uma idade avançada é porque suas vidas são mais fáceis do que no mundo. Não acho que seja assim. Os monges vivem até uma idade avançada porque, nessa luta muito específica que é sua vocação, a luta contra os demônios internos como parte da luta para reverter o mal no mundo, é preciso tempo e paciência infinita. Deus dá a seus trabalhadores o tempo de que precisam.”

“Viver sob uma regra significa fazer parte de uma tradição. A Regra de São Bento é uma soma de experiências vividas nos mosteiros em busca de Deus. Ela ensina aos irmãos como descobri-Lo por meio de uma prática que deve ser internalizada. Ser guiado por uma regra é um sinal de que estamos nos permitindo ser instruídos por aqueles que vieram antes de nós”.

“Nossa tendência é sempre chamar de bom o que gostamos e de ruim o que não gostamos: a Regra nos impede de ceder a essa tentação (Capítulo 1): ela diz o que agrada a Deus”.

“Os monges vivem em um mosteiro, um edifício: é, portanto, uma casa visível, um lugar onde a Palavra de Deus é acolhida, um lugar adaptado a uma vida comum, estável e sólido, com um alto nível de manutenção, no qual eles necessariamente investem espiritualmente; é um lugar limitado ao recinto do mosteiro; quando saem, devem manter os mesmos padrões dessa vida” (cap. 51-50 etc.).

“Viver na clausura de um mosteiro nos lembra que não devemos nos esquivar do “campo de batalha” do combate espiritual, que é na realidade da vida terrena que buscamos Deus.”

“Devemos nos lembrar de que um dos perigos de todos os tempos é tentar estar ciente de que estamos orando; isso cria uma tensão ou um sentimento de culpa que nos impede de nos soltarmos. Muitas vezes é esse desejo de estar ciente da oração que nos dá a impressão de estarmos divididos, que nos faz pensar que haveria melhores condições práticas para orar, ou que fazer um esforço é importante; esquecemos que é Deus quem faz sua obra em nós, que a oração não vem de nós.”

Viagem à Índia: 4-11 de fevereiro de 2024

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Notícias

Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

Presidente cessante da AIM


Viagem à Índia: 4-11 de fevereiro de 2024



Domingo, 4 de fevereiro

De manhã, partimos de Paris para Bangalore para participar da reunião anual dos superiores dos mosteiros indianos (ISBF). A reunião se dará em Shanthivanam, o ashram fundado pelo Padre Le Saux e pelo Padre Monchanin.


Segunda-feira, 5 de fevereiro

Chegamos em Bangalore, no sul da Índia, à meia-noite de domingo. De lá, pegamos um segundo vôo para Tiruchirapalli, um pouco mais ao sul. O vôo era às 6h30 da manhã, então consegui encontrar um lugar confortável para esperar em boas condições.

Ao chegar a Tiruchirapalli, três monges estavam à espera, inclusive o superior de Shanthivanam, para levar ao mosteiro onde seria realizada a reunião de todos os superiores da Família Beneditina na Índia (cerca de 70 comunidades).

Fui direto para as reuniões do dia e dei a palestra que havia sido programada.


Shantivanam: as irmãs camaldolenses.© AIM.
Shantivanam: as irmãs camaldolenses.© AIM.

Terça-feira, 6 de fevereiro

O mosteiro é totalmente inculturado em termos de oração, refeições e estilo de vida, e se assemelha-se a um ashram hindu. A vida é simples. A alimentação é a da população local, à base de arroz, legumes e frutas: a dieta é totalmente vegetariana.

A oração é semelhante à praticada no hinduísmo. Todos os serviços  começam com a conhecida invocação “Ôm”. A liturgia continua com uma mistura de salmos e orações extraídas de diferentes tradições: siríaca, hindu e latina. Todos os participantes ficam sentados o tempo todo, inclusive durante a Eucaristia. Há vários ritos ligados ao símbolo da luz e do fogo, bem como sinais marcados na testa com líquidos misturados com pó. As pessoas saem da igreja com uma marca vermelha, branca ou amarela na testa.

A arquitetura consiste em pequenos eremitérios. A comunidade atual pertence à ordem camaldolense e está bem adaptada a esse contexto, que corresponde à vocação de oração da Congregação.

