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“Toda a vida como liturgia”
Boletim da AIM • 2023 - No 125
Índice
Editorial
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB, Presidente da AIM
Lectio divina
“A paz esteja convosco!”
Dom Adriano Bellini, OSB
Perspectivas
• Liturgia monástica, o grande “hoje” de Deus
Dom J.-P. Longeat, OSB
• Santa Macrina, “Toda a sua vida foi liturgia”
Irmã Véronique Dupont, OSB
• Implementação da reforma da Liturgia monástica das Horas na congregação brasileira
Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB
Reflexão
Os ritos no coração do vínculo social
M. Jean-Claude Ravet
Grandes figuras da vida monástica
Le Saux-Abhishiktananda, um sacerdócio no Espírito
P. Yann Vagneux, MEP
Arte e liturgia
Ao longo da história, “Maria guardou todas essas coisas em seu coração”
Dom Ruberval Monteiro, OSB
Notícias
• Viagem à Terra Santa, abril-maio de 2023
Dom J.-P. Longeat, OSB
• Viagem à Índia, fevereiro de 2023
Irmã Christine Conrath, OSB
Editorial
Este número do Boletim da AIM desejou ser uma reflexão sintética sobre a prática da liturgia nos mosteiros hoje: as conquistas, os questionamentos, as propostas. Não conseguimos enfrentar esse desafio, que teria exigido maior preparo e contato com vários mosteiros nos diferentes continentes para obter um quadro da situação atual.
No entanto, este número ainda trata da liturgia, de uma maneira mais geral e espiritual. Estamos felizes por contar com a contribuição de três beneditinos brasileiros, dois dos quais são professores no Instituto Pontifício de Liturgia, em Santo Anselmo.
Retomamos um estudo da Irmã Véronique Dupont, monja de Vénières e colaboradora incansável da AIM, infelizmente falecida muito rapidamente. Este artigo aborda “a vida como liturgia”, tal como uma Mãe do deserto como Santa Macrina convidou por toda a sua existência.
Também quisemos homenagear a personalidade do Padre Henri Le Saux, neste 50º aniversário de sua morte, com uma contribuição do Padre Yann Vagneux, das Missões Estrangeiras de Paris (MEP). Este estudo já foi publicado na revista “Vida Consagrada”, mas vale a pena destacá-lo.
Por fim, a Irmã Christine, secretária da AIM, apresenta aqui seu relatório de viagem à Índia, por ocasião da reunião do ISBF, seguido pela visita a vários mosteiros, e eu mesmo dou alguns ecos da minha estadia em Israel, encontrando diferentes comunidades da família beneditina na Terra Santa.
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Artigos
A paz esteja convosco! (Lc 24, 35-48)
1
Lectio divina
Dom Adriano Bellini, OSB
Abadia de São Martinho de Ligugé (França)
A paz esteja convosco!
O evangelho de São Lucas 24, 35-48:
uma chave para a liturgia
Jesus não se assemelha ao Messias que os israelitas imaginavam, ou seja, um rei, um sacerdote e um profeta que os libertaria da opressão dos mais poderosos, perdoaria os pecados e traria a salvação consigo. No entanto, o Apóstolo Pedro lembra que Jesus é o Messias que deveria vir, que cumpre plenamente a profecia de toda a Escritura. A hora chegou: precisamos abrir nossos olhos para receber a salvação. Apenas aqueles que se deixam iluminar pela luz do Cristo ressuscitado têm o coração aberto para a inteligência das Escrituras, para relê-las e redescobrir que Ele, o Salvador, nos salva pela humildade, obediência, paixão e morte. É precisamente no momento crucial e doloroso de Sua morte na cruz que Ele realiza as profecias. Como verdadeiro sacerdote, Ele oferece o sacrifício definitivo e revela o poder da realeza de um Deus de amor que não apenas salva Seu povo, mas permanece com ele para sempre.
Os discípulos de Emaús reconheceram Jesus “na fração do pão”, e agora o Senhor se apresenta pessoalmente no meio deles, mostrando-lhes os sinais da crucificação para dissipar o medo e a dúvida; eles também podem tocá-Lo e comer com Ele. O Cristo, o Vivente, assegura-nos de Sua presença real entre nós, especialmente pela Palavra e pela Eucaristia. Podemos e devemos experimentar a alegria de encontrar o Cristo diariamente, para poder comunicar com Ele e receber o perdão, a vida e as bênçãos de que precisamos.
Jesus ressuscitado dirige esta saudação aos discípulos: “A paz esteja convosco!”. A paz é o dom messiânico por excelência, é o dom da ressurreição de Cristo. Mas não é uma paz fabricada de acordo com a mentalidade do mundo. Jesus mesmo diz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não a dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize” (Jo 14, 27). A paz de Cristo é uma paz que transforma a dúvida em certeza, o egoísmo em comunhão, o medo em esperança. Este desejo de paz é profundamente litúrgico, é por meio dele que o bispo inicia toda celebração litúrgica. Não é por acaso que o lema dos beneditinos é “PAX” – paz – e que São Bento é chamado o mensageiro da paz. Geralmente, encontra-se a saudação PAX na entrada de todos os mosteiros; às vezes até uma frase, por exemplo: Sit pax intranti, redeunti gratia sancti (Paz àquele que entra; àquele que sai, leve consigo a graça do santo [Bento], como na entrada da Abadia de São Paulo fora dos Muros, em Roma). Aqueles que passeiam pelo claustro da Abadia de São Martinho têm diante de si mosaicos que lembram com insistência o dom da paz. Não é apenas um desejo de boas-vindas para aqueles que vêm ao mosteiro, mas o sinal de que a comunidade acolhe o hóspede e lhe entrega, ao entrar e sair, o que tem de mais precioso: a paz de Cristo, o dom pascal por excelência. A comunidade monástica em si é chamada a viver de acordo com esta paz, buscá-la, preservá-la e irradiá-la para o mundo: “Busca a paz e segue-a”, diz São Bento (Prólogo 17).
“A paz não é preguiça, nem falsa indiferença, [...] a paz é a atitude de uma alma unida a Deus na caridade.” (Dom Delatte)
A paz nem sempre significa a ausência de problemas ou conflitos. Pelo contrário, Jesus adverte Seus discípulos de que terão que suportar muitas tribulações. A paz que Jesus conquistou com Seu sangue significa, antes de tudo, a certeza de Sua presença, mesmo quando temos que atravessar um mar agitado de dificuldades. Jesus está vivo, caminha conosco e nos dá Sua paz e a alegria do Espírito Santo. Essa paz se realiza quando todos estão empenhados na busca de Deus e do bem comum, quando existe um desejo sincero de comunhão, caridade e doação de si. É esta paz, a paz do Cristo ressuscitado, que trocamos durante a missa.
“Fica conosco, Senhor.” Livra-nos da ignorância e abre os olhos de nossos corações para ouvir Tua palavra e obedecer a Deus. Concede-nos a graça e a alegria extraordinária de encontrar-Te no pão partido a cada celebração eucarística, e que nosso ser seja verdadeiramente transformado pela comunhão com Teu Corpo e Sangue, para que nosso testemunho de fé seja crível, nossa caridade sincera e Tua paz esteja em nós. Amém.
Liturgia monástica: O grande “hoje” de Deus
2
Perspectivas
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Liturgia monástica:
O grande “hoje” de Deus
As poucas reflexões propostas aqui pretendem ser um convite para escolher viver hoje como o dia mais importante e real que nos é dado. Hoje, como todos os dias, tudo acontece pela força e verdade dos seres e das coisas, desde que nossas vidas estejam dispostas a acolhê-los. Como se sabe, a liturgia destaca esse “hodie”, esse presente que nos faz entrar no dia sem fim de Deus.
Essa proposta é feita pensando em todos aqueles que, hoje, como todos os dias desde a criação dos seres humanos, têm sede de ser, de viver, de compreender, de compartilhar, de amar, de existir intensamente em uma humanidade que clama por sua sede e desejo, sem realmente saber quais podem ser o objeto e o modo.
Primeiro, colocaremos a questão da escuta diária: “Hoje, se ouvirdes a minha voz”; depois a do alimento diário: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, e finalmente nos voltaremos para o Dia de Deus, o dia além dos dias, o dia prometido e tão desejado.
“Hoje, se ouvirdes a minha voz, não permitais que se endureçam vossos corações” (Sl 94)
Este versículo do salmo é citado no início da Regra de São Bento:
“Levantemo-nos então finalmente, pois a Escritura nos desperta dizendo: ‘Já é hora de nos levantarmos do sono’. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias: ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações’, (Sl 94, 8). E em outro lugar: ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas’ (Ap 2, 7). E o que ele diz? ‘Vinde, meus filhos, ouvi-me; eu vos ensinarei o temor do Senhor’ (Sl 33, 12). ‘Correi enquanto tendes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos apanhem’ (Jo 12, 35).” (Pról. 8-13).
O salmo 94 é ou era cantado todos os dias no início do Ofício de Vigílias na liturgia beneditina: é por excelência o salmo invitatório, o salmo que convida à oração com suas diferentes partes.
Primeiramente, um apelo geral ao louvor: “Vinde, exultemos de alegria pelo Senhor, aclamemos o Rochedo que nos salva! Avancemos para Ele com ações de graças! A Ele, nossos cânticos e aclamações!”[1]. Em seguida, uma ação de graças pela obra da criação: “Ele é o grande Deus, o Senhor, o Rei, maior do que todos os deuses! Em Sua mão, as profundezas da terra; também a Ele pertencem os cumes das montanhas. A Ele o mar, pois foi Ele que o fez, e os continentes que Suas mãos modelaram.” Antes mesmo de ser reconhecido como o Criador de todas as coisas, o Senhor é confessado como o Deus único, o Deus grande acima de todas as grandezas, de todas as alturas. É por isso que Ele pode segurar em Sua mão todos os elementos criados, das profundezas da terra aos cumes das montanhas, em toda a extensão dos mares e continentes.
Depois, uma oração agradecida pela obra da salvação em relação direta com a caminhada no deserto e as maravilhas ali realizadas pela mão do Senhor. Esta oração é acompanhada de um convite ao arrependimento, garantia da verdadeira ação de graças: “Vinde, inclinemo-nos, prostremo-nos! Adoremos o Senhor que nos fez! Sim, Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz, o rebanho guiado por Sua mão... Não endureçais vossos corações como no deserto, como no dia da revolta e do desafio, quando vossos pais me desafiaram e provocaram, apesar de terem visto o que fiz!” Esta ação de graças pela redenção e este apelo ao arrependimento estão ligados a uma nova confissão de fé: “Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz...”.
Por fim, o salmo termina com uma evocação da promessa feita por Deus ao homem de compartilhar Sua vida em Seu repouso eterno, no último sábado, se o coração humano não se desviar, com uma nova referência ao pecado de Israel no deserto: “Quarenta anos, suportei essa geração; eu disse: ‘É um povo de coração desviado; eles não querem saber dos meus caminhos’. Por isso, jurei na minha ira: ‘Jamais entrarão na terra do meu repouso!’”.
No meio desse conjunto, surge o versículo citado por São Bento: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações!”. Portanto, neste salmo, há a dimensão da memória, a da promessa e a que dá sentido a ambas, a da atualidade cotidiana. Esta é uma das chaves da espiritualidade cristã. São Bento, seguindo a tradição monástica, é um comentarista particularmente notável.
Do que se trata? Trata-se de viver cada dia acordado. Cada manhã e cada instante do dia são um chamado feito pela voz de Deus. Este chamado só pode ser percebido por aqueles que estão atentos a ele. Aqueles que abrem os olhos e os ouvidos de seus corações para ver e ouvir “o que o olho não viu, o ouvido não ouviu, o que Deus preparou para aqueles que O amam” (1 Cor 2, 9 citado por RB 4, 77). O que pode nos tornar infelizes nesta vida é estar aprisionado na ilusão dos sentidos externos. Se vejo apenas com meus olhos físicos, se ouço apenas com os ouvidos do meu corpo, ainda não vi nem ouvi nada que possa me permitir saborear a verdadeira vida.
A cada dia, a cada segundo, através dos seres e das coisas criadas, nos é dada a totalidade da existência. No entanto, muitas vezes, estamos dormindo e só sonhamos. É urgente, constantemente urgente, acordar, levantar, ressuscitar e começar a ouvir: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações”. Este é um dos propósitos essenciais do Evangelho. Para poder ouvir, o coração precisa ser tocado, convertido, circuncidado. É preciso reler a este respeito o discurso da montanha no início do Evangelho de São Mateus. Desde o primeiro versículo do Prólogo, São Bento nos convida: “Escuta, inclina o ouvido do seu coração” (Prol. 1).
Ao comentar o versículo citado do Salmo 94, a epístola aos Hebreus atualiza de maneira especialmente forte nossa relação com a Palavra de Deus, que o homem recebe para colocar em prática, a fim de poder saborear um dia o descanso de Deus: “Viva é a Palavra de Deus, eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, penetra até o ponto de divisão entre a alma e o espírito, entre as articulações e a medula, e pode julgar os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura invisível diante dela, mas tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas” (Hb 4, 12-13). Nossa vida está totalmente orientada para essa perspectiva do hoje da Palavra que ocorre em nossas vidas humanas para que possamos dizer com Cristo: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos esta passagem da Escritura” (Lc 4, 21)?
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje” (Mt 6, 11; Lc 11, 3)
Não basta inclinar o ouvido do coração e não o endurecer para ouvir o chamado do Senhor por meio de Sua Palavra diária; é também necessário aceitar receber o que o Senhor providencia para nós diariamente, de acordo com Sua vontade.
É bom aqui fazer referência à experiência de Israel no deserto. O Senhor providencia gratuitamente para a fome de Seu povo, enviando durante a noite “uma camada de orvalho ao redor do acampamento”. Essa camada de orvalho, uma vez evaporada pela manhã, revela na superfície do solo algo pequeno e granuloso. “Este é o pão que o Senhor vos deu para comer. Eis o que o Senhor ordenou: Cada um recolha conforme o que pode comer”. E Moisés lhes disse: “Que ninguém guarde nada para o dia seguinte”; “Eles recolhiam a cada manhã, cada um conforme o que podia comer, e quando o sol esquentava, aquilo derretia” (cf. Ex 16, 13-21). O alimento diário do maná descido do céu é, portanto, um elemento-chave da espiritualidade do hoje proposto por Deus ao Seu povo.
O Evangelho de São Mateus faz um belo comentário sobre este dom do céu:
“Não vos inquieteis pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. [...] Portanto, não vos inquieteis, dizendo: o que vamos comer? O que vamos beber? O que vamos vestir? [...] Vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso. Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e tudo isso vos será dado por acréscimo. Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados. A cada dia basta o seu próprio mal” (Mt 6, 25-34).
Será que devemos levar esses textos ao pé da letra? Não, isso não é suficiente, é necessário interpretá-los. Mas também é indispensável saber viver essa entrega diária com o abandono de uma fé sempre a ser renovada. Está claro que nossa busca raramente é, em primeiro lugar, pelo Reino de Deus, e é isso que apresenta um problema. Se, como os israelitas no deserto, quisermos fazer provisões de maná, se quisermos acumular o dom de Deus, se não aceitarmos receber diariamente apenas os dons que nos são necessários, não poderemos realizar a vida de Deus neste mundo.
O discurso sobre o Pão da Vida apresenta o cumprimento desse sinal do maná. Cristo nos revela que Ele mesmo é o Pão da Vida. “Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram; este é o pão que desce do céu, para que todo o que dele comer não pereça. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém dele comer, viverá eternamente” (Jo 6, 49-51).
Nosso único verdadeiro alimento cotidiano é Cristo, dado para que o mundo tenha vida. Recebemos isso em Sua palavra ruminada e na oração, no pão da Eucaristia e nos sacramentos, bem como na comunhão fraterna.
Assim, “O pão nosso de cada dia nos dai hoje” só pode ser compreendido plenamente nessa relação diariamente renovada com Cristo entregue. É assim que podemos buscar o Reino e Sua justiça, é assim que podemos nos contentar com o alimento cotidiano.
Toda a vida de Cristo é assim, como relata São Lucas à sua maneira: “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (4, 21); após a cura do paralítico, as testemunhas exclamam: “Hoje, vimos prodígios” (5, 26). “Eis que expulso demônios e realizo curas hoje e amanhã, e no terceiro dia serei consumado! Mas hoje, amanhã e no dia seguinte, devo seguir meu caminho, pois não é conveniente que um profeta pereça fora de Jerusalém” (13, 32-33). “Zaqueu, desce depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa... Hoje, a salvação chegou nesta casa...” (19, 5-9).
Assim, é possível nos interrogar a respeito de nosso alimento diário. Estamos realmente recebendo Cristo em primeiro lugar para cumprir a vontade de Deus, ou estamos nos preocupando com um acúmulo completamente supérfluo que não podemos levar para o túmulo? Nossa vida está sob o sinal primário da Eucaristia, com todas as suas dimensões espiritual, pessoal, comunitária e social, ou é algo particularmente vão? Aceitar receber o alimento cotidiano do Cristo é aceitar que nossos planos imediatos sejam desviados e vivê-los alegremente seguindo Jesus que sobe a Jerusalém em direção ao Seu Êxodo.
