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“Toda a vida como liturgia”
Boletim da AIM • 2023 - No 125
Índice
Editorial
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB, Presidente da AIM
Lectio divina
“A paz esteja convosco!”
Dom Adriano Bellini, OSB
Perspectivas
• Liturgia monástica, o grande “hoje” de Deus
Dom J.-P. Longeat, OSB
• Santa Macrina, “Toda a sua vida foi liturgia”
Irmã Véronique Dupont, OSB
• Implementação da reforma da Liturgia monástica das Horas na congregação brasileira
Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB
Reflexão
Os ritos no coração do vínculo social
M. Jean-Claude Ravet
Grandes figuras da vida monástica
Le Saux-Abhishiktananda, um sacerdócio no Espírito
P. Yann Vagneux, MEP
Arte e liturgia
Ao longo da história, “Maria guardou todas essas coisas em seu coração”
Dom Ruberval Monteiro, OSB
Notícias
• Viagem à Terra Santa, abril-maio de 2023
Dom J.-P. Longeat, OSB
• Viagem à Índia, fevereiro de 2023
Irmã Christine Conrath, OSB
Editorial
Este número do Boletim da AIM desejou ser uma reflexão sintética sobre a prática da liturgia nos mosteiros hoje: as conquistas, os questionamentos, as propostas. Não conseguimos enfrentar esse desafio, que teria exigido maior preparo e contato com vários mosteiros nos diferentes continentes para obter um quadro da situação atual.
No entanto, este número ainda trata da liturgia, de uma maneira mais geral e espiritual. Estamos felizes por contar com a contribuição de três beneditinos brasileiros, dois dos quais são professores no Instituto Pontifício de Liturgia, em Santo Anselmo.
Retomamos um estudo da Irmã Véronique Dupont, monja de Vénières e colaboradora incansável da AIM, infelizmente falecida muito rapidamente. Este artigo aborda “a vida como liturgia”, tal como uma Mãe do deserto como Santa Macrina convidou por toda a sua existência.
Também quisemos homenagear a personalidade do Padre Henri Le Saux, neste 50º aniversário de sua morte, com uma contribuição do Padre Yann Vagneux, das Missões Estrangeiras de Paris (MEP). Este estudo já foi publicado na revista “Vida Consagrada”, mas vale a pena destacá-lo.
Por fim, a Irmã Christine, secretária da AIM, apresenta aqui seu relatório de viagem à Índia, por ocasião da reunião do ISBF, seguido pela visita a vários mosteiros, e eu mesmo dou alguns ecos da minha estadia em Israel, encontrando diferentes comunidades da família beneditina na Terra Santa.
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Artigos
A paz esteja convosco! (Lc 24, 35-48)
1
Lectio divina
Dom Adriano Bellini, OSB
Abadia de São Martinho de Ligugé (França)
A paz esteja convosco!
O evangelho de São Lucas 24, 35-48:
uma chave para a liturgia
Jesus não se assemelha ao Messias que os israelitas imaginavam, ou seja, um rei, um sacerdote e um profeta que os libertaria da opressão dos mais poderosos, perdoaria os pecados e traria a salvação consigo. No entanto, o Apóstolo Pedro lembra que Jesus é o Messias que deveria vir, que cumpre plenamente a profecia de toda a Escritura. A hora chegou: precisamos abrir nossos olhos para receber a salvação. Apenas aqueles que se deixam iluminar pela luz do Cristo ressuscitado têm o coração aberto para a inteligência das Escrituras, para relê-las e redescobrir que Ele, o Salvador, nos salva pela humildade, obediência, paixão e morte. É precisamente no momento crucial e doloroso de Sua morte na cruz que Ele realiza as profecias. Como verdadeiro sacerdote, Ele oferece o sacrifício definitivo e revela o poder da realeza de um Deus de amor que não apenas salva Seu povo, mas permanece com ele para sempre.
Os discípulos de Emaús reconheceram Jesus “na fração do pão”, e agora o Senhor se apresenta pessoalmente no meio deles, mostrando-lhes os sinais da crucificação para dissipar o medo e a dúvida; eles também podem tocá-Lo e comer com Ele. O Cristo, o Vivente, assegura-nos de Sua presença real entre nós, especialmente pela Palavra e pela Eucaristia. Podemos e devemos experimentar a alegria de encontrar o Cristo diariamente, para poder comunicar com Ele e receber o perdão, a vida e as bênçãos de que precisamos.