Ontem, a primeira conferência apresentou os três fundadores da comunidade: o padre Henri Le Saux, o padre Jules Monchanin e, mais tarde, o padre Bede Griffiths. O padre Martin, de Shanthivanam, fez a apresentação. Esse monge havia viajado recentemente pela Europa, especialmente pela França.

Alguns membros da ISBF em Shantivanam. © AIM.
Alguns membros da ISBF em Shantivanam. © AIM.

A segunda palestra foi feita pelo padre Dorathick, o prior local. Ele nos falou sobre a experiência da fé como fundamento do desenvolvimento humano, cristão e monástico, mas também oferecido a todos. Esse me parece ser um aspecto importante, não apenas em relação à Índia, mas também a uma realidade universal que habita profundamente na pessoa humana e que a mensagem do Novo Testamento destacou tão bem.

Na tarde desse primeiro dia, apresentei uma visão geral das reflexões da AIM sobre o presente e o futuro da vida monástica, falando sobre as respostas recebidas ao questionário que enviamos a vários líderes monásticos de todo o mundo, que foi publicado no Boletim 126 da AIM.

Irmã Christine fez uma apresentação mais detalhada do trabalho da AIM, com exemplos de ajuda concedida.

Neste segundo dia, ouvimos pela manhã um teólogo que destacou os principais pontos de convergência entre o hinduísmo e o cristianismo no que diz respeito à liderança nas comunidades. Sua palestra foi corroborada pela de um Swami à tarde. Ele é o diretor de um ashram vizinho com o qual temos excelentes relações.

Às 18h30, foi realizada uma oração inter-religiosa. Houve várias contribuições: eu mesmo dei um testemunho sobre o tema “Paz e Harmonia”; houve uma contribuição de um hindu e outra de uma jovem muçulmana acompanhada de dois de seus filhos, todos vestidos com trajes festivos. A atmosfera era excelente e muito contemplativa.


Quarta-feira, 7 de fevereiro

O dia é um pouco mais livre, pois os membros do grupo de superiores da Índia (ISBF) se reúnem para a parte mais formal e administrativa de sua reunião.

Tive uma longa conversa com o Padre Dorothick. Propus uma publicação, seja inteiramente feita por ele ou com vários colaboradores, para desenvolver a proposta que ele nos delineou sobre a relação entre a renovação da transmissão da fé e a vitalidade das formas religiosas e culturais, incluindo a vida monástica. Ele está totalmente de acordo. Eu gostaria muito que isso se concretizasse, porque me parece que a renovação é possível dessa maneira. De qualquer forma, tenho visto as coisas dessa maneira há muitos anos, e é um prazer conhecer alguém que pensa da mesma forma a partir de um ponto de partida completamente diferente.

Amanhã faremos uma expedição conjunta a um santuário mariano. Tenho que admitir que não estou muito inclinado a ir, pois estamos falando de uma viagem de dez horas de ônibus de ida e volta! Talvez eu pudesse ficar nesse lugar, que é tão significativo e onde tenho uma experiência pungente de interioridade. Isso também me daria um contato mais próximo com a comunidade local e com as irmãs camaldolenses que moram ao lado.

Devo admitir que, durante essa estada, tive um grande privilégio, pois estava hospedado no eremitério do Padre Le Saux. Tenho uma experiência tangível de sua presença e sinto um “dever” de intensidade em minha vida espiritual. É difícil dizer mais porque é muito especial, mas é uma experiência como nenhuma outra. Agradeço por essa oportunidade.


Quinta-feira, 8 de fevereiro

Finalmente, depois de seguir o conselho, fiquei no mosteiro. Portanto, estou tendo um dia aberto, perfeitamente disponível interiormente para o que Deus quiser, aqui neste lugar abençoado. Estou totalmente feliz; estou no centro de minha vocação. Minha escolha foi realmente a certa. É difícil descrever, mas experimentei algo muito regenerador que acho que marcará um passo importante.

No final do dia, tentei entrar em contato com o abade de Kappadu por telefone para organizar o restante da viagem, após a sessão em Shantivanam. Ele veio me ver assim que o grupo voltou e me disse que partiríamos às 6h da manhã do dia seguinte.