São Bento prescreve ao abade lembrar este ensinamento do Evangelho, para que não esqueça “não trate com mais solicitude das coisas transitórias, terrenas e caducas, negligenciando ou tendo em pouco a salvação das almas que lhe foram confiadas, mas pense sempre que recebeu almas a dirigir, das quais deverá também prestar contas. E para que não venha, porventura, a alegar falta de recursos, lembrar-se-á do que está escrito: ‘Buscai primeiro reino de Deus e sua justiça, e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo’” (RB 2, 33-35).
O Dia do Senhor
Mas o hoje real na vida dos crentes é o grande hoje de Deus que se estende por toda a história e muito além. De fato, para o Senhor, “mil anos são como um dia” (Sl 89), e “mais vale um dia nos átrios do Senhor que mil em minha morada” (Sl 83, 11). Este hoje de Deus é o da Sua vinda permanente. O Senhor não cessa de vir, Ele visita a Sua criação, dirige-lhe a palavra, encarna-se nela, promete a Sua vinda gloriosa quando Cristo for tudo em todos.
Assim, a Revelação bíblica está pontuada pela proclamação deste hoje de Deus que se manifesta constantemente na vida dos homens: “Houve uma tarde, houve uma manhã, o primeiro dia” (Gn 1,5); “Este é o dia que o Senhor fez” (Sl 117, 24); “Naquele dia...” incessantemente proclamado nos profetas; esta expressão não visa necessariamente uma projeção no futuro, é um anúncio do dia de hoje, onde cada um é chamado a escolher entre a vida e a morte (cf. Deuteronômio). O Evangelho de São Lucas abre-se com o anúncio da Boa Nova: “Hoje, na cidade de Davi, nasceu-vos um Salvador” (Lc 2, 11), e conclui com a promessa: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).
Mas o que expressa melhor este grande dia de Deus é o hoje da celebração litúrgica. Na liturgia latina, hodie ressoa como uma esperança extraordinária ao longo de todo o ano. O hodie mais famoso é o de Natal: “Hodie Christus natus est…” – “Hoje, Cristo nasceu para nós; hoje, o Salvador apareceu; hoje os anjos cantam na terra, os arcanjos se alegram; hoje os justos exultam, dizendo: ‘Glória a Deus nas alturas’” (antífona do Magnificat das II Vésperas de Natal). Essa antífona encontra sua preparação no ofício da Vigília de Natal, onde é anunciado o hoje da revelação: “Hoje sabereis que o Senhor virá, e amanhã vereis a sua glória”. Podemos adicionar a essa antífona de Natal a da Epifania: “Hodie caelesti sponso” – “Hoje, a Igreja se uniu ao seu Esposo celeste, pois Cristo a lavou de seus pecados no Jordão; os Magos correm com seus presentes para as núpcias reais, e os convivas se alegram com a água transformada em vinho” (antífona do Benedictus das Laudes da Epifania). A antífona do Magnificat das II Vésperas retoma esse tema: “Hoje, a estrela guiou os Magos até o presépio; hoje, a água se transformou em vinho no festim nupcial; hoje, no Jordão, Cristo quis ser batizado por João, para nos salvar”. No mesmo espírito, a antífona do Magnificat das II Vésperas de Pentecostes anuncia o Mistério atualizado neste dia: “Hoje se completaram os dias de Pentecostes; hoje, o Espírito Santo apareceu aos discípulos sob a forma de fogo e derramou sobre eles dons misteriosos; ele os enviou pelo mundo para pregar e testemunhar. Aqueles que crerem e forem batizados serão salvos”. No meio de tudo isso, há obviamente o domingo de Páscoa e o Tempo Pascal, onde ressoa o “Haec dies quam fecit Dominus” tirado do Salmo 117, 24, o salmo pascal por excelência: “Este é o dia que o Senhor fez, exultemos e alegremo-nos nele”. Este dia é o Dia dos dias: o verdadeiro hoje da vida divina. Algumas antífonas marianas recentes (8 de dezembro, 11 de fevereiro) retomaram esse tema, e a liturgia beneditina o aplicou a São Bento, Santa Escolástica e São Mauro. O domingo é o grande Dia do Senhor, ao mesmo tempo o primeiro dia da criação, assim como da redenção na ressurreição de Cristo, e o oitavo dia, dia além dos dias, dia de Deus transfigurando todas as coisas, dia de sua vinda. O sacramental do domingo é verdadeiramente de grande importância para a expressão da vida de Cristo. Devemos desenvolver em cada uma de nossas vidas uma espiritualidade deste cotidiano que é o hoje de Deus. É o dia do nascimento, é o dia do começo, do recomeço, é o dia da ressurreição e é também o hoje da eternidade, o dia em que as aparências desaparecem para dar lugar à realidade, o dia do discernimento, que é outro nome para o julgamento.
Ao cantar os mistérios no hoje, a liturgia faz com que eles se realizem aqui como figura. Os fiéis tornam-se assim contemporâneos dos mistérios celebrados, que tomaram forma num dia do tempo e que estão sempre atuais. Este é o verdadeiro sentido do memorial cristão.
Um velho monge de nosso mosteiro, falecido há alguns anos, viveu a última parte de sua vida na convicção de que cada manhã era domingo, e como era sacristão, ele preparava diariamente tudo o que era necessário para a liturgia dominical. Claro, esse monge idoso tinha perdido um pouco o juízo, a menos que, na verdade, tenhamos sido nós que a perdemos, e ele, nessa candura, a tenha recuperado após cerca de setenta anos de vida monástica.
Um monge do deserto do Egito, no século IV, repetia a si mesmo toda manhã: “Hoje, eu começo”. Que este começo nunca deixe de habitar nossa ação: assim iremos, nas palavras de Gregório de Nissa, “de começo em começo, por começos que não têm fim”, e é assim que chegaremos ao dia sem declínio que Deus nos oferece já em figura.
Conclusão
Não basta estabelecer alguns princípios de análise; é igualmente necessário derivar deles consequências concretas.
Será que realmente ouviremos o chamado que ressoa em nossos ouvidos vindo de Deus? Teremos o coração suficientemente receptivo para entrar no hoje da Palavra? Estamos verdadeiramente nos perguntando se estamos mantendo contato com a Palavra divina de alguma forma (leituras bíblicas e espirituais, oração, meditação, ruminação, lectio divina)? Será que nosso hoje é o advento de Deus em nós e ao nosso redor, procurando e chamando Seu operário de maneiras sempre inesperadas? Faremos da nossa vida um companheirismo cotidiano? Como partilhar o Pão de Deus com irmãos e irmãs? Como receber o maná, que é o verdadeiro Pão da Vida? É evidente que, quando sabemos que metade dos habitantes do nosso planeta morre de fome, realmente nos perguntamos onde está a oração: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”; há, então, impossibilidade de nos tornarmos discípulos na travessia do deserto deste mundo?
Finalmente, como nossa vida testemunha o Dia além dos dias? Sabemos relativizar os bens imediatos para nos entregarmos a Deus, com a coragem de um trabalho incansável, mas desprovido da preocupação de nos promovermos? O dia de Deus é sempre um dia de julgamento, onde somos desnudados para sermos verdadeiramente o que devemos ser: simples criaturas, simples servos que se reconhecem como filhos de Deus para a eternidade. Aí está o nosso tesouro, e “onde está o teu tesouro, aí também estará o teu coração” (Mt 6, 21).
“Este é o dia que o Senhor fez; alegremo-nos, passemo-lo na alegria” (Sl 117, 24).
[1] As citações dos salmos são provenientes da tradução do saltério pelos monges de Ligugé, publicada em “Le Psautier de Ligugé”, edições Saint-Léger, 2019.
Santa Macrina, “Toda a sua vida foi liturgia”
3
Perspectivas
Irmã Véronique Dupont, osb
Abadia Notre-Dame de Venière (França)
Santa Macrina
“Toda a sua vida foi liturgia”[1]
A vida de Santa Macrina
Gregório de Nissa escreveu a vida de Macrina (VSM)[2] talvez em 380, ou mais tarde em 383 no auge de sua carreira, no melhor momento de sua irradiação espiritual. Este texto, contemporâneo da Grande Catequese[3] é o lado espiritual das verdades da fé; é sua ilustração. A ocasião imediata que deu origem à redação deste texto, é conhecida: quando da viagem que fez à Arábia, para dar contas das decisões do primeiro concílio de Constantinopla (381), Gregório encontrou um monge, Olímpio, a quem falou, emocionado, da morte de sua irmã. Muito tocado, Olímpio pediu a Gregório que escrevesse sobre ela, para servir de exemplo para os monges e monjas.
Uma liturgia eucarística
Gregório apresenta a vida de Macrina como uma liturgia eucarística: Macrina prepara o pão, unge as mãos para as coisas sagradas, oferece outras, ela mesma faz memória das magnalia Dei, pede que venha a santificação (epiclese), e morre durante a eucaristia lucernária. Este tipo de morte, no final da oração e no fim da vida, é um lugar comum, habitual, nos relatos cristãos da época[4].
Macrina “punha suas mãos a serviço litúrgico” (ver VSM 5, pág 159) que é que isso quer dizer? Talvez preparava o pão eucarístico, como muitas virgens do seu tempo, como o diz o Padre Daniélou[5]. Ela recebia esse pão nas suas mãos, que por isso eram ungidas (Cristo) e portanto consagradas para todas as ocupações do dia.
Quais eram as ocupações de Macrina durante o dia? “Meditar sobre as realidades divinas, rezar sem cessar, cantar hinos dia e noite, realizar as tarefas indispensáveis da vida. Ela não deixava para os escravos, ou as servas o cuidado das coisas materiais” (VSM 11).
O Primado da Escritura
Macrina tinha sido treinada, desde sua juventude, a meditar as realidades divinas. Aprendeu a ler com as Escrituras. Foi instruída pelas Escrituras. Tudo o que na Escritura inspirada por Deus, era considerado apto para uma criança, era visto como programa de vida, sobretudo na Sabedoria de Salomão, e neste livro, o que contribuía para a vida moral. Também não ignorava nada do saltério, e recitava salmos em determinados momentos do dia; ao sair do leito, ao começar ou terminar o trabalho, no começo das refeições, ao sair da mesa, ao deitar, ou ao levantar-se para rezar, em toda a parte tinha com ela a salmodia, como companheira fiel de cada momento. Toda a educação de Macrina foi feita com a Sagrada Escritura. Por sua vez, o seu irmão mais novo, Basílio, será também inicialmente formado pela Escritura. Daí as abundantes citações e as referências aos textos sapienciais nos escritos de Basílio. Pedro, o último (que virá a ser bispo de Sebaste) também será formado assim. Macrina o educou e o fez aceder à mais alta cultura, exercitando-o nas ciências sagradas desde a infância (VSM 12). Para os Antigos a Escritura era uma porta de entrada para o conhecimento universal. Com a Escritura pode-se aprender a ler, a escrever, a compreender, a descobrir a história, as ciências naturais, a cosmologia, a matemática, a medicina, o simbolismo dos números e, sobretudo, a Sabedoria que é o Cristo. A educação de Macrina e de seus irmãos começou, portanto, quando eram pequenos, pelo estudo dos livros sapienciais e do saltério. Macrina dizia o saltério completo todos os dias: “Nem um só momento falhava”[6] isto quer dizer que o sabia de cor (memorização pelo coração). Achamos o mesmo na Carta 107 de São Jerónimo sobre a pequena Paula: “Que sua língua ainda infantil seja impregnada com a doçura dos salmos… que aprenda em primeiro lugar o Saltério”[7]. Também na Regra, São Bento dá como primeiro trabalho para os jovens estudarem o saltério[8]. Mas o uso escriturístico de Macrina não se resumia ao Antigo Testamento. Macrina vive a vida filosófica, ora o Filósofo é o Cristo. Esta vida de filósofos vivida em Annesia[9] é a vida evangélica vivida como absoluto. Leva em conta os apelos de São Paulo na carta aos Colossenses: “abandonai tudo isto: ira, exaltação, maldade, blasfémia, conversa indecente” (Col 3, 8) e de São Pedro aos cristãos: “ Revesti-vos todos de humildade nas relações mútuas, de uns para com os outros, porque Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (1 P 5, 5). A Vida de Macrina faz referência a numerosas outras citações de textos semelhantes do Novo Testamento. A descrição feita por Gregório, é, no seu estilo próprio, característica dessa época, sinal da passagem do homem velho para a o homem novo (ver Col 3, 9-10). Alguns episódios da vida em Annesia são apresentados por Gregório como evangélicos, provavelmente para fazer a ligação entre a vida monástica e o seguimento de Cristo, a imitação do Cristo. Num dia de fome, Pedro, o irmão de Macrina, conseguiu tantas provisões que a multidão dos visitantes – atraída pela reputação das boas obras do mosteiro – “que o deserto parecia uma cidade”;[10] isto evoca as multidões que seguiam Jesus, por exemplo em São Marcos 1, 45, ou quando da multiplicação dos pães (Mar. 6, 31-34) ou quando das curas. Macrina fazia muitos milagres (CSM 36). Gregório quer assim mostrar que o ideal da filosofia, é a perfeição da vida cristã, e que seguir esse ideal não é o seguimento de uma abstração, mas de uma pessoa: Cristo. Rezar sem cessar, cantar os louvores de Deus é para Macrina e seus companheiros, o seu trabalho e o seu repouso depois do trabalho (VSM 11).
Trabalho / repouso; trabalho / descanso;
Vacare Deum, férias em Deus, repouso em Deus
O labor da salmodia e do canto dos hinos é fonte de energia, alimento. Neste sentido a vida em Annesia é uma vida “angélica”, pois os anjos louvam a Deus sem cessar (VSM 12 e 15). Primazia é sempre dada ao Ofício Divino. Macrina, doente, embora sabendo que é a última vez que conversa com seu irmão, interrompe esse diálogo espiritual (que no fundo é uma anamnese das Magnalia Dei) (VSM 20) assim que ouviu o começo do Lucernário. Imediatamente mandou seu irmão para a Igreja, enquanto ela se refugia, junto de Deus, na oração (VSM 22). No final de sua oração fez o sinal da cruz e “deixou de rezar e de viver”.[11]
Três celebrações
Mais do que sublinhar todos os traços de “liturgia” na vida de Macrina, olhemos três celebrações litúrgicas: O acolhimento de um hóspede, a morte em Cristo, a liturgia do funeral.
O acolhimento de um hóspede
Quando Gregório, bispo, chega a Annesia para ver sua irmã doente, o grupo dos homens (monges instalados num lugar mais afastado na sua imensa propriedade familiar) vai ao seu encontro, enquanto que o grupo das virgens, alinhado em boa ordem, junto da igreja espera aí a chegada de Gregório. Gregório entra, reza, dá a bênção às virgens que se inclinam (VSM 16). Do mesmo modo, quando um hóspede chega ao mosteiro, ou a uma fraternidade basiliana, começa-se por rezar[12]. É um costume já muito bem atestado no quarto século, no Oriente. Encontramos isso também na Regra de São Bento (RB 53). Este costume se tornou universal no mundo monástico.
Morrer em Cristo
Quanto mais Macrina sente que sua morte biológica está próxima (no final do dia, o que é também um símbolo), mais pressa tem de ir para o seu Bem-Amado (VSM 23). Seu leito está virado para o Oriente. É no oriente que os primeiros cristãos colocavam o paraíso; é do Oriente que esperam a volta do Cristo, e também a vinda dos anjos que acolhem a alma dos justos e a conduzem ao paraíso de Deus. Pacômio vê no oriente a alma de um irmão levada pelos anjos. Macrina contempla a beleza do Esposo, no lado do Oriente, com os olhos fixos nele. Rezando, Macrina faz o sinal da cruz na sua boca, nos seus olhos e no seu coração: forma de proteção de todo o seu ser contra os demónios. Depois manifesta o desejo de dizer a oração da eucaristia do Lucernário, quer dizer a grande oração da tarde. Fá-lo com gestos e no seu coração, pois a febre não a deixa mais falar. Esta oração termina com um grande sinal da cruz, e com um profundo suspiro deixa de rezar e de viver (VSM 25). Este modo de nos apresentar a morte de Macrina quer dizer que toda a sua vida era oração, se tinha tornado uma liturgia. Isto não significa que tudo o que realizamos na vida monástica seja um ritual, nem por sombras, mas sim que nada está excluído da nossa vida cristã: “Tudo é vosso, vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 22-23).