Jesus ressuscitado dirige esta saudação aos discípulos: “A paz esteja convosco!”. A paz é o dom messiânico por excelência, é o dom da ressurreição de Cristo. Mas não é uma paz fabricada de acordo com a mentalidade do mundo. Jesus mesmo diz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não a dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize” (Jo 14, 27). A paz de Cristo é uma paz que transforma a dúvida em certeza, o egoísmo em comunhão, o medo em esperança. Este desejo de paz é profundamente litúrgico, é por meio dele que o bispo inicia toda celebração litúrgica. Não é por acaso que o lema dos beneditinos é “PAX” – paz – e que São Bento é chamado o mensageiro da paz. Geralmente, encontra-se a saudação PAX na entrada de todos os mosteiros; às vezes até uma frase, por exemplo: Sit pax intranti, redeunti gratia sancti (Paz àquele que entra; àquele que sai, leve consigo a graça do santo [Bento], como na entrada da Abadia de São Paulo fora dos Muros, em Roma). Aqueles que passeiam pelo claustro da Abadia de São Martinho têm diante de si mosaicos que lembram com insistência o dom da paz. Não é apenas um desejo de boas-vindas para aqueles que vêm ao mosteiro, mas o sinal de que a comunidade acolhe o hóspede e lhe entrega, ao entrar e sair, o que tem de mais precioso: a paz de Cristo, o dom pascal por excelência. A comunidade monástica em si é chamada a viver de acordo com esta paz, buscá-la, preservá-la e irradiá-la para o mundo: “Busca a paz e segue-a”, diz São Bento (Prólogo 17).
“A paz não é preguiça, nem falsa indiferença, [...] a paz é a atitude de uma alma unida a Deus na caridade.” (Dom Delatte)
A paz nem sempre significa a ausência de problemas ou conflitos. Pelo contrário, Jesus adverte Seus discípulos de que terão que suportar muitas tribulações. A paz que Jesus conquistou com Seu sangue significa, antes de tudo, a certeza de Sua presença, mesmo quando temos que atravessar um mar agitado de dificuldades. Jesus está vivo, caminha conosco e nos dá Sua paz e a alegria do Espírito Santo. Essa paz se realiza quando todos estão empenhados na busca de Deus e do bem comum, quando existe um desejo sincero de comunhão, caridade e doação de si. É esta paz, a paz do Cristo ressuscitado, que trocamos durante a missa.
“Fica conosco, Senhor.” Livra-nos da ignorância e abre os olhos de nossos corações para ouvir Tua palavra e obedecer a Deus. Concede-nos a graça e a alegria extraordinária de encontrar-Te no pão partido a cada celebração eucarística, e que nosso ser seja verdadeiramente transformado pela comunhão com Teu Corpo e Sangue, para que nosso testemunho de fé seja crível, nossa caridade sincera e Tua paz esteja em nós. Amém.
Liturgia monástica: O grande “hoje” de Deus
2
Perspectivas
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Liturgia monástica:
O grande “hoje” de Deus
As poucas reflexões propostas aqui pretendem ser um convite para escolher viver hoje como o dia mais importante e real que nos é dado. Hoje, como todos os dias, tudo acontece pela força e verdade dos seres e das coisas, desde que nossas vidas estejam dispostas a acolhê-los. Como se sabe, a liturgia destaca esse “hodie”, esse presente que nos faz entrar no dia sem fim de Deus.
Essa proposta é feita pensando em todos aqueles que, hoje, como todos os dias desde a criação dos seres humanos, têm sede de ser, de viver, de compreender, de compartilhar, de amar, de existir intensamente em uma humanidade que clama por sua sede e desejo, sem realmente saber quais podem ser o objeto e o modo.
Primeiro, colocaremos a questão da escuta diária: “Hoje, se ouvirdes a minha voz”; depois a do alimento diário: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, e finalmente nos voltaremos para o Dia de Deus, o dia além dos dias, o dia prometido e tão desejado.