Sexta-feira, 9 de fevereiro

Às 6 horas, o carro deu a partida. Eu havia sido informado de que seria uma viagem de seis horas, mas na verdade seriam quase doze. Isso sem contar as várias paradas ao longo do caminho.

A primeira foi um farto café da manhã em um restaurante na beira da estrada. Um café da manhã tradicional com os temperos certos, que venho descobrindo aos poucos desde a minha chegada à Índia.

Em seguida, paramos em uma escola dirigida por freiras carmelitas. Uma delas havia servido anteriormente em uma missão perto de Kappadu. Os irmãos ainda não tinham tido a oportunidade de visitá-la. O complexo escolar é imenso. Chegamos no momento em que a comunidade carmelita estava terminando o café da manhã e compartilhou conosco algumas das boas sobras. Em seguida, visitamos alguns aspectos da escola. Há muitos carmelitas na Índia e eles têm algumas instituições que estão indo muito bem. Tudo é mantido com perfeição e parece maravilhosamente organizado. Não há nada de melancólico nos jovens que encontramos aqui. Uma nação que está marchando em direção ao seu futuro.

No caminho, paramos na beira da estrada para matar a sede. Compramos alguns cocos e consumimos o delicioso suco na hora. Enquanto isso, um rebanho de vacas invade a estrada. Precisaremos de um pouco de paciência para passar por elas!

Uma hora depois, paramos novamente para almoçar. Nossa parada é em um restaurante com uma vista de tirar o fôlego da cidade de Kumily. Meus olhos estão cheios enquanto minha boca está em chamas.

Decidimos então visitar o mosteiro trapista de Kurisumala. Ele está situado nessa região de Kerala, no coração de uma magnífica paisagem de montanhas de chá.

Visita ao ashram  de Kurisumala. © AIM.
Visita ao ashram  de Kurisumala. © AIM.

O motivo imediato para a criação do ashram de Kurisumala foi a vocação de Francis Acharya, fortemente influenciada por Mahatma Gandi. Depois de fazer sua profissão no mosteiro trapista de Scourmont, na Bélgica, ele seguiu um chamado persistente para a Índia em 1955. Depois de uma longa estadia nos principais ashrams indianos, ele foi visitar os fundadores do ashram Saccidananda (Shantivanam) em Tiruchirappalli. Finalmente, aceitou o convite de Zacharias Mar Athanasios, então bispo da diocese siro-malankar de Tiruvalla, e fundou oficialmente o ashram de Kurisumala, perto de Vagamon, em 21 de março de 1958, na companhia do padre Bede Griffiths, um monge beneditino inglês, e de alguns aspirantes. O mosteiro prosperou com o desejo de ser totalmente inculturado no cenário indiano. Após cerca de 70 anos de existência, pode-se dizer que o objetivo foi realmente alcançado.

© AIM.
© AIM.

Fomos recebidos pelo atual superior dessa comunidade de cerca de 15 irmãos. O mosteiro está disposto em edifícios de grande simplicidade, organizados como uma aldeia. A liturgia é baseada no rito siro-malankar, especialmente por causa de sua rica hinodia.

Visitamos a fazenda com seu famoso rebanho de vacas, que produz o melhor leite da região, e onde as pessoas da área circundante vêm para trabalhar de forma compartilhada e participativa, usando um novo método gerado na Suíça.

Tivemos tempo para algumas trocas de ideias. A expressão no rosto dos irmãos me tocou profundamente; era possível sentir uma grande paz, uma grande luz. Esses monges não trabalham em vão: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os pedreiros” (Sl 126).

Partimos novamente depois de visitar o túmulo de Padre Francisco, em torno do qual foi construída uma pequena capela. Durante esse tempo de meditação, lembrei-me de sua visita a Ligugé quando eu ainda era um noviço. Ainda tenho uma lembrança vívida disso.

Continuamos nossa jornada em direção a Kappadu, que agora está bem próxima. No caminho, deixamos um irmão que precisa visitar sua família na cidade de Vazhathope. Poucos minutos depois, ele se dá conta de que deixou o celular no carro. Aproveitamos a oportunidade para visitar a catedral próxima enquanto esperamos que ele venha buscá-lo. É um prédio do qual os indianos se orgulham porque é um dos mais bonitos do mundo e tem quase um século de idade. Uma liturgia estrondosa está em andamento, reunindo um número impressionante de fiéis. O local é dedicado a São Jorge.