A liturgia do funeral
Um fato contado por Gregório mostra que a liturgia impregna toda a vida monástica. Quando Macrina morreu, entoou-se cantos fúnebres. Ela tinha fixado um tempo para as lágrimas (VSM 27), prescrevendo que se chorasse no tempo da oração, mas dizia que essas lágrimas não deviam ser gemidos, nem lamentos. Quer dizer há um tempo para tudo, um tempo para chorar e um tempo para dar graças. Mas, se há um tempo para tudo, isso não significa que se pode fazer as coisas de qualquer forma. Pode-se expressar a dor na liturgia (cf o canto dos salmos por exemplo). Jesus também chorou. Chora-se, mas não com gemidos. Sob a direção de Lampadion, a mestra de coro, as virgens salmodiam “pois os salmos acalmam os lamentos” diz Gregório de Nazianzo[13] Passa-se a noite a cantar hinos, como para os mártires. Isto não significa que a morte de Macrina seja igual à de um mártir, mas sim porque ela foi fiel até ao fim! É por isso que a celebração de um jubileu, de um funeral de uma monja é uma celebração maior do que a da profissão monástica: a profissão é grave, mas é uma promessa para o futuro; a morte de uma monja é a promessa realizada. A salmodia canta-se em dois coros. Um coro feminino: as monjas de Annesia e as outras mulheres (pois veio uma grande multidão, não sem às vezes perturbar a salmodia), e um coro masculino: os monges e os outros homens. Estes coros alternam, ou cantam juntos, mas formam um coro “perfeitamente homogéneo graças à melodia comum”[14]. O cortejo fúnebre põe-se a caminho para a capela, situada a um km e meio, e dedicada aos 40 mártires de Sebaste. Aí já repousam os pais da defunta. O cortejo é liderado pelo bispo Araxios, a quem Gregório mostra o caminho. Sabe-se que esse cortejo, por causa da multidão, demorou o dia todo. Foi uma verdadeira procissão litúrgica (VSM 34) com diáconos, clérigos menores, turiferários e outros. Durante todo o trajeto salmodiou-se, como os três jovens na sarça ardente, a uma só voz (ver Dan. 3, 51). No momento da abertura do túmulo, uma das virgens começou a chorar em voz alta, seguida de outras e gerou-se uma confusão. Gregório, finalmente, pediu silêncio, o cantor convidou para a oração e o povo acalmou-se. Como as virgens sábias (Mat 25), o cortejo vai ao encontro do Esposo, o rosto de Macrina iluminou-se. Para o baixar do corpo (VSM 35) note-se um costume bíblico praticado nesse tempo: para não ver a nudez dos pais (mortos há muito tempo) – os gregos não aguentavam tal espetáculo – cobria-se o corpo deles (o que restava do esqueleto) com um lençol novo[15] e se colocou Macrina junto de sua mãe, conforme a vontade das duas. A vida de Macrina é uma ascensão mística para o Cristo. Encontramos os mesmos graus espirituais na “Vida de Moisés”[16] ainda que apresentados de uma outra maneira.
Os milagres de Macrina
No epílogo (VSM 39) São Gregório faz alusão a numerosos milagres feitos por Macrina, milagres de diversos tipos: Curas de doentes, expulsão de demónios, alusão a um milagre feito em tempo de fome: mas não conta muitos detalhes, pois pensa que a santidade de sua irmã é bem conhecida sem que seja preciso acrescentar esses detalhes. Assim, durante o texto da vida de Macrina, só são contados dois milagres, um diz respeito a Macrina mesmo, o outro é sobre um menino, e este segundo milagre dá ocasião a Gregório para fazer um ensinamento filosófico (quer dizer monástico). Estes milagres não foram escolhidos ao acaso. Lembremos que os milagres contados em vidas de santos são para mostrar a semelhança entre o santo, ou a santa, e o Cristo. Os milagres são escolhidos com um critério rigoroso de referência escriturística; aqui a cura de um cego e a unção na fé.
O milagre acontecido em Macrina
Este milagre foi conhecido depois da morte de Macrina, quando Gregório e Vetiana, uma das virgens de Annesia, foram cobrir o corpo de Macrina. De fato, Vetiana contou então a Gregório, que sua irmã tinha tido outrora um grave tumor no seio e tinha recusado tratar-se, apesar da insistência sua mãe. Quando Macrina rezava com lágrimas, no santuário, fez lama com suas lágrimas e colocou a lama no seu seio. Sua mãe convidou-a a fazer o sinal da cruz sobre o seu mal, o que ela fez. O tumor desapareceu, ficou só uma pequena marca para ser “um memorial da intervenção divina, assunto e motivo incessante de ação de graças a Deus”[17]. Este texto mostra a profundidade da fé de Macrina. A própria estrutura do texto lembra as curas evangélicas feitas por Jesus: “Vai, tua fé te salvou”. (Mat 9, 22)
O milagre da menina, filha de um militar
O relato deste milagre é maravilhoso (VSM 37-38), pois há um vai e vem contínuo entre a vida filosófica e a doença da menina filha de um militar. Este militar e sua esposa foram a Annesia para ver Macrina e visitar o mosteiro. Levaram a filha pequena que sofria de um mal num olho, consequência de uma doença infeciosa. O militar visitou o mosteiro dos homens, (dirigido por Pedro, o irmão de Macrina e de Gregório) e sua esposa o das mulheres, dirigido por Macrina. No momento da partida, em sinal de amizade, receberam o convite de partilhar “a mesa filosófica”. A menina estava com sua mãe. Macrina pegou-a no colo, viu o seu mal, e prometeu à mãe uma recompensa por terem vindo à mesa filosófica. Deu-lhe um colírio para curar as doenças dos olhos. Depois da refeição o casal foi embora, e ao longo do caminho perceberam que tinham esquecido o colírio; mas no mesmo instante viram que sua filha estava curada. A mãe percebeu que o verdadeiro colírio tinha sido a oração, remédio divino. O militar pegou a menina nos seus braços e lembrou-se de todos os milagres do evangelho: sua fé os salvou. Estes dois milagres são muito evangélicos. A base comum é a fé. São contados num estilo que imita voluntariamente os sinóticos (ver Luc 4, 40; 7, 21).
A vida de Macrina é uma corrida para o Cristo e com Ele
Lembra o De instituto Christiano atribuído a Gregório de Nissa[18]. Gregório compara sua irmã a um atleta de corrida, e isto diz tudo sobre o caráter de Macrina, que chega quase no fim, tendo ultrapassado seu adversário e anunciando já a vitória, vendo a coroa do vencedor, e fixando o olhar no prémio, que vem do chamado do alto. Macrina vive como um atleta de Cristo. A sua procura do Cristo é libertação progressiva, para o ver. (VSM 23) O Cristo é o seu Amado. Macrina sentia um amor puro e divino por Cristo, seu esposo invisível. Alimentava este amor no mais íntimo do seu ser. Seu coração estava animado pelo desejo de se apressar para o seu Bem Amado, para estar com ele o mais depressa possível, uma vez liberta do seu corpo: “Em verdade era para o seu Amado que se dirigia sua corrida, sem que nenhum prazer da vida a afastasse de sua atenção”[19]. (Não é certo que esta frase seja de Gregório de Nissa)
Fascinada pelo Cristo, ela contempla nele a beleza do Esposo e tem os olhos sempre fixos nele. Morre, como viveu, “vestida como uma noiva” ornada para o seu esposo.[20] Resplandecente de luz, mesmo quando vestida com roupa pobre, Macrina está revestida pela Luz, como Adão e Eva na origem, antes da aventura das túnicas de pele. Como o Cristo, Macrina vive para Deus (Rom. 6, 10) Macrina tornou-se Luz, como seu Criador. Sua vida foi uma ascensão para o Cristo, o final da corrida era um rosto: o do seu Bem Amado.
Felizes os puros de coração, porque verão a Deus!
Para concluir, digamos que a vida de Santa Macrina foi um progresso constante, uma celebração permanente. A busca do ideal filosófico é uma ascensão mística: Libertar-se das paixões, quer dizer dominá-las, é ser crucificado com Cristo, pregar sua carne por meio do temor de Cristo; é purificar sua alma para ser encontrada sem mancha diante de Deus (VSM 24) e ser acolhida por ele. Os valores postos em evidência pela vida filosófica são: a virgindade, a pobreza (a pobreza é a ama da filosofia[21] dirá São Basílio), pobreza que é renúncia a uma carreira, aos hábitos de luxo, e vontade deliberada para se tornar igual aos pobres, daí o sentido profundo do trabalho; todos estes valores não eram um fim em si. O fim é o Cristo. Assim, caminha-se para ele na vida “imaterial” chamada também de vida angélica. Que é que isso quer dizer? Os anjos veem sem cessar a face de Deus; pela contemplação Macrina vive no sociedade dos anjos, “caminhando nas alturas com as forças celestes”[22]. Desde que Cristo se sentou à direita do Pai, com sua humanidade ressuscitada, os homens tornaram-se cidadãos dos céus: subiram ao céu com o Cristo, nasceram para a vida nova. Isto é uma verdade ontológica, não moral. O batismo faz-nos habitantes do céu: “Deus nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus em Cristo Jesus” (Ef. 2, 6). Já estamos aí, somos concidadãos dos anjos, temos a cidadania no céu. Nossa pertença à cidade celeste liberta-nos ontologicamente do domínio da cidade terrestre, e nos coloca sob outra jurisdição, num corpo político. Mas estamos ainda na terra! Sim, é verdade, mas não estamos mais na terra, “somos estrangeiros e peregrinos nesta terra” (Heb 11, 13). Pelo sacramento, mysterium, as realidades do céu vêm comunicar sensivelmente, entrar no tempo, e graças a isso não somos transportados para o céu, em extase, como Plotino, mas ontologicamente.
Concidadãos dos anjos quer dizer confronto com o demónio, o anjo caído, o anjo que exerce sua inveja sobre os que se tornaram concidadãos dos anjos, daí o combate espiritual, que é uma realidade que devemos olhar de frente. Enquanto houver monges e monjas eles lutarão contra os demónios, qualquer que seja a forma que esses demónios tomam, conforme as épocas. A vida monástica não é um simples retorno ao paraíso, é entrada na cidade dos anjos, no reino do Cristo, aonde tudo foi restaurado, e a ordem reestabelecida. Pouco a pouco todo o ser do monge, da monja, é deificado, como aconteceu com Macrina. Enquanto estamos ainda na terra, participamos da cruz do Cristo e ao mesmo tempo exultamos com os anjos. Vivemos nos dois mundos ao mesmo tempo. A missão do monaquismo na Igreja é manter aberta a porta da comunicação entre o céu e a terra, porta por onde os anjos entram e saem, porta por onde a Igreja assiste e participa na liturgia e na vida da cidade celeste.
[1] Este artigo apareceu, sob uma forma diferente, na revista Liturgie nº 124, em Março de 2004, pág. 23-35. Está reproduzido aqui com a licença amável da redação dessa revista e da comunidade de Venière. Esta conferência foi dada em Koubri, na festa de Todos os Santos, no dia 1º de Novembro de 2003; em memória da Madre Marie Hamel e de Ir. Josefina Balma.
[2] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, “Sources Chrétiennes” 178, Cerf, Paris, 1971.
[3] Gregório de Nissa, Discurso Catequético, “Sources Chrétiennes” 453, Cerf, Paris, 2000.
[4] Ver Gregório de Nazianzo, quando da morte de seu pai, da sua mãe e da sua irmã Gorgonia.
[5] Jean Daniélou, “O ministério das mulheres na Igreja antiga”. La Maison-Dieu 61 (1960), pag. 88, www.patristique,org, pág 2.
[6] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 3.
[7] Gregório de Nissa, Ibidem. 8, São Jerónimo, Carta 107.
[8] Annesia é o npome da propriedade rural da família, próxima de Neocesareia, aonde Macrina fundou um convento em 341, www.patristique.org, pág 3
[9] Grégoire de Nysse, Vie de sainte Macrine, 12, p. 185.
[10] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 12.
[11] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 25.
[12] Basílio de Cesareia, Regras Monásticas, PR 312.
[13] Gregório de Nazianzo, Discurso fúnegre por seu irmão Casário, 7, 15, Sources Chrétiennes 405.
[14] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 33.
[15] Ver Gen. 9, 25; Lev. 18,7.
[16] Gregório de Nissa, Vida de Moisés, Sources Chrétiennes 1.
[17] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 31.
[18] Gregório de Nissa, Escritos espirituais.
[19] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 22.
[20] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 32.
[21] Basílio de Cesareia, Cartas I, 4.
[22] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 11.
A atuação da reforma da Liturgia das Horas Monástica na Congregação Beneditina do Brasil
4
Perspectivas
Dom Jerônimo Pereira, OSB
Mosteiro de São Bento, Olinda (Brasil)
Liturgista, professor em Sant’ Anselmo, Roma.
A atuação da reforma
da Liturgia das Horas Monástica
na Congregação Beneditina do Brasil
A vida liturgica emerge como a índole que, em certo sentido, distingue a vida monástica beneditina. Essa perspectiva norteou o Congresso internacional dos Abade e Priores Conventuais da Confederação Beneditina, sediado em Santo Anselmo, Roma, dos dias 19 de setembro a 04 de outubro de 1966, sob a direção do Abade Primaz Benno Walter Gut (1897-1970). O argumento central foi a reforma do Breviário Monástico. A acalorada discussão girava em torno dos temas da pluralidade ou uniformidade, do latim ou da língua vulgar, do canto “moderno” ou do Canto Gregoriano, e, sobretudo para o Saltério, do aplicar o conceito da quantidade ou da qualidade. Era em jogo a procura do equilíbrio entre a letra e o espírito da Regra. O Congresso concluiu-se com a formação de uma comissão – De re liturgica – para estudar a forma mais adequada de responder e harmonizar esses impasses e acalmar os ânimos. No ano sucessivo se deu a segunda parte do Congresso (de 18 a 30 de setembro), como previsto. Votou-se nas propostas apresentadas pela comissão; elegeu-se o novo Abade Primaz, Dom Rembert George Weakland, formou-se uma nova comissão para prosseguir com os estudos, e no dia 15 de outubro do mesmo ano o Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia aprovou o uso ad experimentum do ordo provisório do Saltério, apresentado no Congresso pelo Abade Dom Emmanuel Maria Heufelder (1898-1982), Abade de Niederalteich, Alemanha.
No dia 10 de fevereiro de 1977, a Sagrada Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino aprovou o documento litúrgico preparado pela comissão e apresentado para a aprovação pelo Abade Primaz no dia 11 de novembro de 1976, o Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae[1]. Para a distribuição do Saltério o Thesaurus apresenta quatro esquemas diferentes que levam os nomes dos seus autores: esquema A’ (da Regra de São Bento); B, organizado por um monge da Abadia suíça de Dissentis, Notker Füglister (esquema “Füglister”); C, chamado de “Scheyern” por causa da Abadia homônima alemão onde foi idealizado e D, estruturado pelo trapista Chrysogonus Waddell, da Abadia de Gethsemani, Kentucky, Estados Unidos[2].
O processo de atuação em terras brasileiras
1. A constituição da commissio
Para atuar a reforma do Breviário Monástico em terras brasileiras, o Capítulo Geral da Congregação Beneditina do Brasil, sob a direção de Dom Basílio Penido, Abade do Mosteiro de São Bento em Olinda desde 1964 e Abade Presidente da Congregação de 1972 a 1996, instituiu uma comissão de monges e monjas sob a direção da Madre Maria Teresa Amoroso Lima (1929-2011), então Abadessa da Abadia de Santa Maria, em São Paulo. Compunha a comissão, além da supracitada Abadessa, Dom Timóteo Amoroso Anastácio (1910-1994), Abade do Mosteiro de São Sebastião, na Bahia; Dom Marcos de Araújo Barbosa, poeta e tradutor, da Abadia de Nossa Senhora do Monserrate, no Rio de Janeiro; Ir. Francisca Biolchini (1920-2012), da Abadia de Santa Maria em São Paulo; e duas monjas do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, em Belo Horizonte, a Ir. Maria Teixeira de Lima (1913-2012) e a Madre Martinha Marques Mello (1925-2020). Infelizmente, nos arquivos da Abadia de Santa Maria, não se encontram registros documentais dos trabalhos da comissão.
2. O método de trabalho da commissio e o resultado
A “renovação do Breviário Monástico” consistia na tradução dos textos do então recentemente publicado Thesaurus. A comissão passou a reunir-se regularmente na Abadia de Santa Maria, em São Paulo. Segundo o testemunho da atual Abadessa de Santa Maria, Madre Escolástica Ottoni de Mattos, Dom Abade Timóteo Amoroso Anastácio, foi encarregado da tradução dos textos da Sagrada Escritura, procurando uma linguagem mais poética, enquanto os hinos eram traduzidos pela comissão, competindo a Dom Marcos de Araújo Barbosa os ajustes de métrica e rima da poesia. Os livros da Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico da Congregação Beneditina do Brasil foram publicados em quatro volumes. O primeiro veio à luz no ano de 1981, destinado ao ciclo das manifestações, Advento, Natal e Epifania, incluindo o Próprio dos Santos desse ciclo litúrgico[3]. O segundo volume, destinado às celebrações do Tempo Comum, incluindo as festas do Senhor: SS. Trindade, Corpus Christi, Sagrado Coração de Jesus e Cristo Rei, apareceu no ano seguinte, 1982[4]. No início da Quaresma daquele mesmo ano de 1982 veio à luz o terceiro volume com os formulários para o ciclo da glorificação, Quaresma, Páscoa e Pentecostes[5]. O último volume, o Santoral, traz a data de apresentação da Festa de Santa Rosa de Lima, 23 de agosto do mesmo ano[6].
Os volumes são apresentados pela Madre Maria Teresa como experiência e publicação provisória, em vista de uma publicação completa e definitiva três anos mais tarde. Em todo o caso, apresentam-se escassos de oficialidade: não constam de um nihil obstat e apresentação da parte do Abade Presidente da Congregação e não têm nenhuma forma de “Praenotanda”.