“Hoje, se ouvirdes a minha voz, não permitais que se endureçam vossos corações” (Sl 94)
Este versículo do salmo é citado no início da Regra de São Bento:
“Levantemo-nos então finalmente, pois a Escritura nos desperta dizendo: ‘Já é hora de nos levantarmos do sono’. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias: ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações’, (Sl 94, 8). E em outro lugar: ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas’ (Ap 2, 7). E o que ele diz? ‘Vinde, meus filhos, ouvi-me; eu vos ensinarei o temor do Senhor’ (Sl 33, 12). ‘Correi enquanto tendes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos apanhem’ (Jo 12, 35).” (Pról. 8-13).
O salmo 94 é ou era cantado todos os dias no início do Ofício de Vigílias na liturgia beneditina: é por excelência o salmo invitatório, o salmo que convida à oração com suas diferentes partes.
Primeiramente, um apelo geral ao louvor: “Vinde, exultemos de alegria pelo Senhor, aclamemos o Rochedo que nos salva! Avancemos para Ele com ações de graças! A Ele, nossos cânticos e aclamações!”[1]. Em seguida, uma ação de graças pela obra da criação: “Ele é o grande Deus, o Senhor, o Rei, maior do que todos os deuses! Em Sua mão, as profundezas da terra; também a Ele pertencem os cumes das montanhas. A Ele o mar, pois foi Ele que o fez, e os continentes que Suas mãos modelaram.” Antes mesmo de ser reconhecido como o Criador de todas as coisas, o Senhor é confessado como o Deus único, o Deus grande acima de todas as grandezas, de todas as alturas. É por isso que Ele pode segurar em Sua mão todos os elementos criados, das profundezas da terra aos cumes das montanhas, em toda a extensão dos mares e continentes.
Depois, uma oração agradecida pela obra da salvação em relação direta com a caminhada no deserto e as maravilhas ali realizadas pela mão do Senhor. Esta oração é acompanhada de um convite ao arrependimento, garantia da verdadeira ação de graças: “Vinde, inclinemo-nos, prostremo-nos! Adoremos o Senhor que nos fez! Sim, Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz, o rebanho guiado por Sua mão... Não endureçais vossos corações como no deserto, como no dia da revolta e do desafio, quando vossos pais me desafiaram e provocaram, apesar de terem visto o que fiz!” Esta ação de graças pela redenção e este apelo ao arrependimento estão ligados a uma nova confissão de fé: “Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz...”.
Por fim, o salmo termina com uma evocação da promessa feita por Deus ao homem de compartilhar Sua vida em Seu repouso eterno, no último sábado, se o coração humano não se desviar, com uma nova referência ao pecado de Israel no deserto: “Quarenta anos, suportei essa geração; eu disse: ‘É um povo de coração desviado; eles não querem saber dos meus caminhos’. Por isso, jurei na minha ira: ‘Jamais entrarão na terra do meu repouso!’”.
No meio desse conjunto, surge o versículo citado por São Bento: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações!”. Portanto, neste salmo, há a dimensão da memória, a da promessa e a que dá sentido a ambas, a da atualidade cotidiana. Esta é uma das chaves da espiritualidade cristã. São Bento, seguindo a tradição monástica, é um comentarista particularmente notável.
Do que se trata? Trata-se de viver cada dia acordado. Cada manhã e cada instante do dia são um chamado feito pela voz de Deus. Este chamado só pode ser percebido por aqueles que estão atentos a ele. Aqueles que abrem os olhos e os ouvidos de seus corações para ver e ouvir “o que o olho não viu, o ouvido não ouviu, o que Deus preparou para aqueles que O amam” (1 Cor 2, 9 citado por RB 4, 77). O que pode nos tornar infelizes nesta vida é estar aprisionado na ilusão dos sentidos externos. Se vejo apenas com meus olhos físicos, se ouço apenas com os ouvidos do meu corpo, ainda não vi nem ouvi nada que possa me permitir saborear a verdadeira vida.
A cada dia, a cada segundo, através dos seres e das coisas criadas, nos é dada a totalidade da existência. No entanto, muitas vezes, estamos dormindo e só sonhamos. É urgente, constantemente urgente, acordar, levantar, ressuscitar e começar a ouvir: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações”. Este é um dos propósitos essenciais do Evangelho. Para poder ouvir, o coração precisa ser tocado, convertido, circuncidado. É preciso reler a este respeito o discurso da montanha no início do Evangelho de São Mateus. Desde o primeiro versículo do Prólogo, São Bento nos convida: “Escuta, inclina o ouvido do seu coração” (Prol. 1).