Ao chegarmos a Kappadu, fizemos uma parada na parte inferior do mosteiro, onde há alojamentos para cerca de 300 alunos que frequentam escolas próximas. Eu tinha visto o primeiro prédio em minha última viagem, mas fiquei impressionado com o desenvolvimento desse albergue. Alguns irmãos vivem lá para administrar o local, incluindo o Padre Anselm, um dos três fundadores de Kappadu.

Finalmente chegamos ao mosteiro. Foi-me designado um quarto onde fiquei feliz por estar sozinho antes do serviço de Vésperas cantadas no rito siro-malankar, após o qual o abade e os monges com quem compartilhamos a jornada celebram a missa. Depois veio a refeição, onde tudo foi feito para nos alinhar com minha cultura ocidental. A intenção me tocou.

Não pude ficar muito tempo em Kappadu, mas no dia seguinte visitei o grande trabalho de renovação em andamento com o Abade. Também conheci o Padre John Kurchianil, que continua a escrever obras bíblicas e comentários sobre a Regra.

No caminho para Kochin para pegar o avião de volta para Bangalore e Paris, paramos em uma casa dependente onde há jovens em formação. O contato foi muito amigável e estimulante. Você pode realmente sentir o futuro dessa comunidade.

Repleto de todas essas experiências intensas, agradeço por uma jornada tão rica, que fico feliz em poder refletir neste boletim.

© AIM.
© AIM.

Viagem ao Togo, de 17 a 24 de fevereiro de 2024

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Notícias

Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

Presidente cessante da AIM


Viagem ao Togo,

de 17 a 24 de fevereiro de 2024


Sábado, 17 de fevereiro

De manhã, recebi uma mensagem de texto da Air France: “O seu voo sofreu um atraso de duas horas e só partirá às 18h25. Isto significa que só chegarei a Lomé por volta das 23h30 (00h30 em França: a diferença horária é de uma hora). Adaptei o meu dia e tentei entrar em contacto com os irmãos de Dzogbégan para que eles pudessem mudar o seu programa e vir buscar-me a esta hora tarde da noite. O avião partiu pontualmente e chegou em boas condições. No aeroporto de Lomé, infelizmente, encontrei-me numa fila onde os seguranças eram totalmente ineficazes. A fila não tem fim, estou a morrer de calor e de impaciência. Ao fim de algum tempo, já não aguentava mais, passei a fila e meti-me no caminho dos que já tinham sido controlados, pensando que ninguém me perguntaria nada porque estava muito cheio e desarrumado. Mas, à saída, um segurança pediu-me o passaporte e, ao ver que não estava carimbado, disse-me para voltar para a fila. Tive sorte, ele podia ter-me levado para a polícia, mas pelo menos assim passei o tempo de uma forma um pouco menos fútil. Passada uma hora, chegou a minha vez e ultrapassei o obstáculo. Sinto-me como se me tivessem dado a minha liberdade.

Quando saí do aeroporto, três irmãos me esperavam: o Padre Paul-Marie, que tinha chegado da Guiné (Séguéya) - seu avião chegou um pouco antes do meu - o Irmão François e o Irmão Justin, de Dzogbégan, tão cheios de atenção e de bondade. Dirigimo-nos para o carro. Era cerca de uma da manhã. Na hora de sair, nada acontece. É evidente que a bateria está descarregada, mas ninguém entra em pânico. Felizmente, não muito longe, um homem viu a nossa situação e ofereceu-se para ajudar. Ele traz o seu carro, liga a sua bateria à nossa e, finalmente, o motor arranca. Estamos salvos. Bem-vindos ao continente da solidariedade e da fraternidade.

A casa dos irmãos em Lomé não fica longe do aeroporto. Quando chegamos, os irmãos perguntaram-nos se queríamos alguma coisa antes de nos deitarmos. Finalmente, fomos para a sala de jantar. Havia restos de crudités e o irmão Justin preparou habilmente uma omelete, terminando a refeição com fruta de um sabor que era raro para mim. Um restaurante 5 estrelas! São duas horas da manhã. Dirigimo-nos para os nossos quartos. Está quente, é claro, mas se não nos cobrirmos, teremos uma boa noite de sono.