3. Características gerais dos volumes
Em linhas gerais, os volumes, dos quais nunca veio à luz a prometida publicação completa e definitiva, têm a mesma apresentação assinada pela Madre Maria Teresa. Algumas linhas mestras foram observadas para essa publicação “provisória”, das quais apontamos as mais universais: Para manter reduzidas os números das páginas dos fascículos, não se incluiu a totalidade dos textos do Thesaurus, escolhendo apenas os esquemas A’, da Regra de São Bento, e o esquema B (esquema “Füglister”) de distribuição do Saltério. Em muitos casos, em vista do canto, os textos das antífonas do Thesaurus foram substituídos pelos textos do Psalterium Monasticum, de então recente edição pelos monges de Solesmes[7]. Pelo mesmo motivo incluíram-se somente as memorias obrigatórias. No fascículo do Tempo Comum foram incluídas as antífonas do Magnificat e do Benedictus com respectivos responsórios para as semanas pares (II) e ímpares (I). Para o final das Vigílias deu-se a possibilidade de usar o esquema da Regra de São Bento, presente também no Psalterium Monasticum solesmense. Os responsórios das Vigílias, tomados da Liturgia das Horas Romana, apareceram como apêndice, na espera da publicação do Lecionário Beneditino.
4. Questões ligadas ao canto
Com a tradução dos novos livros da Liturgia das Horas Monástica surgiu o problema da adequação do canto, especialmente das antífonas que tinham passado por mudanças dos mais diversos gêneros (mudança de lugar e de ordem, substituição, desaparecimento etc.), sem contar o número de novos textos dos responsórios breves e dos hinos, além das várias festas novas. Para responder a essa lacuna, a Madre Maria Teresa apresentou “pela comissão” o Antiphonale Monasticum pro Diurnis Horis (Ad instar manuscripti)[8]. O Antiphonale oferece “melodias gregorianas para todos os textos, tiradas, em primeiro lugar, das fontes indicadas no ‘Thesaurus’, e também do ‘Psalterium Monasticum’ de Solesmes”. Para estar de acordo com o Psalterium solesmense substituíram-se antífonas indicadas no Thesaurus por outras com sentido similar e já musicadas. Alguns textos foram adaptados a melodias já existentes e copiou-se muitos responsórios breves publicados pelas Beneditinas do SS. Sacramento de Alatri, Itália.
O trabalho de confecção do Antiphonale pode ser dividido praticamente em três etapas: a primeira corresponde ao período da coleta de livros “antigos e novos” entre as comunidades; a segunda, a experimentação que algumas comunidades faziam à medida que as folhas (folhetos) eram impressas e, finalmente, a reunião de todo o material num volume que supera o número de 900 páginas. O critério fundamental era que tudo se aproximasse ao máximo da Liturgia das Horas Monástica que era já em processo de uso nas comunidades. O Antiphonale, impresso de forma muito artesanal, apresenta duas datas. Na primeira página encontra-se a data de 24 de novembro de 1981, onde a Madre Maria Teresa assinala o início das comemorações do 700 aniversário do início do Louvor Divino na Abadia de Santa Maria. Duas páginas depois, no fim da apresentação geral do volume, aparece a data da Festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro) de 1982.
Conclusão e questões abertas
Passadas 4 décadas, a Congregação Beneditina do Brasil nunca procurou levar a cabo o projeto de uma edição definitiva dos seus livros corais. Uma série de inciativas foram tomadas isoladamente, fazendo com que cada comunidade se organizasse de acordo com as suas próprias forças para manter, dentro do possível, uma celebração coral digna.
É bem verdade que somente em 2018 apareceu a tradução oficial da Bíblia, obra da Conferência episcopal (CNBB), de onde se deveriam extrair os textos para o uso litúrgico, cujo Saltério não se adequa ao canto, especialmente coral, e esse ano o Missal Romano, com a tradução dos textos eucológicos.
Com relação ao canto, convém salientar que nem todas as comunidades, pelas mais variadas razões, fazem mais um uso abundante do latim, e consequentemente do Canto Gregoriano, nas suas celebrações, tanto da Missa quanto do Ofício, o que, se de um lado lamenta-se a perda de um tesouro multissecular, de outro alegra-se, porque tal “acidente de percurso” suscitou o desenvolvimento de um repertório justo à atual situação, embora correndo-se sempre o risco de melodias de gosto duvidoso.
O grande desafio de uma reedição dos livros corais para a Congregação Beneditina do Brasil, o que se faz absolutamente necessário, é a manutenção do equilíbrio em manter alta a qualidade da oração coral em todos os seus elementos, sem sufocar a criatividade operosa de cada comunidade, masculina e feminina, levando em consideração as suas mais variadas características, e o fato de estarem espalhadas num território multicultural e de dimensões continentais, chamado Brasil.
[1] Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae, éd. Secretariatus Abbatis Primatis, Tipografia Leberit, Rome, 1977.
[2] Cf. R. M. Leikam, « El Thesaurus liturgiae horarum monasticae de 1977 y la renovación del opus Dei benedictino », Cuadernos Monásticos 86 (1988), 299-330.
[3] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico I: Tempo do Advento, Natal e Epifania, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1981.
[4] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico II: Tempo Comum, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.
[5] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico III: Tempo da Quaresma, Páscoa e Tempo Pascal, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.
[6] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico IV: Próprio e Comum dos Santos, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.
[7] Psalterium Monasticum cum Canticis Novi & Veteris Testamenti. Psalterium Monasticum iuxta regulam S.P.N. Benedicti et alia schemata Liturgiae Horarum Monasticae cum canto gregoriano cura et studio monacorum solesmensium ; abbaye Saint-Pierre, Solesmes, 1981.
[8] Antiphonale Monasticum pro Diurnis Horis (Ad instar manuscripti), ed. Abadia de Santa Maria, São Paulo 1981.
Le Saux-Abhishiktananda, um sacerdote no Espírito
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Grandes figuras da vida monástica
Padre Yann Vagneux
Missões Estrangeiras de Paris (MEP)
Sacerdote em Bénarès (Índia)
Le Saux-Abhishiktananda,
Um sacerdote no Espírito
Por ocasião do quinquagésimo aniversário da morte do irmão Henri Le Saux, publicamos aqui um artigo do P. Yann Vagneux, que já apareceu num número da revista Vies Consacrées, mas que é muito atual .(Com a amável licença do editor e do autor. Este texto apareceu também em Portraits indiens, Médiaspaul, 2022, 215 páginas)
No dia 21 de dezembro 1971, no dia do trigésimo sexto aniversário de sua ordenação, Henri Le Saux (1910 – 1973), mais conhecido com o nome Swami Abhishiktananda, escrevia no seu diário íntimo: “Consagrado para um ministério” mas um ministério que ultrapassa as manifestações ditas eclesiais. Ministério a serviço do mistério, revelação do Mistério. Revelação aos homens do seu próprio mistério pessoal (sic) e também do mistério total, do mistério em si. O monge desaparece, passa para o mistério. O sacerdote revela este mistério. Mas quem pode verdadeiramente revelá-lo, sem se perder nele?” Estas linhas resumem admiravelmente o sacerdócio do monge cristão, que tinha deixado há mais de 20 anos sua longínqua Bretanha, para viver em margens Indianas, aonde o seu ministério de sacerdote foi vivido principalmente em meio hindu. É evidente que o sacerdócio de Abhishiktananda, tal como sua vida, não é somente uma questão de mudar de lugar. No entanto, por mais único e ardente que tenha sido, seu sacerdócio não perdeu nada de sua força inspiradora, sobretudo para aquele que, como ele, deseja encontrar em profundidade o coração da India, para lhe transmitir a novidade do Cristo.
Quaerere Deum
Henri Le Saux entrou aos onze anos, em 1921, no seminário menor de Châteaugiron. Cinco anos mais tarde passou para o seminário maior de Rennes, para aí continuar a sua formação, para ser sacerdote diocesano. Contudo depois da morte de um de seus amigos que queria ser monge, sentiu-se chamado a assumir o lugar dessa vocação jovem, inacabada, e entrou na Abadia Beneditina de Kergonan, em 1929. Alguns meses antes de começar o postulado, confiou ao mestre de noviços os motivos desse novo chamado: “O que me atraiu desde o começo, o que me guia ainda, é a esperança de encontrar a Deus de mais perto. Tenho uma alma muito ambiciosa. Acho que isso é permitido quando se trata de procurar a Deus, e espero não ser dececionado”. Nesta confidência, cheia de entusiasmo juvenil, podemos escutar como eco das palavras que São Bento coloca no coração de sua Regra, como o objetivo da vida monástica “Quaerere Deum “ “Procurar a Deus” e “Nihil amori Christi praeponere”, “Nada antepor ao amor de Cristo”. O Papa Bento XVI, na sua bela conferência em 2008 no Colégio dos Bernardinos explicou o que é o “quaerere Deum” dos monges beneditinos:
“No meio da confusão dos tempos de então, em que nada parecia resistir, os monges desejavam a coisa mais importante: encontrar o que tem valor e permanece para sempre, encontrar a Vida. Procuravam a Deus. Queriam passar das coisas secundárias para as realidades essenciais, para aquilo que é, verdadeiramente, a única coisa importante e segura. (…) Procuravam o definitivo, para além do provisório”.
Parece-nos ler as palavras do jovem monge de Kergonan que pronunciou os votos perpétuos na festa da Ascensão, no dia 30 de Maio 1935. No final desse ano, no dia 21 de Dezembro foi ordenado sacerdote, no mesmo dia em que a Igreja latina festejava então a festa de São Tomé, apóstolo da India.
É importante sublinhar que o sacerdócio de Abhishiktananda foi primeiro vivido no quadro monástico beneditino, de que guardará a marca indelével até ao fim da vida. Seu sacerdócio estava plenamente inscrito no procura do “quaerere Deum” de que Bento XVI dizia ainda:
“Quaerere Deum: como os monges eram cristãos, não se tratava de uma aventura num deserto sem caminho, de uma busca na obscuridade absoluta. O próprio Deus colocou as marcas, aplainou o caminho e sua tarefa era encontrá-lo e segui-lo. Este caminho era sua Palavra oferecida aos homens nos livros da Sagrada Escritura”.
A vida do monge cristão é, de fato marcada pela lectio divina das Escrituras. Estas ecoam na liturgia, com os 7 ofícios diários no coro. O canto gregoriano, de que Henri Le Saux era um apaixonado, por meio de seu ofício de cerimoniário, era todo construído por passagens bíblicas – principalmente os salmos – postos em relevo por meio dessa magnífica sobriedade do canto. Abhishiktananda guardou a nostalgia disso até ao fim da vida e chorou quando os amigos lhe entoaram na India “Dominus dixit”: o introito da missa da meia noite que ele não tinha escutado há dezenas de anos… Em Kergonan, Henri Le Saux era também bibliotecário, quer dizer um cargo que toca um dos lugares centrais da vida monástica. No contato diário com os livros, cultivou uma grande proximidade com os Padres da Igreja, que nos primeiros séculos desenvolveram uma contemplação única do mistério revelado em Cristo. Mas foi, sobretudo, na atmosfera de silêncio tão impressionante em Kergonan, que Henri Le Saux viveu o “quaerere Deum”. Tal era sua vocação de monge, de que escreveu anos mais tarde: “o solitário é na Igreja ministro do silêncio de Deus”.
Os 19 anos que Abhishiktananda viveu na sua abadia beneditina foram fundantes, em particular para viver seu sacerdócio na India, numa cultura tão marcada pela figura do monge, quer seja ele hindu, jaïn, budista ou cristão:
“O monge é o homem do eschaton. E aquele que dá testemunho que o tempo vem da eternidade e vai para eternidade. Quem dá testemunho da advaita, da não dualidade do ser, na sucessão dos tempos e na multiplicidade das formas religiosas”.
O sacerdócio de Melquisedec
Henri Le Saux chegou à India do Sul em 1948 e juntou-se a Jules Monchanin (1895+ - 1957) perto de Trichy, que já vivia aí há mais de dez anos. Ambos fundaram, em 1950, o ashram de Shantivanam, não longe Kulitalai, e escolheram novos nomes cristãos de sannyasis. Monchanin escolheu o nome de Paramarubyananda em honra do Espírito Santo, e Le Saux o nome de Abhishiktananda em referência ao Cristo, o Ungido (abhishikta) do Pai. Por meio do seu humilde ashram desejavam que a Igreja da Índia, já rica, na época, em instituições escolares e médicas, pudesse tornar visível sua forma contemplativa, como Maria aos pés do Senhor, enquanto sua irmã Marta trabalhava no serviço da mesa. Para eles era essencial que o hinduísmo descobrisse que o cristianismo tinha uma longa tradição contemplativa e monástica. Pensavam também que o ashram poderia ser um lugar de diálogo, aonde os cristãos receberiam os dons que o Espírito Santo colocou no coração da Índia.
Alguns anos mais tarde, escrevendo Une messe aux sources du Gange, o relato de sua peregrinação a Gangotri, Abhishiktananda pôs estas palavras na boca de Raimon Panikkar, seu companheiro de caminhada:
“Nosso papel como cristãos na India, é mergulhar nesses tesouros que nos foram legados pelos nossos rishis, nossos videntes, nossos sábios, perscrutar as Escrituras, beber nas fontes mais puras e mais primordiais de sua experiência para transmitir à Igreja os segredos incomparáveis”.
Nesse livro escreveu ainda:
“A India e suas Escrituras fazem parte do imenso Testamento cósmico, que precedeu a Aliança do Sinai e aquela que Deus concluiu com Abraão (…) É como no interior deste Testamento, desta Aliança original que o Espírito prepara a plenitude dos tempos, a vinda do Verbo encarnado através de todos os povos, todos os lugares todos os tempos do Universo”.
Falando de “Testamento cósmico” Abhishiktananda colocava a procura hindu no plano de salvação, bem antes da Revelação cristã. Um tal olhar teológico mais amplo era necessário para justificar tudo o que ele experimentava na descoberta da India. De modo singular descobria esse misterioso “testamento cósmico” nos encontros que fazia com os sannyasis nos caminhos, ou nas grutas de Arunachala. Contemplava ainda os sacerdotes bramânes que oficiavam nos grandes templos do país Tamoul e nos vizinhos em Uttarkashi nos Himalaias, aonde comprou um terreno em Março de 1961 para aí pôr um pequeno eremitério. Abhishiktananda foi, verdadeiramente tocado por essa cumplicidade no sacerdócio que ele experimentava com os pandits hindus. Descrevia assim as missas únicas que celebrava em latim, vizinho deles:
“Já te falei, acho, dessas primeiras missas celebradas na aldeia Himalaia de Gyansu. Ainda que celebrasse o mais cedo possível, o sadhou que morava no quarto em baixo do meu, já estava levantado. Ele salmodiava já a Gita, ou repetia as mantras, pontuando-as com OM vibrantes. Eu murmurava a meia voz os Dominus vobiscum da liturgia. Eram os namah shivaya – Glória a Shiva – que subiam como resposta. Os Hari Om alternavam com os meus Kyrie e os Bhagavan respondiam ao meu Sursum Corda. No templo Shiva, em face, o sino soava e acompanhava os ritos que meu irmão Melquisedec, bramane, celebrava com toda a sua piedade. E eu imaginava nosso Pai do Céu se inclinando com alegria para esta liturgia literalmente cósmica e universal”.
Na sua reflexão sobre a India e o testamento cósmico, uma figura se destaca em particular, a de Melquisedec, esse sacerdote pagão misterioso que veio ao encontro de Abraão para o abençoar (Gen 14, 18-20). Abhishiktananda, tal como Panikkar não hesitava em ver nos sacerdotes hindus os irmãos longínquos do sumo sacerdote cósmico:
“Vês esses sacerdotes do templo da Mãe Gange aqui, os de Kédar, os de Badri, os de todos os santuários da montanha e da planície? Não são irmãos do Melquisedec bíblico, daquele que abençoou Abraão e de quem o sacerdote do rito romano faz memória, cada dia, no momento mais sagrado da liturgia? Melquisedec é, na verdade, o tipo do sacerdote do Testamento cósmico. É segundo sua ordem, e não segundo a ordem de Aarão, o sacerdote da aliança de Israel, que o Cristo quis ser sacerdote, e que nele, eu também o sou”.
Mais ainda, Melquisedec sempre foi considerado pelos Padres da Igreja, como a prefiguração de Cristo. Sobretudo a Carta aos Hebreus mostrou como o sacerdócio de Cristo não descendia do sacerdócio cultual de Aarão e dos sacerdotes do templo de Jerusalém, mas nessa novidade inultrapassável, estava ligado ao sacerdócio de Melquisedec, segundo o versículo do salmo 109 “Jesus tornou-se para sempre sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec” (Heb 6, 20; cf Sal 109, 4).
Ligando os sacerdotes hindus com a misteriosa figura de Melquisedec e a de Cristo, e lembrando-se da menção no canon romano do “sacrifício que te ofereceu Melquisedec, sumo sacerdote, em sinal de sacrifício perfeito”, Abhishiktananda descobria a dimensão cósmica do seu sacerdócio e também o apelo a recolher no sacrifício da missa “todas as orações humanas, todo o desejo humano, toda a verdadeira devoção humana, a verdadeira procura de Deus que se realiza em Cristo”. Numerosos testemunhos ilustram esta dupla descoberta. Assim escrevia do seu eremitério em Uttarkashi a um amigo:
“No lugar preparado na minha cabana, ofererço cada manhã a missa, sentado como o sacerdote bramane, com os ritos da oferenda da água, do incenso, do fogo, leio o Evangelho em sânscrito (…) Pois aqui, como nunca na Igreja, o Cristo se manifesta sacerdote “segundo a ordem de Melquisedec”.
Sobretudo temos o magnífico relato da missa que Abhishiktananda celebrou com Raimon Panikkar em Gangotri, no dia 6 de Junho de 1964 no livro “Une messe aux sources du Gange.” Que catedral melhor do que as fontes do rio sagrado nos Himalaias poderia servir melhor para viver o sacerdócio de Melquisedec? “Realmente há poucos lugares no mundo aonde a Eucaristia é mais esperada, e mais misticamente preparada pelo Espírito, do que aqui, junto às fontes”. Foi aí que a oferenda de sua missa silenciosa podia ir ao encontro da procura milenar do hinduísmo, que ele queria, com o pão e o vinho, unir a oferenda que Jesus fez de sua vida:
“O pão e o vinho que oferecerei na minha missa, aqui em Gangotri, será o apelo para Deus de todos esses peregrinos, que vêm até às fontes sagradas dos Himalaias, de todos estes sacerdotes, de todos estes ascetas, os de hoje, de ontem e de amanhã, pois a Eucaristia transcende o tempo”.
O Guru
Durante 25 anos, desde a sua chegada em 1948 até sua morte em 1973, a India transformou profundamente a visão que Abhishiktananda tinha de seu ministério de sacerdote. O seu povo novo cavou a dimensão monástica do seu sacerdócio, particularmente no “quaerere Deum” – a procura de Deus, que ele descobria tão ardente em numerosos monges hindus – e também o ministério do silêncio de que era testemunha em alguns eremitas silenciosos (muni) escondidos no coração dos Himalaias. Sua vida diária com os hindus aprofundou sua perceção do sacerdócio e dilatou-o a dimensões inesperadas através de novas experiências, como escreve na sua Confidence em 1971:
“Consagrado para um ministério. Mas um ministério que transborda suas manifestações ditas eclesiais. Ministério a serviço do mistério, revelação do Mistério. Revelação aos homens do seu próprio mistério pessoal e também do mistério total, do mistério em si”.
Esta última frase mostra também que uma outra figura da tradição indiana foi determinante para a perceção renovada do seu sacerdócio: a figura do guru, o mestre espiritual.
Alguns meses depois de ter chegado à India, Henri Le Saux teve a graça de encontrar, em Janeiro de 1949, em Tiruvannamalai Sri Ramana Maharsi (1879 – 1950) cujo primeiro darshan lhe deixou uma lembrança inapagável:
“Nesse Sábio de Arunachala, e deste tempo, era o Sábio único da India eterna que estava diante de mim, era a linhagem nunca interrompida desses sábios, desses ascetas, desses videntes, era como a alma da India, que entrava no mais profundo da minha alma, e entrava com uma comunhão misteriosa. Era um apelo que destruía tudo, que rachava tudo, que abria um grande abismo…”
No encontro com o guru que ele fez primeiro com Ramana, e depois em Dezembro de 1955, com Swami Gnanananda, Abhishiktananda descobriu que há no coração do sacerdócio não só um mistério de mediação litúrgica entre o céu e a terra, mas também um mistério de transmissão do Espírito, de quem o guru é a figura carismática. Este aspeto essencial do sacerdócio impôs-se sempre mais, como o testemunha o seu texto de 1966: “O sacerdote que a India espera, que o mundo espera”. Todo o padre católico devia reler este texto, que não envelheceu. Desde as primeiras linhas Abhishiktananda dá o essencial de sua visão:
“No contexto da India, o sacerdote cristão só pode ser guru. (…) O guru, para o hindu, não é um simples pregador que repete simplesmente a quem o quer ouvir, o que aprendeu dos professores, ou nos manuais. É um homem que fala a partir de sua experiência. O guru é alguém que dá um ensinamento de salvação; e não é só no fundo do coração que se escuta o mistério da sabedoria, que brota da experiência da salvação?”
Apoiado na experiência sempre viva do seu encontro com Ramana, Abhishiktananda podia escrever que para um cristão:
“O guru, ou mestre espiritual, é somente aquele que um dia encontrou no fundo da sua alma, a Deus, “o Deus vivo e verdadeiro” de que fala a Bíblia a cada página, e que desde então é marcado, para sempre, com a queimadura desse encontro (…) O guru é aquele que tendo descoberto no fundo do seu coração a chama do ser – não uma abstração, mas o EU SOU que se manifestou no Horeb - sempre reconhece em toda a parte, fora, como dentro de cada criatura, de cada homem, no mais íntimo de tudo o que é, de cada acontecimento, de cada movimento do cosmos que mede o tempo.”
Quer seja em contexto hindu, quer cristão, uma tal experiência é dada pela graça do único guru, o jagadguru: o Deus que mora no fundo do coração. Contudo a luz deste único guru é como refratada por outras luzes, que são ajudas no caminho da experiência espiritual. É o caso, por exemplo que a tradição indiana chama de gurugrantha: as Escrituras sagradas. Abhishiktananda notava ainda a propósito do sacerdote: “Sem dúvida os livros o ajudam na procura do Real – os livros, sobretudo os recebidos de sua Tradição, que lhe comunicam, se é que podem comunicar , a experiência daqueles que tiveram acesso ao mistério interior”. Sobretudo o único guru manifesta-se no darshan dos sábios, cujo ensino se faz, antes de mais, na profundidade do silêncio:
“Sem dúvida terá sido ajudado pelos mestres, pois é por meio de outros que se recebe o ensinamento da salvação, (…) Este ensino não é só comunicação, é comunhão, dir-se-ia em linguagem cristã. Mas é justamente aqui que está o grande segredo. O papel do mestre não é transmitir noções. É antes de mais, despertar o discípulo. Abrir-lhe o olhar interior, aquele que entra dentro e aí reconhece o mistério. Está em abrir o espírito do discípulo ao espírito que o habita, esse Espírito que sonda e perscruta as profundezas de Deus. As palavras que o guru pronuncia, passam da boca ao ouvido exterior, como toda a palavra humana, que se propaga através do ar. Mas mais verdadeiramente a palavra do guru transmite-se diretamente de coração a coração, através desse meio unificante que é o Espírito, a comunhão de todos à Palavra eterna. É por isso que, na India, o silêncio é considerado o meio privilegiado do ensinamento e da sabedoria”.
É evidente que neste texto de 1966, Abhishiktananda apontava um ideal muito elevado do sacerdócio, mas isso era à medida mesmo da India, pois o “sacerdote que a India espera, que o mundo espera” é também “o sacerdote que a India compreende, que o mundo compreende”. Não é de admirar portanto, que o jovem bispo de Bénarés, Patrik D’Souza (1928 – 2014) tenha procurado convencer Abhishiktananda a juntar-se a ele, nas margens do Ganges para o ajudar a fundar um “seminário piloto” que formaria os sacerdotes católicos capazes de serem compreendidos por seus irmãos hindus. Sobretudo este ideal de sacerdote, como mestre espiritual foi vivido de forma tocante por Abhishiktananda no final de sua vida com discípulos: dois bramanes hindus, lalit Sharma e Ramesh Srivastava, irmã Teresa, uma carmelita francesa de Lisieux que se juntou a ele na India e Marc Chaduc. Em 1972 confiava a um amigo numa carta: “Estarei em Haridwar com Teresa; nos dez dias seguintes com Ramesh, o jovem hindu que lê o Evangelho e que me faz descobrir, por meio de uma experiência inexplicável, o que é o guru para o discípulo. Vai muito mais além que a direção espiritual e mesmo a paternidade natural, ou até espiritual”.
A experiência mais ardente de Abhishiktananda como guru foi vivida com Marc Chaduc, um seminarista francês que chegou à India em 1971. Marc foi quem recolheu, mais do que qualquer outro, a experiência espiritual de seu mestre. No dia 30 de Junho de 1973, durante uma diksha ecuménica, no Ganges em Rishikesh, foi introduzido na linhagem dos sannyasi hindus pelo Swami Chidananda da Divine Life Society e na linhagem dos monges cristãos por Henri Le Saux. Misteriosamente, esta data, 30 de Junho 1973, foi o dia em que ele deveria receber a ordenação sacerdotal com seus colegas de seminário na França, mas a India o levava por outro caminho, mesmo se Abhishiktananda continuasse a esperar que um dia se tornaria padre!
“O sacerdócio? Acho que ele espera por você a seu tempo. Um sacerdócio muito espiritualizado, muito além dos limites, um sacerdócio no Espírito. Este dom de você a este sacerdócio, esta diksha do Ganges o mostrará, e o Espírito a seu tempo a ele responderá”.
Marc Chaduc (1944 – 1977), que se tornou Swami Ajatananda nunca se tornou padre, mas na sua vida silenciosa de sannyasi, levou até à incandescência o que fazia o fundo do sacerdócio de Abhishiktananda: o “quaerere Deum”, “procurar a Deus e deixar-se encontrar por Ele”. O desaparecimento físico misterioso de Marc, quatro anos depois da morte do seu guru, pode ser lido como a ilustração de uma dimensão necessária, escondida no coração do sacerdócio, como de toda a vida cristã:
“Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus…pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Col. 3, 2.3)
De fato, para Abhishiktananda, o sacerdote, como todos os verdadeiros espirituais, é um ser que, de certo modo, fica secreto. Esta ideia significa que o mistério do seu encontro com o Deus vivo deve fugir da publicidade, para ser dado e manifestado generosamente só aqueles que que se aproximam dele com autêntica sede espiritual. É assim no verdadeiro reconhecimento de que a tradição hindu diz: quando o discípulo está pronto, o guru aparece.” Assim, a respeito do “sacerdote que a India espera, que o mundo espera”, Abhishiktananda podia ainda escrever:
“Sem dúvida, este sacerdote já está na India e no mundo; raramente num pedestal, a não ser que Deus queira abanar sua Igreja: o mais comum é estar escondido, ser ignorado, exceto de alguns, daqueles em quem o Espírito faz sua morada, e que, conduzidos pelo Espírito, vão a ele.”
O grande hino veda em Purusha – o homem primordial – afirma que: “Com três fases o Purusha subiu ao alto, a quarta ficou em baixo” (Rg Veda X, 4). Esta manifestação ínfima terrestre do Absoluto faz-nos pensar nos icebergs, a parte maior está escondida debaixo de água. Acontece o mesmo com o sacerdócio no espírito, o essencial que é a contemplação do mistério divino através do silêncio e da oração, o “quaerere Deum” deve ficar escondido, para ser a alma de sua ação espiritual no coração do mundo. Tal era a mensagem do sacerdócio de Abhishiktananda:
“O monge desaparece, entra no mistério. O sacerdote revela este mistério. Mas quem pode verdadeiramente revelá-lo, sem se perder nele?”
No fio da história, “Maria conservava estas coisas no seu coração”
6
Arte e liturgia
Dom Ruberval Monteiro, OSB
Mosteiro da Ressurreição, Ponta Grossa (Brasil)[1]
No fio da história
“Maria conservava estas coisas no seu coração”
(Lc 2, 19)
Uma imagem que fala sempre
Frequentemente se pensa que as imagens sejam “decoração” de uma igreja, um mosteiro, de uma casa, de qualquer espaço. Ao contrário, todos os elementos são uma continua comunicação: nada é neutro! Mesmo o vazio das paredes brancas provoca um efeito, nem sempre positivo, sobre nós, filhos do “menos é mais”. Os primeiros cristãos usaram abundantemente imagens para comunicar seus conteúdos simbólicos intraduzíveis em conceitos. Uma falsa teoria muito difusa fez crer que os preceitos anicônicos da tradição hebraica teriam impedido os primeiros cristãos de usar imagens. Ao contrário, estudos sérios[2] e descobertas arqueológicas mostraram como, no período grego romano dos primeiros séculos de nossa era, onde a comunicação era feita por imagens, sejam hebreus como cristãos, influenciados pelos primeiros, usaram-nas a serviço de sua fé e culto[3], e transmitiram um acesso experiencial, não teórico, ao mistério inefável. Neste pequeno artigo veremos um modulo iconográfico usado por todo o primeiro milênio e ainda bastante válido.
O sarcófago Pignatta (s. V), que se encontra em Ravena, traz em seu lado mais curto a figura primitiva de uma esplêndida anunciação: Maria é retratada sentada em um tipo de trono à esquerda, quase completamente envolvida por um manto amplo, e está engajada na arte de tecer um fio levantado na vertical. Diante dela, à direita, o anjo chega ligeiramente inclinado em pé na direção do centro, com asas majestosas que lhe criam como que uma mandala; sua mão direita parece ter portado um rolo de pergaminho ou um bastão de viajante (as figuras são muito deterioradas) e aponta na direção da mão levantada de Maria, enquanto sua esquerda vai na direção do amplo cesto de vime que contém a lã tingida de púrpura. O braço direito da Virgem foi perdido, mas restou o sinal da mão em movimento horizontal na direção do anjo.
A Virgem que fia a lã
Esta iconografia inspira-se na tradição apócrifa onde Maria, à chegada do anjo Gabriel, estava fiando lã para tecer o novo véu do Templo de Jerusalém:
Algum tempo depois, houve um concílio de sacerdotes e eles disseram: ‘Devemos fazer uma tenda para o templo do Senhor’. E o sumo sacerdote ordenou: “Chamem-me donzelas imaculadas da tribo de Davi”. (...) Mas o sumo sacerdote lembrou-se da jovem Maria, que também era da tribo de Davi e era impecável aos olhos de Deus. Os criados foram buscá-la também. Deixaram-nos todos entrar no Templo do Senhor, e o sumo sacerdote lhes falou: «Lançai a sorte sobre quem girará o ouro e amianto, linho fino, seda, jacinto, escarlate e púrpura». Maria foi tocada com a púrpura e escarlate, e ela os tomou e voltou para sua casa. (...) Enquanto isso, Maria, tomando a lã escarlate, girava e fazia o fio.
Um dia Maria pegou o cântaro e saiu para tirar água, e eis que uma voz disse: “Salve, ó cheia de graça! O Senhor está convosco, benditas sois vós entre as mulheres”. Ela olhou ao redor, à esquerda e à direita, de onde vinha a voz. E quando ela ficou toda trêmula, ela foi para casa, abaixou o jarro e pegou a lã purpura, sentou-se em seu banquinho e o fiou. (...) Maria terminou de trabalhar a púrpura e escarlate e lá trouxe para o padre. E o sacerdote a abençoou com estas palavras: “Maria, o Senhor Deus glorificou o teu nome, e serás abençoada por todas as gerações da terra”[4].
Este fio aparece com muita frequência na arte bizantina ocidental e oriental, e somente após a Idade Média esse detalhe desaparecerá da iconografia ocidental enquanto permanece na bizantina. A pergunta que vem à mente é sobre as razões desse detalhe não bíblico e qual é o significado de sua repetição. A referência ao texto dos apócrifos não é suficiente para justificar a representação, uma vez que a arte cristã primitiva não tenta mostrar como as coisas foram no passado (visão histórica), mas seu significado no presente.
Havia muito conteúdo em torno a este pequeno sinal. A lã fiada é um gesto muito antigo para a humanidade: as diferentes fibras de lã se unem em um único fio, graças ao fuso e ao gesto delicado de dedos que controlam a quantidade de fibras para criar uniformidade, e que, pouco a pouco, será enrolado no rolo. Esta atividade, muito comum às mulheres do antigo mundo pré-industrial, tem sido entendida desde os primeiros séculos pelos cristãos como um estupendo símbolo do mistério da Encarnação, no qual, no sagrado movimento redondo do giro do fuso, a matéria humana, no ventre da Virgem Maria, torna-se Verbo de Deus, feito carne. Ela segura na mão o fio púrpura imperial que teceu: seu trabalho agora será tornar-se «o tear da carne de Deus», de acordo com a metáfora de São Proclo de Constantinopla (+447). Sobre o Mistério da Encarnação podemos expressar-nos somente com símbolos, pois as palavras e os conceitos humanos são incapazes. Sobre este fato, papa Bento XVI bem se expressou:
O evangelista Lucas repete várias vezes que Nossa Senhora meditava silenciosamente sobre esses acontecimentos extraordinários em que Deus a havia envolvido. «Maria guardou estas coisas, ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). O verbo grego usado symbállousa significa literalmente «montar» e sugere um grande mistério a ser descoberto aos poucos[5].
A iconografia do fiar, na Idade Média ocidental, dará lugar a uma outra imagem muito semelhante ao gesto artesanal de criar um fio: a salmodia! Maria tem o saltério em suas mãos e «une» Palavra e vida. Esta «junção» faz-nos compreender que o mistério da Encarnação não é apenas algo que aconteceu uma vez no tempo, mas continua na duração da vida, tanto a da Virgem Maria, da Igreja, quanto da nossa, ao longo do ano litúrgico que nos ensina a juntar - sem excluir nada - todas as fibras da nossa história pessoal, comunitária e eclesial, para criar um fio que entrará na peça única diante do Sancta Sanctorum. A cortina ou véu simboliza a revelação de um mistério oculto[6], o limiar da eternidade.
O trabalho artesanal de fiar «simbolicamente» os eventos históricos com os salmos, profetas, evangelho, continua o trabalho que fizeram os Padres da Igreja, tecendo com sua contribuição, a história da Salvação, nos confins entre o já/agora e o ainda não.