Domingo, 18 de fevereiro

4 da manhã: a cidade acorda. Ouve-se o canto do muezim e todo o tipo de orações repetitivas, de acordo com as tradições religiosas do país. Estou bem acordado com toda a agitação, mas não me sinto mal. Sei que vai durar algum tempo. Sei que vai durar um pouco (cerca de uma hora) e que depois a calma voltará. No momento em que escrevo estas linhas, o bairro está de novo em completo silêncio, mas não me apetece voltar para a cama. Além disso, quase imediatamente o som de uma comunidade evangélica a rezar invade o quarto num estilo completamente diferente! Há várias no bairro: pentecostais, batistas... e há também uma comunidade católica cuja liturgia ouviremos um pouco mais tarde. Celebramos a missa entre nós às 8 horas e tomamos o café da manhã. Uma irmã de Sadori juntou-se a nós, assim como um outro irmão de Dzogbégan que está a fazer um curso de mecânica automóvel em Lomé e que eu conheço bem. Antes de partirmos para Dzogbégan, pensámos em passar por lá para cumprimentar a pequena comunidade que saiu do mosteiro de Agbang em Lomé, não muito longe de onde estávamos. Fomos lá, e foi uma alegria rever o Padre Bonifácio, uma figura carismática e com muita experiência. Esteve presente no quinquagésimo aniversário da AIM, em Ligugé, e fez uma conferência notável. O edifício é extraordinário pela sua beleza e praticidade, uma realização verdadeiramente bela, com o bônus de uma bela sala de conferências para cerca de cinquenta pessoas. A abadia de Agbang, da qual depende esta casa, foi fundada pelo Padre Bonifácio há várias décadas. Ele queria que fosse uma casa central com pequenos priorados de missão. E foi exatamente isso que aconteceu. Atualmente, pertence à congregação de Sankt Ottilien. Ficamos ali durante uma boa hora, sentados na parte central. Estão presentes alguns leigos e o ambiente é simples e alegre: conversamos alegremente e de forma útil, penso eu. Mas depois temos de retornar à estrada. Temos quase cinco horas de viagem pela frente. Tudo corre bem. A estrada é uma via principal bem conservada. Uma hora antes de chegarmos, paramos num pequeno restaurante que o Padre François, então adegueiro, tinha ajudado a abrir. Comemos uma refeição local com um excelente peixe grelhado e batatas fritas. Depois nos dirigimos para o mosteiro das freiras de Dzogbégan, onde se realizará a sessão. Fomos aguardados e acolhidos com grande fraternidade. A Irmã Agathe instalou os hóspedes nos quartos de uma hospedaria quase nova. Tinha uma cama grande e um certo conforto. A estadia vai ser agradável. Às vésperas foram seguidas de um jantar, depois do qual as irmãs da comunidade nos brindaram com um canto e uma dança de boas-vindas. Viva a África na sua vitalidade, na sua juventude e no seu sentido de hospitalidade. O dia termina com as Completas e as Vigílias.


Segunda-feira, 19 de fevereiro

O dia é dedicado à apresentação das diferentes comunidades representadas. Surgem algumas questões recorrentes, como a economia e a capacidade de autonomia dos mosteiros.

As vocações não parecem ser tão numerosas como no passado. Há uma falta de estabilidade na perseverança. A formação é um fator importante. O studium de Bouaké desempenha atualmente um papel considerável. Algumas comunidades são muito frágeis. É preciso encontrar meios para as apoiar. Muitas vezes, as Congregações a que pertencem não são suficientes. O testemunho das Irmãs Redentoristas Burquinenses é particularmente forte. Elas estão numa parte do país onde a violência extremista as rodeia constantemente. São testemunhas de atos de violência inimagináveis, incluindo contra crianças. A Irmã Odette, de Babete (Camarões), encontra-se numa situação semelhante. Tenho de admitir que as suas palavras me tocam realmente. Conversamos muito durante o resto do dia e apercebemo-nos da nossa impotência para mudar o rumo das coisas. À noite, tivemos um encontro agradável com a comunidade, onde dei algumas notícias sobre a AIM.


Terça-feira, 20 de fevereiro

Continuamos a partilhar sobre a vida das diferentes comunidades representadas. Há uma grande variedade de situações. Falamos muito sobre a questão econômica e a possibilidade de os mosteiros desta sub-região se tornarem autônomos. No entanto, é importante ter em conta que vivemos um modo de vida que, em todo o caso, necessita de ajuda externa. O tempo de oração é de três ou quatro horas por dia, e os diferentes serviços da casa consomem muito tempo e energia (da cozinha à enfermaria, da portaria ao acolhimento à entrada do mosteiro, do acompanhamento das pessoas que vêm confessar-se ou falar com um monge, etc.). Nada disto é remunerado e consome o tempo das atividades geradoras de rendimentos. Além disso, estamos no meio de uma mudança econômica global. A abordagem africana não é a mesma que a europeia. Como é que podemos pensar numa boa gestão de uma economia de subsistência? Como podemos dar um novo contributo para as mudanças no equilíbrio econômico em todo o mundo? Como podemos motivar cada membro das nossas comunidades a trabalhar em conjunto nas questões econômicas? Todas estas são questões muito importantes que exigiriam uma sessão separada, ou mesmo várias. À tarde, o Padre Olivier-Marie apresentou-nos a Estrutura Sainte-Anne. Trata-se de um organismo de formação para monges e monjas da África Ocidental que não têm necessariamente o nível de estudos necessário para seguir um curso mais aprofundado, mas que, no entanto, têm experiência e talento suficientes para ensinar no seu mosteiro. Em três meses, têm de completar um curso que abrange as várias disciplinas das ciências religiosas e uma abordagem à metodologia. Os dias seguintes são dedicados ao recolhimento de notas pormenorizadas de cada mosteiro. Seguiram-se as conferências e as discussões em grupo com M. Koua, de Abidjan, sobre a questão dos abusos de autoridade no seio das nossas comunidades, tal como descrito no relatório da Irmã Thérèse-Benoît.

A minha estada terminou com uma visita ao Arcebispo de Lomé, que infelizmente logo depois veio a falecer. Foi um encontro maravilhoso com ele e com os padres, seminaristas e leigos que trabalham na paróquia da catedral. Regressamos a Paris ao fim da tarde do mesmo dia. Estou cada vez mais convencido de que a África é um continente de futuro, com grande capacidade de adaptação e uma abordagem sociais muito diferente da que existe no hemisfério norte. Apesar de muitas injustiças e dificuldades que devem ultrapassar, a África é o continente da fraternidade: e esse é o nosso futuro.



Relatório sobre o encontro de superiores monásticos da África Ocidental de língua francesa

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Notícias

Irmã Thérèse-Benoît Kaboré, OSB (Koubri Burkina Faso)

membro da Equipe Internacional da AIM


Relatório sobre o encontro de superiores

monásticos da África Ocidental

de língua francesa



De 19 a 25 de fevereiro aconteceu na abadia da Assunção de Dzogbegan, no Togo, o encontro dos superiores monásticos da África Ocidental de língua francesa. Estava presente a maioria dos superiores da sub-região. Participaram também o P. Jean-Pierre Longeat, presidente da AIM e a irmã Thérèse-Benoît Kaboré da equipe internacional da AIM. Foi um bom momento de encontro, pois a maioria dos superiores tinham sido eleitos, ou nomeados nos últimos anos, e ainda não tinham tido ocasião para se encontrarem.

Durante os dois primeiros dias do encontro, os superiores tiveram tempo para se conhecer e apresentar suas comunidades, com suas alegrias e sofrimentos. Expressaram a alegria de ver como suas comunidades perseveram na vida monástica, apesar das dificuldades que não faltam. Uma das maiores dificuldades é a economia. De fato, mantem-se o grande problema da precariedade econômica dos nossos mosteiros. É uma economia de subsistência, ou de sobrevivência, que permite que as comunidades vivam dia a dia, mas sem a capacidade de ter um ganha-pão firme e sólido. Os superiores constataram que é preciso ter tempo para refletir a fundo sobre o assunto. Mas já foi um passo a frente! Vai ser preciso organizar uma sessão de formação para superiores e ecônomos, e convidar especialistas para ajudar na reflexão. Os superiores manifestaram seu agradecimento à AIM pela sua proximidade e pela ajuda na formação e nos diversos projetos financeiros.