O giro do tempo litúrgico nos unifica em seres humanos integrados em si mesmos e com os outros, na urdidura de uma história que supera nosso entendimento, à medida que o tempo avança. Celebrar as festas litúrgicas com atenção, cuidado e amor é sempre uma forma de sair de nós mesmos e nos deixarmos levar para fora de nós mesmos, para contextualizar nosso próprio caminho pessoal em um contexto mais amplo e, portanto, ainda mais verdadeiro. Toda vez que celebramos uma festa ou uma simples hora litúrgica, bem como a recitação de orações que marcam a virada dos dias em nossas vidas, experimentamos fazer parte de um projeto superior aos nossos sentimentos, emoções, desejos e frustrações. “A liturgia tem um valor terapêutico para tudo que, em nós, corre o risco de nos fazer-nos voltar para nós mesmos, fechando para a vida possibilidades de expansão e crescimento”[7].
A iconografia da anunciação primitiva e medieval revela-se, na luz da grande Tradição, um símbolo eficaz para contemplar o Mistério cristológico em si mesmo, assim como um método para uma participação ativa na celebração litúrgica, verdadeiro serviço divino à nossa unificação, como e com o Corpo de Cristo. Afinal, seguindo a imagem simbólica, o divino fiador é Ele mesmo!
[1] Professor de linguagem simbólica, arte e liturgia no Pontifício Instituto Litúrgico de Santo Anselmo, em Roma.
[2] A. GRABAR, « Recherches sur les sources juives de l’art paléochrétien I », Cahiers Archéologiques XI, Paris, 1969, 58-71 ; A. GRABAR, Le vie della creazione nell’iconografia cristiana. Milan 1983, 5.
[3] Cf. P. PRIGENT, L’image dans le judaïsme du IIe au VIe siècles, Labour et Fides, Genève, 1991, 23-42.
[4] « Protovangelo di Giacomo » (X-XII), in Apocrifi del Nuovo Testamento, a cura di MORALDI, L., Unione Tipografico, Torino, 1971, 77-78.
[5] Benoît XVI, Homilia para a Missa na Solenidade de Maria SS.ma Mãe de Deus e no 41º Dia Mundial da Paz, 01.01.2008.
[6] H. PAPASTAVROUP, Le voile, symbole de l’Incarnation - Contribution à une étude sémantique, Cahiers archéologiques 41, Paris 1993, 141-168.
[7] M. SEMERARO, La messa quotidiana, julho, EDB, Bolonha, 2015, 308.
Viagem à Terra Santa
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Notícias
Viagem à Terra Santa
Abril-maio de 2023
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB,
Presidente da AIM
Segunda-feira, 24 de abril de 2023
Antes tarde do que nunca! Esta é a primeira vez que vou à Terra Santa, mesmo tendo realizado tantas viagens ao redor do mundo. Mas, afinal, não é preferível ter um pouco mais de maturidade para abordar uma aventura tão significativa? De qualquer forma, estou com o coração totalmente aberto para viver esta etapa crucial.
Parto com o Padre Andrea Serafino, de Novalesa (Itália), membro da Equipe Internacional da AIM, e Olivier Dumont, tesoureiro da associação dos Amis des Monastères à Travers le Monde (AMTM).
A viagem transcorre sem dificuldades, e somos esperados em Tel Aviv pelo Padre Christian-Marie, da Abadia de Latroun. Este mosteiro acabou de passar por um momento importante: a comunidade recentemente teve uma mudança de abade, Dom René renunciou ao cargo, e Dom Guillaume Jedrzejczak, abade emérito do Monts-des-Cats, também presidente da Fondation des Monastères e recentemente administrador da Abadia de Sept-Fons (França), acaba de ser nomeado abade da comunidade pela Ordem dos Trapistas. Estamos, de fato, em uma comunidade trapista. Dom Guillaume não está presente no mosteiro permanentemente, e é o Padre Christian-Marie, como prior, quem assume a responsabilidade pelo cotidiano da comunidade.
A Abadia de Latroun está localizada a 15 quilômetros a oeste de Jerusalém, na fronteira entre a Cisjordânia e Israel. Ela é conhecida por seu vinho! A abadia foi fundada em 1890 por monges trapistas vindos da Abadia de Sept-Fons, na França. Eles plantaram o primeiro vinhedo em 1898, seguido rapidamente por trabalhos de desmatamento e plantações de oliveiras, videiras, cereais e citros. Os religiosos foram expulsos durante a Primeira Guerra Mundial. O local foi palco de intensos combates durante a Batalha de Latroun em 1948 e passou para o domínio jordaniano após a guerra; atualmente, o mosteiro está em território israelense. A menos de um quilômetro a leste da abadia está o sítio de Emaús Nicópolis, frequentemente citado como o local da Emaús do Evangelho.
Chegando ao mosteiro no final da tarde, tivemos apenas tempo para jantar e imediatamente nos dirigimos à sala do Capítulo para uma reunião com a comunidade sobre as atualidades da AIM. Para enfatizar o sentido de nossa viagem, destaquei o interesse dos mosteiros se aproximarem e se ajudarem mutuamente. Nesta terra de Israel, há seis comunidades da família beneditina. Seria realmente útil que pudessem propor regularmente encontros de consulta, formação e diálogo, como ocorre em outras regiões do mundo.
Terça-feira, 25 de abril
Na terça-feira, 25 de abril, levantamos para as Vigílias às 4h15, seguida pela Missa e Laudes às 6h30. Pela manhã, visitamos o mosteiro. Os edifícios, construídos na primeira metade do século 20, são imponentes e construídos em pedra. Infelizmente, o solo argiloso não permite grande estabilidade para a estrutura, e as paredes apresentam fissuras em evolução por todos os lados, o que demanda trabalhos significativos e custosos.
Há cerca de vinte monges. Eles têm uma ligação especial com o local e desejam permanecer, mesmo que alguns achem que os custos de manutenção sejam desproporcionais. De qualquer forma, a gestão do mosteiro hoje está muito bem conduzida, na esperança de que isso permita enfrentar as necessidades futuras.
A propriedade abrange cerca de cem hectares, parte dos quais são cultivados com vinhas e oliveiras. Portanto, o mosteiro produz azeite de oliva e um vinho notável. A adega está localizada nos edifícios da antiga fazenda que existia antes do mosteiro, ao redor de um prédio primitivo que era uma pousada para peregrinos.
Após a visita e o ofício de Sexta, compartilhamos o almoço com os monges. A mesa é bem servida, mesmo que, como é de se esperar, não inclua carne; o vinho está presente, e um bolo de nozes é servido em nossa homenagem como sobremesa.
Depois de uma longa conversa com o Padre Christian-Marie, à tarde, partimos para a Abadia de Abu Gosh. À nossa chegada, somos fraternalmente recebidos pelo Padre Louis-Marie Coudray, o atual superior. Passamos um longo momento com ele e o Padre Christian-Marie para discutir os diferentes aspectos de nossa viagem e o contexto dos mosteiros da Família Beneditina na Terra Santa. Seria interessante fortalecer os laços entre as diferentes comunidades para imaginar ações comuns, apoio mútuo, consultas ou simplesmente trocas de notícias diretas. Nesse sentido, nossa visita pode ser um estímulo.
O toque das Vésperas nos chama para a igreja românica, onde encontramos as irmãs da comunidade, unidas à dos monges: canto de Vésperas em dois coros (homens e mulheres); breve troca com algumas das irmãs. Planejamos com a Madre Prioresa nossa expedição a Belém amanhã de manhã.
Quarta-feira, 26 de abril
Partimos às 9 horas em direção a Belém com uma irmã da comunidade de Abu Gosh, que devia fazer uma entrega lá. Ela nos leva primeiro ao Campo dos Pastores. É nesse presumível local que, segundo a mensagem dos anjos, os Pastores do Evangelho ouviram o anúncio do nascimento de Jesus. A aldeia árabe de Beit-Sahour, localizada no meio dos campos de Booz, como relata o livro de Rute (Rt 3, 5), foi identificada, segundo a tradição, como o Campo dos Pastores. Não havia muitos peregrinos lá, então pudemos nos recolher em uma caverna e admirar a paisagem de montanhas e prados nas proximidades da cidade de Belém.
Em seguida, visitamos a basílica, que já estava cheia de turistas. Contemplamos os belos afrescos recentemente restauradas em seu interior. A Basílica da Natividade é uma das igrejas mais antigas do mundo, construída, segundo a tradição, no local presumido do nascimento de Jesus de Nazaré. Foi erguida no século IV pelo imperador Constantino I e restaurada por Justiniano no século VI. Desde então, passou por muitas modificações. Atualmente, é administrada pelos Ortodoxos, Armênios e Latinos.
Passamos um momento em oração afastados da multidão na igreja paroquial de Santa Catarina. Neste dia do meu aniversário, pedi para renascer do alto, conforme Jesus convida o velho Nicodemos. Foi um momento particularmente intenso.
Em seguida, fomos a uma loja de artigos religiosos recomendada pela irmã de Abu Gosh, que, no final das contas, concordou em nos levar pessoalmente até as beneditinas de Emmanuel. Elas estão estabelecidas perto do muro de separação entre Israel e a Palestina; o posto de controle não está longe, e ninguém realmente gosta de vir a esta área onde os indesejados podem ser ameaçados pela polícia responsável pelas verificações. Mas, no final, tudo correu bem, e entramos no pátio do mosteiro um pouco antes do meio-dia.
Há uma comunidade muito pequena de quatro irmãs pertencentes à congregação de Maria, Rainha dos Apóstolos (Rixensart, Bélgica). A comunidade segue o rito oriental. A história do mosteiro começa na Argélia no final da Segunda Guerra Mundial, não muito longe do mosteiro de Tibhirine. Como a maioria das pessoas ao redor era de predominantemente árabe-muçulmana, as irmãs beneditinas rezavam os ofícios em árabe. A pedido do patriarca Máximos V, elas concordaram em se mudar para a Terra Santa, onde a vida monástica melquita estava desaparecendo, apesar da presença de uma comunidade importante. Uma família de Belém fez uma doação de um grande terreno em uma das colinas ao redor da gruta da Natividade, com uma vista espetacular do Vale do Jordão e das Montanhas de Moabe. Com o apoio de sua Congregação, elas puderam lançar a primeira pedra, e, em número de três, as irmãs celebraram a primeira liturgia oriental na pequena capela em 1963.
Das quatro irmãs da comunidade atual, uma está estudando na França como parte do STIM. Portanto, agora, há apenas três irmãs no local, e elas também contam com a presença de uma leiga, familiarizada com a comunidade.
Madre Marthe, a prioresa, nos recebe de braços abertos. Ela nos leva diretamente à igreja onde o ofício de Sexta vai acontecer. A capela é coberta por afrescos pintados por irmã Marie-Paul, do mosteiro do Calvário, no Monte das Oliveiras. O efeito é impressionante. O ofício é cantado de maneira muito simples em uma atmosfera extremamente orante. Saímos de lá com o coração cheio de esperança. Madre Marthe preparou o almoço ela mesma, e aproveitamos o tempo para conversar com ela, irmã Anna-Maria e a leiga presente no mosteiro durante a refeição.
Faltou irmã Bénédicte, que estava acompanhando um grupo de peregrinos franceses. São jovens estudantes. Assim como muitos outros grupos hospedados, eles ficam acomodados no local e dormem em uma grande sala, diretamente no chão. A hospitalidade ocupa um lugar importante na vida do mosteiro, além do ateliê de ícones e da produção de compotas ou outros produtos alimentícios.
A presença perto do muro de separação entre Israel e os territórios palestinos confere uma cor especial a essa comunidade. As irmãs não estão de um lado nem do outro; permanecem em território intermediário e oram por todos. Elas têm laços dos dois lados e sempre tentam trabalhar pela reconciliação, custe o que custar.
Madre Marthe explica o significado da pertença da comunidade ao rito greco-católico pela beleza e pelo sentido do sagrado. Concordamos que até a própria fragilidade delas é um testemunho incontestável.
Irmã Anna-Maria é da Romênia. Ela teve uma vida muito rica: foi monja ortodoxa em seu país e, finalmente, foi tocada pela mensagem das irmãs de Belém durante uma viagem que elas fizeram aos mosteiros romenos. Irmã Anna-Maria acabou se juntando a elas.
Saímos muito marcados por esse momento de graça. Madre Marthe nos mostra os arredores, e ficamos felizes ao ver que o jardim é tão bonito quanto os edifícios do mosteiro, ambos com uma grande simplicidade de disposição.
Madre Marthe providenciou um motorista amigo para nos levar de volta a Abu Gosh. Ele é um cristão palestino. Ele não fala francês fluentemente, e tivemos um pouco de dificuldade em iniciar uma verdadeira conversação. No entanto, fomos tocados por sua bondade e disponibilidade.
À noite, depois das Vésperas, compartilhamos uma refeição festiva com os irmãos de Abu Gosh, durante a qual falamos um pouco sobre a AIM. No final da refeição, fui surpreendido pela chegada de um bolo em homenagem ao meu aniversário. A atmosfera é mais do que fraternal. Conversamos longamente, e ficamos felizes!
Quinta-feira, 27 de abrill
Pela manhã deste dia, visitamos a casa dos Irmãos. Originalmente, havia ali uma estalagem, uma pousada construída sobre as ruínas do acampamento romano abandonado no século IX, na época árabe. Servia como ponto de vigilância na rota para Jerusalém. Foi nessa época que a aldeia recebeu o nome de Karyat el-Anab. No século XII, os Cruzados, identificando o local como o Emaús dos Evangelhos, construíram uma igreja e um mosteiro neste local. Estes foram repetidamente destruídos por exércitos muçulmanos, turcos e caucasianos. Após negociações empreendidas pelo imperador Napoleão III, o terreno foi doado à França em 1875. O local foi gradualmente restaurado pelas autoridades francesas e o mosteiro confiado sucessivamente aos franciscanos, lazaristas e depois aos monges beneditinos olivetanos. Estes últimos foram enviados em 1976 pela comunidade do Bec-Hellouin e logo foram acompanhados pelas irmãs oblatas de Santa Francisca Romana. Até hoje, a fonte de Eïn-Marzouk serve como cripta para o edifício religioso. Durante a guerra árabe-israelense, o mosteiro foi usado como enfermaria improvisada pela unidade Harel.
A vila de Abu Gosh abriga uma das maiores mesquitas modernas da região. Ela está localizada nas proximidades do mosteiro.
No final da manhã, nos juntamos à comunidade das irmãs para compartilhar com elas o almoço em seu refeitório. Em seguida, tivemos um encontro com toda a comunidade. Partilha muito boa com muitas perguntas que nos permitiram vislumbrar a diversidade dos membros da comunidade.
Por volta das 16 horas, somos levados a Jerusalém no Monte das Oliveiras para encontrar a comunidade das irmãs do Calvário. Fomos acolhidos muito fraternalmente e, quase imediatamente, participamos das Vésperas. A comunidade é reduzida, mas bastante fervorosa. Desde a chegada, fiquei tocado pelo convite à intimidade neste lugar onde Cristo se retirava com seus discípulos. É um lugar especial, reservado, que merece ser protegido.
Jantamos no alojamento com dois jovens voluntários, um jovem que está lá há vários meses e uma jovem que passou dois meses no local e está prestes a voltar para a França. A comunidade pratica com prazer esse tipo de hospitalidade, que permite às pessoas terem uma experiência humana e espiritual única, colaborando ao mesmo tempo com a vida do lugar.
À noite, admiramos do alto do jardim das irmãs a vista panorâmica da cidade velha, com a Esplanada do Templo, a cúpula da grande Mesquita e as diferentes torres de igrejas que se destacam no horizonte. À direita, mais abaixo, está o cemitério judeu, onde os mortos aguardam a vinda do Messias no vale do Cedrom.
Sexta-feira, 28 de abril
Passamos a manhã explorando os arredores do mosteiro. Visitamos as irmãs russas próximas ao local presumido da Ascensão. Elas são cerca de quarenta. Seu estilo é muito diferente dos monges e monjas ocidentais. Elas vivem em pequenas casas espalhadas por toda a propriedade, e os peregrinos e turistas podem ir e vir à vontade. Estamos aqui como em uma pequena aldeia. Cruzamos com uma irmã ucraniana que cuida do jardim e zela por seu pai em uma cadeira de rodas, muito idoso, completamente surdo e cego; ele é um padre, nos dizem. Ele se parece com um velho staretz. Eles fugiram da Ucrânia e se refugiaram neste mosteiro em Jerusalém. Também conhecemos a irmã cantora da comunidade, que é jordaniana, e a irmã Myriam, que é francesa. Belas partilhas fraternas que mostram a qualidade de sua vida profunda.
Visitamos a mesquita que abriga a impressão do pé de Jesus (no momento da Ascensão). Percorremos as ruas da aldeia árabe que cercam o mosteiro das irmãs do Calvário.
Após o almoço, dedicamos um longo momento de conversa com as beneditinas. Elas nos explicam sua situação e os desafios de sua presença no local. Elas detalham seus projetos. Em seu último Capítulo Geral, deram a si próprias até 2024 para encontrar uma solução viável no local. É preciso esperar para ver se nos próximos meses surgirão ou não pistas concretas que possam permitir-lhes apresentar positivamente sua situação em seu próximo Capítulo em 2024. Parece difícil que a ajuda ou colaboração venham de outras congregações ou comunidades beneditinas; seria mais viável buscar a participação de leigos que aceitassem se comprometer em comunhão com as irmãs, para enfrentar o desafio de uma presença ativa neste local. Caso contrário, outras irmãs assumirão a responsabilidade, se for possível encontrá-las. Em todo caso, seria importante manter uma presença cristã neste local protegido no Monte das Oliveiras.
Em seguida, partimos para a Casa de Abraão para um encontro com os responsáveis das comunidades contemplativas femininas da Terra Santa. Fomos a pé passando pelo meio dos túmulos do cemitério judeu, com uma vista incrível para o vale, a Cidade de Davi e a velha Jerusalém.
La Maison d’Abraham est l’ancien monastère qu’avait fondé les moines de A Casa de Abraão é o antigo mosteiro fundado pelos monges de Belloc no século XIX. O edifício foi completamente restaurado. É um grande êxito a serviço da acolhida de peregrinos que não podem considerar hospedar-se em hotéis, de todas as confissões e religiões.
Estavam presentes dois casais leigos, incluindo o que dirige a casa, e cerca de quinze irmãs beneditinas, carmelitas, das Beatitudes e de Belém. Elas se encontram regularmente com uma temática e questões práticas relacionadas às suas vidas (administração, trabalhos, finanças, etc.). Apresentei-lhes a AIM, auxiliado pelos meus dois companheiros, e muitas perguntas surgem. Abordamos o tema da diversidade no grupo formado pelas irmãs, mas isso continua sem solução. Esse tipo de reunião é um estímulo para considerar também um encontro dos superiores e superiores beneditinos uma vez ou duas por ano. Essa é a proposta que faço.
Sábado, 29 de abril
Hoje, após o almoço, partimos para a Abadia da Dormição. Fomos a pé, atravessando novamente o Vale de Geena, passamos por São Pedro de Alcântara, e então paramos no Muro das Lamentações, onde, de longe, com a testa apoiada na grade exterior, rezo intensamente pela paz; passamos pelo Cenáculo, que, evidentemente, possui toda uma história arquitetural. Nos recolhemos por um momento com emoção. Em seguida, descemos até o túmulo de Davi. Este lugar me toca profundamente, já que são Davi permanece como uma das figuras bíblicas às quais gosto tanto de me referir. Por fim, chegamos à imponente Abadia da Dormição.
Encontramos o Abade que acabara de concluir a visita de um grupo. Ele nos concedeu quase duas horas. Abordamos todos os tipos de assuntos: a história e a vida do mosteiro, a importância para eles da língua e cultura alemãs, que os torna um pouco diferentes dos outros mosteiros, que são predominantemente de cultura francesa; o trabalho educacional com a faculdade de teologia sob uma perspectiva monástica, com cerca de vinte estudantes; os trabalhos de renovação do mosteiro inteiramente financiados pela Alemanha, sendo o proprietário uma associação da cidade de Colônia; a complementaridade de sua fundação em Tabgha, que é um verdadeiro centro espiritual próximo ao Lago de Tiberíades, no local da multiplicação dos pães, e muitas outras coisas.
Visitamos as obras de renovação do mosteiro, que abrangem todos os edifícios; é uma realização ambiciosa que será concluída em alguns meses. Está previsto que a igreja esteja pronta para a bênção abacial do Padre Nikodemus Schnabel, no dia de Pentecostes.
Participamos das Vésperas. Os monges presentes são apenas três, pois, dos outros nove, alguns estão no mosteiro de Tabgha e outros estão envolvidos em vários ministérios. O ofício acontece na cripta dedicada à Dormição da Virgem. Uma representação desta última está no centro da sala de uma maneira impressionante. Durante o período de obras, os ofícios são realizados lá. Claro, tudo é cantado em alemão, de uma maneira muito agradável, em uma acústica generosa.
Almoçamos depois com os três irmãos e a irmã Gabriele do Monte das Oliveiras, que nos serviu de guia nesta tarde. Nos despedimos imediatamente depois, pois o Abade precisa se preparar para uma viagem à Alemanha, logo cedo na manhã seguinte.
No caminho de volta, atravessamos a cidade velha e chegamos ao Santo Sepulcro, que, por sorte, está aberto. Há muitas pessoas lá dentro. Venerei a Pedra da Unção, na entrada, que está bem acessível. Oramos diante do túmulo, um momento sempre impressionante que desejamos que não termine. No entanto, há muita gente e a devoção é um pouco difícil. Então, fomos à Capela de Santa Helena, onde o grupo Harpa Dei está cantando, e suas realizações musicais me interessam. Cantavam as Vésperas, e uni-me à sua oração, encantado. As irmãs conhecem este grupo e poderemos encontrá-las amanhã de manhã. Caminhamos um pouco mais e voltamos de táxi, exaustos.
Domingo, 30 de abril
Depois de celebrar a missa do Bom Pastor, partimos para Jerusalém para nos reunirmos à tarde com os Superiores(as) dos mosteiros. Esta reunião estava marcada para Abu Gosh. Devíamos ir de ônibus e, para isso, primeiro atravessamos a cidade velha de Jerusalém, aproveitando para fazer algumas paradas em lugares sagrados.
Primeiro, fazemos uma parada no local da traição de Judas e da prisão. Há uma pequena basílica aos pés do Monte das Oliveiras. Fico impressionado com a intensidade da emoção que me envolve neste lugar: sinto como se estivesse diante de um imenso abismo. Tenho vontade de me prostrar no chão e implorar o perdão de Deus por todas as nossas (minhas) traições. Em seguida, visitamos o Jardim do Getsêmani e a basílica de estilo art-déco adjacente.
Depois, paramos em Santa Ana, local presumido do nascimento da Virgem Maria. Esta igreja e os prédios ao redor são administrados pelos Padres Brancos. Somos recebidos por um deles, cuja atenção e simplicidade são particularmente impressionantes.
Caminhamos em direção ao Santo Sepulcro, começando entre os Etíopes na parte superior. Tínhamos um encontro marcado com dois membros do grupo Harpa Dei. A discussão é muito estimulante. O grupo viaja pelo mundo, com uma abordagem missionária através da música. Eles devem em breve visitar a França, na região da Normandia. Estou pensando em trazê-los para Ligugé. Eles têm muito a dizer para inspirar a oração monástica. O ofício cantado por eles assume ares de revelação, e mesmo aqueles que não são cristãos são cativados por sua beleza.
Descemos então para a parte inferior e visitamos os Coptas, onde podemos ver túmulos esculpidos na pedra, semelhantes àquele onde Cristo foi sepultado. Impressionante. Ao sair, encontramos o Padre Stéphane, um franciscano francês que, “por acaso”, fez um retiro em Ligugé antes de se juntar aos franciscanos. Ele faz parte da comunidade ligada ao Santo Sepulcro. Ele nos explica entusiasticamente como este lugar mostra a densidade do Corpo de Cristo através de todas as pessoas que o visitam. Elas são de todos os tipos, nem sempre sabem o que estão procurando ou fazendo, mas representam o frenesi do corpo da humanidade salva por Cristo. Assim como o deserto revela o Pai, a Galileia revela o Filho, aqui é o Espírito Santo que se manifesta em um Pentecostes contínuo!
Almoçamos em uma pizzaria na cidade nova e depois embarcamos no ônibus que nos levará a Abu Gosh, onde os superiores dos mosteiros da Família Beneditina na Terra Santa se reunirão. A reunião termina com alguns pontos de atenção:
– É bom que, pelo menos, os superiores(as) se encontrem de tempos em tempos, mesmo que seja apenas para trocar as últimas notícias sobre as diferentes comunidades, aprofundar questões relacionadas à vida da Igreja, do mundo, da situação na Terra Santa e outras...
– Apoio mútuo nos projetos respectivos.
– Ajuda na formação em todos os níveis.
– Proposta de organizar estadias para professos que já têm alguma experiência. Eles poderiam passar dois ou três meses aproveitando ensinamentos, visitas e, principalmente, a experiência concreta dos lugares, in loco. Os participantes viriam da Europa, mas também da Ásia, da África francófona e da América Latina.
A reunião parece ter aberto um caminho: era esse o objetivo.
Depois, voltamos a Jerusalém de ônibus, e ao mosteiro do Monte das Oliveiras de bonde e outro ônibus. Uma longa expedição.
Segunda-feira, 1º de maio
Esta manhã, temos um encontro marcado com o Patriarca Latino de Jerusalém. Cruzamos a cidade de ônibus e chegamos ao patriarcado. O encontro estava agendado para as 9 horas, mas por e-mail, o secretário do Patriarca pediu que estivéssemos lá às 8h30, e esquecemos. Estamos atrasados, então Monsenhor Pizaballa não pode nos receber. O chanceler da diocese está à nossa disposição, e podemos conversar com ele por alguns momentos. Ele nos apresenta um panorama do desenvolvimento da vida religiosa desde a Idade Média. Foi principalmente no século XIX, após um longo período de interrupção, que as fundações se multiplicaram, principalmente na vida religiosa apostólica. As congregações assim fundadas eram alimentadas por recrutamento estrangeiro. Apenas duas congregações autóctones se desenvolveram e permanecem vivas. Os mosteiros, por sua vez, tiveram seus momentos de prosperidade em relação aos sucessos da vida religiosa na Europa (principalmente na França e na Alemanha). Mas hoje, quando a vida religiosa é menos fácil no continente europeu, as comunidades contemplativas da Terra Santa são mais frágeis e as perguntas sobre o futuro são numerosas.
Finalmente, o Patriarca pode se juntar a nós por um momento. Explicamos a ele o propósito de nossa viagem à Terra Santa. Ele está atento, mas resume sua posição em duas frases: “A Terra Santa não é a Europa, é um lugar de fragilidade, precisamos de comunidades religiosas fortes e estáveis. Tudo o que está sendo buscado em termos de futuro da vida religiosa na França, especialmente na colaboração com os leigos, não está em pauta aqui, é muito incerto”. A discussão não pôde ir muito além. Terminamos a conversa rapidamente.
Depois, vamos a Tabgha, no local sagrado da multiplicação dos pães, às margens do Mar de Tiberíades. Lá, encontramos monges da Dormição e irmãs da congregação das Beneditinas do Rei Eucarístico (BSEK, Filipinas). Elas nos recebem para o almoço. Passamos um momento extremamente fraternal com essas cinco irmãs que vivem ali a serviço dos peregrinos, em coordenação com os monges. O local é particularmente impactante. Como muitos, somos tocados ao caminhar à beira do Lago. Temos a sensação de que a qualquer momento, Cristo poderia aparecer com seus discípulos, ali sobre o mar. Muitas vezes, em todos esses lugares sagrados, é a impressão que tive: Cristo está aqui, eu o vejo, gostaria de estar com ele, permanecer com ele, ouvi-lo, viver com seus discípulos e nunca mais o deixar.
Após o almoço, voltamos ao centro de peregrinação e encontramos o Padre Joseph, que nos explica a missão dos monges no local, em comunhão com a comunidade da Dormição, em Jerusalém, da qual dependem. O local é muito bem organizado. A igreja contém mosaicos antigos que ilustram o episódio da multiplicação dos pães. Ficamos impressionados com a fraternidade do nosso interlocutor, que nos guia por toda a casa. É uma realização de cerca de dez anos, em perfeito estado, harmoniosamente inserida no espaço. Estamos cientes do papel importante que essas duas comunidades desempenham neste lugar tão visitado. Quanto mais avança nossa estadia, mais percebemos a necessidade de apoiar essas comunidades monásticas da Terra Santa. Seria grave não mostrar solidariedade.
Retornamos a Jerusalém atravessando as paisagens impressionantes do deserto de Judá, de Jericó e de muitos outros lugares.
Terça-feira, 2 de maio
Nesta terça-feira de manhã, temos um compromisso no Carmelo do Monte das Oliveiras, que fica muito perto do mosteiro das beneditinas onde estamos hospedados. Celebramos a missa e, em seguida, visitamos o local conhecido como Pater, adjacente ao mosteiro. Este é o local dedicado ao ensinamento que Cristo deu aos apóstolos sobre a oração e onde Ele lhes transmitiu o “Pai Nosso”. Essa oração está inscrita nas paredes em 170 idiomas! A capela do mosteiro é dedicada a essa “devoção”. O local se estende por uma área significativa, sendo propriedade do Estado francês, que é responsável por sua manutenção, incluindo a capela, que precisaria de obras e de um mínimo de reestruturação interna. No entanto, as decisões do lado do Estado estão demorando a chegar, e tudo continua em espera. O convento, por sua vez, é independente; são as irmãs que têm a responsabilidade de cuidar e administrar da melhor forma possível.
Encontramos a comunidade, que é bastante numerosa, com algumas jovens irmãs. Apresento a AIM e seus objetivos. O debate é muito aberto, e as perguntas são muitas. Saio impressionado com o belo testemunho desta comunidade, que ocupa bem seu lugar na paisagem local.
Após o almoço, dirigimo-nos ao aeroporto. Último checkpoint: somos verificados. Um de nós quer sair do carro, mas imediatamente, chamando a atenção, as metralhadoras são apontadas para ele. Ele logo volta para o carro e aguarda pacientemente o sinal verde. Isso acontece alguns minutos depois.
Estamos prontos para o embarque, com a mente e o coração ainda cheios dos testemunhos de verdade que recebemos aqui e ali nas comunidades visitadas. Tentamos incentivar os laços mútuos entre as comunidades, estivemos atentos a todos, conforme possível. Esse era o objetivo de nossa viagem: missão cumprida!
Viagem à Índia
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Notícias
Viagem à Índia
11 a 27 de fevereiro de 2023
Irmã Christine Conrath, OSB,
Secretária da AIM
Por ocasião da reunião anual da ISBF (Federação Beneditina Indo-Sri-Lankesa), a irmã Christine Conrath, secretária da AIM, e Madre Anna Brennan, abadessa de Stanbrook e membro da Equipe Internacional, viajaram para a Índia. Aqui estão alguns relatos de sua estadia.
Sábado, 11 – Domingo, 12 de fevereiro
Após uma partida sem incidentes no Aeroporto Charles de Gaulle em Roissy, e um voo direto para Delhi de quase nove horas, chegamos no domingo, 12 de fevereiro, às 10h30, no Aeroporto de Delhi. Temos cinco horas de trânsito, onde precisamos realizar os procedimentos de visto e recuperar nossas bagagens. Em seguida, embarcamos para Cochin, onde chegamos por volta das 19h10. O Abade Clement Ettaniyil, de Kappadu, nos aguarda, e partimos diretamente para Mariamala, Kottayam, onde a reunião da ISBF será realizada: duas horas nas pequenas estradas de Kerala. Chegamos às 21 horas para jantar e dormir. O Padre Bino Tom Cheriyil, superior da comunidade, nos fornece o cronograma para o restante da estadia. Muitos vêm nos cumprimentar, incluindo o Padre James Mylackal, presidente da ISBF.
Segunda-feira, 13 de fevereiro
Às 6h30, celebramos as Laudes, seguidas da missa. Tudo é recitado ou lido em sequência, sem pausas, permanecendo sentados para as doxologias dos salmos – o mesmo ocorrerá para todos os ofícios. Mosquitos vorazes e ventiladores acompanham nossa oração. A missa é presidida pelo Padre Notker Wolf, antigo abade-primaz, acompanhado por Mme. Gerlinde, uma benfeitora distinta dos mosteiros na Índia. Em seguida, tomamos o café da manhã na mesa de honra.
Às 9h30, início da reunião da ISBF: ritos de inauguração, acendimento da lâmpada a óleo, discursos, distribuição de flores, presentes e lenços para todos. Cerca de 60 pessoas estão presentes, entre superiores(as) maiores e alguns monges, monjas e irmãs.
A primeira conferência é ministrada por um bispo local, da família Valombrosana, sobre a paciência. O Padre Notker Wolf intervém em seguida: ele menciona o quanto, nos distúrbios atuais da Igreja, nós, membros desta Igreja, perdemos toda a credibilidade. Sem ter mais o poder, estamos preocupados com o futuro. Há uma mudança de paradigma, pela primeira vez desde a Idade Média. Nesse contexto, qual caminho de inculturação na Índia? Na verdade, esse trabalho é incumbido aos irmãos e irmãs encarregados nas comunidades da Índia. São Bento é muito aberto. Veja, por exemplo, a alimentação: dá-se isso e aquilo para que cada um encontre o que precisa. E se não houver nada, bendizemos a Deus. Nossa ferramenta mais valiosa é a lectio divina. De acordo com a experiência durante suas viagens ao redor do mundo, o Padre Notker observa que as comunidades são mais ou menos contemplativas e mais ou menos apostólicas; mas algo nos é comum: sente-se que é “beneditino”. O amor pela oração comum é um critério de autenticidade. Uma comunidade é como um time de futebol: contamos uns com os outros e nos amamos. É uma escola de paciência. O Espírito Santo é quem guia nosso futuro. Com o amor fervoroso por nossa comunidade e o bom zelo, não precisamos reorganizar nada. Isso não é o que precisamos primeiro. O que é necessário primeiro é a fé, o amor e a escuta. Nossa esperança tem suas raízes em uma vida autêntica. Nesse sentido, vemos tudo o que Jesus suportou, inclusive a negação de Pedro. Agora é nossa vez de segui-lo por esse caminho.