Em seguida, refletiram sobre as diferentes estruturas de formação:  a formação de formadores para mestre de noviços (as) de língua francesa; a estrutura Sainte-Anne; l’AMORSYCA (Associação Monástica de Reflexão sobre os Simbolismos nas Culturas Africanas) que desejam ressuscitar e redinamizar, o studium de filosofia e de teologia de Bouaké, os jovens professos monásticos. Refletiram também sobre o pedido da “Comissão para o Diálogo Interreligioso monástico” (DIM/MID) que acaba de lançar um vertente na África e espera ter um membro de cada mosteiro.

Durante os últimos três dias continuaram o encontro com o professor Asseman Médard KOUA que os acompanhou na reflexão sobre “abusos, liderança e equilíbrio de vida”, tema atual. O professor partiu da questão espinhosa dos abusos dentro e fora da Igreja. Tentou definir o conceito de “abuso”, interrogando algumas culturas africanas antes de estabelecer uma definição de abusos. Depois considerou o conceito de gênero, que tem um caráter particular nos dias de hoje. Hoje o mundo está atento à questão do gênero; certas camadas sociais são consideradas vulneráveis, ou super vulneráveis e o direito internacional os leva em conta e protege. O professor voltou ao caso dos abusos. Analisou duas categorias: o abuso sexual e o abuso de poder. Nesta análise considerou a questão de como gerir os abusos. Insistiu nas consequências desses atos sobre a pessoa abusada, vendo os quatro componentes da mesma: o componente cognitivo, o componente afetivo, o componente físico ou fisiológico e o componente comportamental. Estes componentes devem ser considerados na gestão dos abusos.

O segundo dia foi consagrado à liderança. O professor insistiu na gestão do poder. O líder que é chamado a exercer um poder deve exercê-lo em função do seu modo de ver as coisas, da sua história e do seu estilo próprio. Afinal, exerce o poder em função do que é, do que quer ser por meio do poder que exerce. Também há constrangimentos que ele não deve esquecer. É verdade que o líder é uma pessoa como as outras, mas o fato de deter um poder, obriga-o a não fazer como todo o mundo. Para melhor ilustrar este assunto, o professor usou o exemplo dos portadores de máscaras nas nossas aldeias, e que são levados a viver um certo modo de vida particular.

No último dia de sua intervenção, o professor falou da questão do equilíbrio de vida, e insistiu que o líder deve estar atento a si mesmo, saber que é vulnerável. Deve estar atento à sua realização pessoal para poder cuidar dos outros. Não é o salvador dos outros, mas está aí para os ajudar, para os acompanhar; mas tudo não depende dele, e não tem que procurar fazer tudo. Tem limites e não deve ignorar isso. Também não deve confundir seu cargo com sua pessoa.

No dia seguinte os superiores, pondo em prática o que tinham escutado, organizaram um dia livre de passeio.

Ao terminar a sessão, o conferencista sugeriu fazerem dois grupos de trabalho. O primeiro ficou encarregado de elaborar um plano para a gestão de casos de saúde mental nas nossas comunidades. O outro devia pensar sobre a gestão dos casos de abuso nos mosteiros da África Ocidental de língua francesa.

Os superiores partiram para os seus mosteiros muito contentes, e com mais ferramentas para exercerem sua autoridade em benefício de seus irmãos e irmãs.


Crônica do 21º Capítulo Geral da Congregação de Subiaco e de Monte Cassino

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Notícias

Dom Josep-Enric Parellada, OSB,

Abadia de Montserrat (Espanha)


Crônica do 21º Capítulo Geral da Congregação de Subiaco e de Monte Cassino




Como prelúdio do começo do jubileu milenar da abadia de Montserrat, e a convite do abade Manel Gash, realizou-se neste mosteiro de 30 de agosto a 7 de setembro, o 21º Capítulo Geral da Congregação de Subiaco e de Monte Cassino. Participaram 72 capitulares com direito de voto, uma quinzena de tradutores (entre os quais o novo Abade Presidente que foi eleito) e outras pessoas necessárias para a logística.