Mme. Gerlinde fornece algumas informações sobre sua Fundação para ajudar as jovens do Nordeste, impedir o tráfico humano e combater a violência doméstica. Ela também luta para ajudar as crianças entregues a si mesmas. Ela visitou a Índia pela primeira vez em 1997. A pandemia de Covid-19 realmente mudou a face do mundo. Ela insiste para que todos permaneçam de olhos abertos para as crianças de rua.
Depois, assistimos ao espetáculo apresentado pela escola St. Kuriakose: danças deslumbrantes, cânticos, ritos de boas-vindas...
À tarde, apresentação da AIM. Embora haja poucas perguntas, os participantes mostram grande interesse: Como estou envolvido no que representamos juntos? Como me sentir envolvido com os outros mantém meu espírito alerta? Por que frequentemente confino meus irmãos e irmãs em sua fragilidade? Isaac da Estrela nos diz claramente que meu irmão e minha irmã não são adversários; eles são uma ajuda, uma oportunidade para eu trabalhar em minha própria conversão. O mais importante não é o que fazemos na Família Beneditina, mas como nos conhecemos, como nos aproximamos uns dos outros. A AIM tenta fortalecer os laços entre todas as comunidades, com paciência, como destacado pelo bispo na abertura, e com essa ferramenta aprimorada da lectio divina, conforme mencionado pelo Padre Notker. Na Europa Ocidental, as comunidades muitas vezes são mais antigas; as comunidades do Sul são o futuro de nossa família religiosa. Mas, mais do que tudo, nosso futuro comum é Jesus Cristo.
O Padre Vincent Korandiarkunnel, prior de Makkiyad, ministra uma palestra sobre sinodalidade, abrindo espaço para uma bela partilha, com o testemunho do Padre Peter Dowe, de Douai Abbey, sobre a preparação muito sinodal da eleição de seu novo abade: foi, de fato, a sinodalidade em ação.
Terça-feira, 14 de fevereiro
A missa é presidida pelo Padre Clément Ettaniyil (Kappadu) no rito sírio-malabar.
Madre Anna Brennan inicia o dia de apresentações com uma palestra sobre “Cor orans”. Ela compartilha sua experiência em seu próprio mosteiro e na Congregação inglesa. Em seguida, o Abade Clément, de Kappadu, fala sobre as medidas de isolamento no contexto da Covid e em relação às medidas recomendadas pela Regra de São Bento em relação à excomunhão. Depois, ocorre a Assembleia Geral da ISBF.
À tarde, um relatório da atividade da DIM-MID regional é apresentado pelo superior de Kumily, o Padre John Kaipallimyalil. Em 7 de dezembro de 2023, celebraremos o 50º aniversário da morte de Henri Le Saux. Madre Vandana apresenta o relatório da CIB. Em seguida, começam os relatórios sobre as diferentes comunidades.
Uma visita é organizada ao mosteiro das Pequenas Irmãs Valombrosanas de São João Gualberto.
Quarta-feira, 15 de fevereiro
O Padre Vincent Kundukulam, professor no Seminário Pontifício São José de Aluva, aborda o trabalho do DIM na Índia. O diálogo consiste, entre pessoas religiosas que têm uma verdadeira competência, em compartilhar como experimentam Deus. Para começar o diálogo, não é necessário ter a mesma representação de Deus. O diálogo não é uma estratégia para conquistar os outros, mas uma fonte para voltar à origem de nossa fé. Ele aplica essa pedagogia à questão da encarnação, que representa uma realidade muito diferente entre cristãos, hindus ou muçulmanos. Como, a partir de visões tão diferentes, voltar à fonte da fé em Deus e poder compartilhá-la? A pedagogia do Padre Vincent pareceu-me excelente.
À tarde, uma excursão de barco leva os membros da ISBF à lagoa de Kumarakam, uma imensa barragem no mar que abre ou fecha as águas do Kerala. A profundidade é de 3 a 5 metros. Paisagens de uma beleza notável e um encantador momento de relaxamento fraterno.
Quinta-feira, 16 de fevereiro
As eleições do Bureau reconduzem o irmão James Mylackal como presidente; o tesoureiro é o Padre Michael Kannala (Valombrosano, Bangalore), e o secretário é o Padre Pinto Irudayaraj (Shantivanam); o Padre Abade Clément cuidará das relações com a AIM.
A próxima reunião da ISBF acontecerá de 4 a 10 de fevereiro de 2024 em Shantivanam.
À tarde, partimos para o priorado de Sta. Scholastica, da congregação Grace and Compassion. As irmãs mantêm lá uma casa para idosos e uma unidade de cuidados paliativos. Elas também têm uma casa de acolhimento para estudantes e uma fazenda.
Em seguida, visitamos as irmãs de Santa Lioba. Elas formam uma comunidade de três membros que hospedam estudantes de medicina.
Depois, chegamos a Kappadu para o jantar. Descoberta do local e, à noite, reunião com adolescentes que estão fazendo um curso de alemão online. Sua professora veio da Alemanha para incentivá-las. Haverá um exame e, em seguida, uma estadia na Alemanha. O mosteiro de Kappadu está muito atento aos estudantes e faz muito por eles de diferentes maneiras.
Sexta-feira, 17 de fevereiro
A missa no rito sírio-malabar é seguida de uma celebração no cemitério antes da Quaresma. Em seguida, fazemos a visita ao mosteiro. A fazenda inclui um estábulo com 63 vacas, cerca de vinte porcos, 2.000 galinhas, 200 coelhos. A cozinha é alimentada pelo biogás gerado pelo esterco das vacas. Há também uma piscicultura e uma plantação de seringueiras. Ultimamente, o preço da borracha foi reduzido para um terço. Existem 300 funcionários ao todo em Kappadu; no entanto, todos os monges estão ocupados, toda a fazenda é administrada pelos aspirantes.
Às 10 horas, saímos de carro para Kurisumala. Chegamos a tempo para o ofício do meio-dia, com um grupo de seminaristas em retiro e seu formador. Para a refeição do meio-dia, sentamo-nos no chão, no claustro; tinham preparado banquetas para nós na biblioteca adjacente ao claustro. Refeição simples em silêncio. Os irmãos servem os hóspedes com arroz acompanhado de molhos, uma dieta vegetariana. Após a refeição, cumprimentamos a comunidade. Visitamos a cela do Padre Francis Acharya e todo o mosteiro. O mosteiro de Kurisumala, OCSO, agora está ligado à abadia de Tarrawarra, na Austrália.
Sábado, 18 de fevereiro
Neste dia em que celebramos os 90 anos do Padre Anselme Maniakupara, um dos fundadores de Kappadu, o Padre Abade Emérito John Kurichianil está presente. Estamos felizes por nos reunirmos. A Madre Nirmala Narikunnel, abadessa de Shantinilayam, junta-se a nós para alguns dias de retiro. Há cerca de 300 convidados. À tarde, partimos para Madurai passando por Jeva Jyothi. Encontramos o bispo emérito responsável pelo mosteiro, junto com a fundadora Madre Lily Thérèse, agora falecida. Observamos a fragilidade dessa comunidade de três irmãs com um capelão carmelita.
Chegamos ao mosteiro de Kumily (St. Michael’s Priory, Angel Valley, Viswanathrapuram), da congregação de St. Otília.
Domingo, 19 de fevereiro
Visitamos uma das atividades do mosteiro: o alojamento de meninos; 60 crianças estão em regime de pensão completa. Embora as aulas sejam ministradas em outro lugar, os irmãos garantem a educação desses jovens.
De manhã, fizemos um passeio tradicional de elefante no “Elephant Junction”, bem ao lado do mosteiro, depois do banho desses mastodontes com um peso médio de 2,5 toneladas. São fêmeas, conhecidas por serem dóceis, sem presas; há três no total. Os elefantes são domesticados e muito obedientes aos comandos do guia: “de pé, deitado, andar, parar, cumprimentar”. Foi uma hora agradável de passeio!
Visitamos o mosteiro no final da manhã, bem como o Centro Espiritual. No jardim, animais selvagens vêm à noite; o mosteiro está no sopé de uma encosta, e a selva está logo acima. No jardim, podem passar búfalos ou tigres (?); de qualquer forma, há uma gaiola de periquitos e uma horta. Os irmãos colhem cerca de 50% de sua produção agrícola, o restante sendo consumido por animais selvagens. Notamos que todas as flores dos cachos de bananas desapareceram, talvez comidas por macacos? Almoçamos em Kumily antes de seguir para Madurai.
Visitamos Madurai à noite, especialmente um magnífico templo com 5.000 anos. É muito difícil transmitir a emoção desses lugares, no meio dessa multidão indiana. Em seguida, os irmãos nos levam ao aeroporto de Madurai para voarmos para Bangalore e nos juntarmos à abadia de Shanti Nilayam.
Segunda-feira, 20 de fevereiro
Visita a Shanti Nilayam, o jardim, a vinha. Um trabalhador diz que seria necessário cercar a vinha antes que as uvas amadurecessem, caso contrário, os vizinhos continuarão se servindo com as irmãs... A cerca é inexistente. A cera utilizada na fabricação de velas é de equipamento obsoleto. Com cera reciclada, mulheres em situação difícil (viúvas, mulheres espancadas que deixaram suas casas, etc.) fabricam velas que são vendidas ou doadas à diocese.
A hospedaria tornou-se insalubre devido às inundações dos últimos anos. Precisaria ser demolida e reconstruída, junto ao muro, na rua; caso contrário, o terreno corre o risco de ser invadido, pois a cidade se aglomera ao longo dos muros. Na hora da reunião à noite, trocamos ideias com a comunidade. As irmãs ainda estão em contato com a comunidade das beneditinas de Ryde, na Inglaterra, que contribuiu para a fundação de Shanti Nilayam. Assim, o mosteiro de Shanti Nilayam insere-se na tradição monástica da congregação de Solesmes, mas adaptado à cultura indiana.
Terça-feira, 21 de fevereiro, Terça-feira de Carnaval
Esta manhã, visitamos o atelier de hóstias.
As irmãs venderam todas as suas vacas, exceto duas. Devido à inundação, o estábulo permaneceu submerso por oito dias e as vacas ficaram doentes. As irmãs já haviam desistido dos galinheiros (quatro edifícios com 2.000 galinhas) devido à concorrência.
A inundação é causada pelo transbordamento do canal de esgoto, obstruído por todos os detritos provenientes das novas habitações do bairro. A rede de esgoto está fora de serviço. O governo recebe a reclamação das irmãs e diz que vai agir, mas não faz nada.
Shanti Nilayam recebe as jovens irmãs de uma fundação na Birmânia (Mianmar) para sua formação. Na missa deste dia, a Irmã Rosa Ciin, da Birmânia, renovou seus votos temporários por um ano. As irmãs birmanesas farão profissão solene juntas neste verão, depois voltarão à Birmânia. A comunidade recebe muitas aspirantes do Nordeste. Elas têm uma média de 18 anos e ainda não dominam bem o inglês.
Visitamos também a comunidade dos valombrosanos em Bangalore.
Quarta-feira de Cinzas, 22 de fevereiro
Neste dia, Madre Nirmala me pede para fazer uma breve exposição à comunidade sobre o desejo na RB, o desejo da Páscoa, o desejo de conversão e a discretio, mãe das virtudes. A exposição é seguida pela distribuição de livros para a Quaresma. Cada irmã escolheu um livro da biblioteca; a abadessa lê o título das obras escolhidas antes de entregá-las às irmãs.
Irmã Asha Thayyil (cujo nome significa “Esperança” em híndi), a nova superiora geral das irmãs de Santa Lioba, que viajará comigo de Bangalore a Bhopal, se junta a nós. As irmãs de Santa Lioba frequentemente fazem retiros em Shanti Nilayam durante sua formação. À noite, temos um momento de descontração na comunidade com algumas pequenas animações propostas pelo noviciado.
Quinta-feira, 23 de fevereiro
Partimos às 5 horas para Bhopal e chegamos no meio da manhã ao mosteiro das irmãs de Santa Lioba. Visitamos o hospital (Dev Mata Hospital) com a Irmã Betty, médica que completou sua formação na Alemanha. Uma ala do hospital é chamada de “Vaticano” (!), porque muitos padres, religiosos e religiosas são tratados lá. Os cristãos são menos minoritários nesta região.
Após o almoço, visitamos a comunidade de Misrod, que mantém um centro de acolhimento para mulheres de rua. Muitas vezes deficientes, rejeitadas pela família e por todos, há 37 mulheres aqui, abrigadas no local, embora a casa tenha apenas capacidade para 30 pessoas. E a polícia continua trazendo mulheres para as irmãs. As residentes prepararam algumas festividades em nossa homenagem. Segue-se uma partilha fascinante com as irmãs desta comunidade. As cenas de violência não são incomuns no início da estadia dessas pessoas tão feridas pela vida.
Depois, exploramos os arredores: vamos ao museu tribal da Índia, uma realização muito bonita que atrai muita gente. Em seguida, fazemos um passeio de barco nesta cidade chamada “Bhopal City of Lakes”. As irmãs planejam criar uma missão às margens do lago, o que me faz sonhar! Retornamos à comunidade e, após o jantar, um pequeno espetáculo oferecido pelas candidatas e jovens irmãs, com danças tradicionais relacionadas à época da colheita.
Sexta-feira, 24 de fevereiro
O Padre Antony Dhande, superior de Shivpuri, se junta a nós. Tomamos o café da manhã com ele e a equipe do hospital adjacente à comunidade. Em seguida, partimos de carro para Sanchi, um centro budista listado como Patrimônio Mundial pela UNESCO. Na estrada, cruzamos o Trópico de Câncer.
Após o almoço, pegamos o trem para Shivpuri. É uma experiência! A estação está lotada. Temos um lugar na classe mais confortável, onde os vagãos são climatizados. Sem dúvida, é mais confortável do que o avião! Na chegada, o Irmão Shivprakash nos espera e nos leva ao priorado de Jeevan Jiothi (Life and Light, Shivpuri). Às 21h30, somos recebidos por uma cerimônia muito acurada: música e cantos interpretados pelos aspirantes.
Sábado, 25 de fevereiro
De manhã, celebramos a missa no convento das três irmãs de Notre-Dame du Jardin, diretamente no pátio da escola. A casa deteriorada afunda no solo. A capela está dilapidada, as paredes rachadas. De acordo com a proposta que votamos no Comitê da AIM, um novo prédio será construído.
Eu passo uma manhã de sonho com as crianças da escola, começando com um espetáculo! Abertura com uma oração, seguida de uma dança com a bandeira indiana, demonstração de ioga e, finalmente, o hino nacional. Nesta data, as crianças da escola primária fazem seus exames, enquanto os mais velhos concluíram o ano escolar.
Vamos a Chattry, onde há um templo budista em mármore branco e incrustações de pedras preciosas. Uma joia, tão bonita quanto o Taj Mahal que não teremos tempo de visitar. Fazemos um passeio pela antiga cidade de Shivpuri e descobrimos o templo Skit.
Depois do almoço, temos contato com as duas comunidades de irmãs que trabalham com os irmãos. Uma comunidade de Ursulinas tem uma pequena escola. Sua economia é muito precária; o governo fechou seu dispensário. Às 18 horas, voltamos à escola para inaugurar e abençoar uma moradia para duas famílias, depois voltamos ao mosteiro para vésperas, seguidas pelo terço, depois adoração do Santíssimo Sacramento.
Domingo, 26 de fevereiro
Após a oração da manhã e o café da manhã, vamos rapidamente à paróquia para a missa às 8h30. Os fiéis chegam às 8 horas e rezam o terço com as jovens candidatas, que têm entre 17 e 23 anos: oito jovens muito determinadas. A missa é celebrada em híndi no rito romano. Depois, somos recebidos pela paróquia. Pedem-me para dizer algumas palavras à assembleia. A jovem que traduz é delegada para a JMJ na Índia; ela está se preparando para a viagem a Lisboa. Após a missa, as saudações estão a todo vapor. “O que você acha da Índia?” me perguntam incessantemente.
Precisamos ir para Délhi, de trem. Fomos recebidos pela Conferência dos Bispos Católicos da Índia, coordenados pelo Padre Jervis C D’Souza, amigo do Padre Anthony. Jantar por volta das 22 horas, o que é normal na Índia. Descobrimos que o Padre Felix Machado está lá, bispo emérito de Bombaim muito ativo no diálogo inter-religioso, que passou seis anos na França.
Segunda-feira, 27 de fevereiro
Missa com Msr. Felix Machado, seguida de café da manhã e partilhas animadas. Ele pergunta notícias do Padre Pierre de Béthune (Clerlande), do Padre Benoît Billot. O que acontece com o DIM francófono desde a morte da Irmã Marie-Bruno, de Liège? Mas precisamos ir para o aeroporto!.
No aeroporto, encontro um contingente de soldados das Nações Unidas, partindo para uma missão de seis meses no Congo para tentar trazer um pouco de paz...
Viagem de volta tranquila, com tantas lembranças, muitas fotos e vídeos, para compartilhar e enriquecer nossa mediateca e os arquivos da AIM! Minha gratidão é imensa a todas as comunidades monásticas encontradas nesta viagem maravilhosa.