Todos os Capítulos Gerais são, para uma congregação, sinal de unidade na caridade, embora sendo o órgão supremo da autoridade. Não se trata somente de uma representação jurídica, mas de um encontro de comunidades e províncias particulares, para se caminhar junto na construção de um projeto comum, para que cada monge, cada comunidade, cada província e a Congregação toda sejam fiéis ao espírito da Regra, com a meta de nada antepor ao amor de Cristo, “que nos conduz juntos para a vida eterna” (RB 72, 11-12).

Nestes dias, foi como se fosse uma só comunidade monástica, feita pelos monges do mosteiro de Montserrat e os participantes do Capítulo Geral: rezamos juntos todas as horas canônicas, partilhamos as refeições e a vida da comunidade, para expressar a fraternidade que nos une a todos, monges de cinco continentes.

Poder-se-ia dizer que um Capítulo Geral é como uma releitura serena, feita em comum (a comunidade capitular) da vida das províncias,  das comunidades e de todos os monges, à luz da Palavra de Deus, da Regra, assim como do Direito comum e próprio (Constituições, Ordenamentos dos Capítulos Gerais).

No começo das sessões capitulares, o Abade Presidente Guillermo Arboleda sublinhou “o espírito comum que, sob a guia do Espírito Santo, deve animar as assembleias capitulares e o cotidiano da vida das nossas comunidades”. Afirmou que “as modificações legislativas, que ocuparão uma boa parte dos trabalhos do capítulo, devem ser vividas nesta ótica de crescimento comunitário, nos mosteiros, e entre os mosteiros, para que possamos ser no mundo o sinal da presença viva do Senhor”.

Por seu lado o abade de Montserrat padre Manel Gasch, numa curta palavra de acolhimento, evocou “a feliz coincidência entre este capítulo e o jubileu milenar da abadia de Montserrat: o fato de termos sido reunidos pelo Espírito Santo, de todos os confins da terra”; a vocação de acolhimento desta abadia, sob a proteção da Virgem de Montserrat, “A Moreneta”.

Este 21º Capítulo teve grandes temas de reflexão, de partilha e de decisão.

1 - Olhar a situação atual da nossa Congregação, por meio dos relatórios dos visitadores de cada província e dos superiores ou representantes dos mosteiros, fora das províncias. Estas intervenções nos levaram a tomar consciência do momento presente que as comunidades e as províncias vivem.

2 - As relações dos membros da Cúria: Abade Presidente, Procurador Geral, Ecônomo, visita canônica de Santo Ambrósio. Este capítulo foi o primeiro depois da reestruturação do núcleo da Congregação.

3 - Reforma da nossa legislação. O texto das Constituições e dos Ordenamentos dos Capítulos Gerais foi revisto e fixado em 1980. Houve depois pequenas modificações e atualizações com base no Código de Direito Canônico promulgado em 1983. Depois de mais de 40 anos era necessária uma releitura do nosso corpo jurídico. Para isto o Abade Presidente criou uma comissão encarregada de rever, de modo aprofundado, as normas que correspondem às situações vividas hoje pelas nossas comunidades monásticas. Depois de um longo trabalho de preparação, a comissão jurídica apresentou ao Conselho dos Visitadores um texto, que foi depois enviado a todas as comunidades, para que pudessem partilhar sugestões ou propostas. O texto definitivo foi apresentado ao Capítulo Geral. O trabalho do Capítulo foi precedido por uma relação sobre a importância do Direito na vida das Congregações, pelo padre Aitor Jimenez, sub-secretário do dicastério IVCSVA. Com a ajuda de meios eletrônicos houve 92 votos.

4 - O quarto ponto foi a eleição do P. Ignasi M. Fossas, monge de Montserrat, como Abade Presidente. Recebeu a bênção abacial no dia 7 de Setembro das mãos do Abade de Montserrat, Dom Manel.

5 – Finalmente, como Conclusão do Capítulo, todos participaram na abertura do ano jubilar milenar e na solenidade da Madona, titular do Santuário de Montserrat.


Dom Ignasi M. Fossas.
Dom Ignasi M. Fossas.

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