Ao comentar o versículo citado do Salmo 94, a epístola aos Hebreus atualiza de maneira especialmente forte nossa relação com a Palavra de Deus, que o homem recebe para colocar em prática, a fim de poder saborear um dia o descanso de Deus: “Viva é a Palavra de Deus, eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, penetra até o ponto de divisão entre a alma e o espírito, entre as articulações e a medula, e pode julgar os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura invisível diante dela, mas tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas” (Hb 4, 12-13). Nossa vida está totalmente orientada para essa perspectiva do hoje da Palavra que ocorre em nossas vidas humanas para que possamos dizer com Cristo: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos esta passagem da Escritura” (Lc 4, 21)?
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje” (Mt 6, 11; Lc 11, 3)
Não basta inclinar o ouvido do coração e não o endurecer para ouvir o chamado do Senhor por meio de Sua Palavra diária; é também necessário aceitar receber o que o Senhor providencia para nós diariamente, de acordo com Sua vontade.
É bom aqui fazer referência à experiência de Israel no deserto. O Senhor providencia gratuitamente para a fome de Seu povo, enviando durante a noite “uma camada de orvalho ao redor do acampamento”. Essa camada de orvalho, uma vez evaporada pela manhã, revela na superfície do solo algo pequeno e granuloso. “Este é o pão que o Senhor vos deu para comer. Eis o que o Senhor ordenou: Cada um recolha conforme o que pode comer”. E Moisés lhes disse: “Que ninguém guarde nada para o dia seguinte”; “Eles recolhiam a cada manhã, cada um conforme o que podia comer, e quando o sol esquentava, aquilo derretia” (cf. Ex 16, 13-21). O alimento diário do maná descido do céu é, portanto, um elemento-chave da espiritualidade do hoje proposto por Deus ao Seu povo.
O Evangelho de São Mateus faz um belo comentário sobre este dom do céu:
“Não vos inquieteis pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. [...] Portanto, não vos inquieteis, dizendo: o que vamos comer? O que vamos beber? O que vamos vestir? [...] Vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso. Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e tudo isso vos será dado por acréscimo. Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados. A cada dia basta o seu próprio mal” (Mt 6, 25-34).
Será que devemos levar esses textos ao pé da letra? Não, isso não é suficiente, é necessário interpretá-los. Mas também é indispensável saber viver essa entrega diária com o abandono de uma fé sempre a ser renovada. Está claro que nossa busca raramente é, em primeiro lugar, pelo Reino de Deus, e é isso que apresenta um problema. Se, como os israelitas no deserto, quisermos fazer provisões de maná, se quisermos acumular o dom de Deus, se não aceitarmos receber diariamente apenas os dons que nos são necessários, não poderemos realizar a vida de Deus neste mundo.
O discurso sobre o Pão da Vida apresenta o cumprimento desse sinal do maná. Cristo nos revela que Ele mesmo é o Pão da Vida. “Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram; este é o pão que desce do céu, para que todo o que dele comer não pereça. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém dele comer, viverá eternamente” (Jo 6, 49-51).
Nosso único verdadeiro alimento cotidiano é Cristo, dado para que o mundo tenha vida. Recebemos isso em Sua palavra ruminada e na oração, no pão da Eucaristia e nos sacramentos, bem como na comunhão fraterna.
Assim, “O pão nosso de cada dia nos dai hoje” só pode ser compreendido plenamente nessa relação diariamente renovada com Cristo entregue. É assim que podemos buscar o Reino e Sua justiça, é assim que podemos nos contentar com o alimento cotidiano.
Toda a vida de Cristo é assim, como relata São Lucas à sua maneira: “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (4, 21); após a cura do paralítico, as testemunhas exclamam: “Hoje, vimos prodígios” (5, 26). “Eis que expulso demônios e realizo curas hoje e amanhã, e no terceiro dia serei consumado! Mas hoje, amanhã e no dia seguinte, devo seguir meu caminho, pois não é conveniente que um profeta pereça fora de Jerusalém” (13, 32-33). “Zaqueu, desce depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa... Hoje, a salvação chegou nesta casa...” (19, 5-9).
Assim, é possível nos interrogar a respeito de nosso alimento diário. Estamos realmente recebendo Cristo em primeiro lugar para cumprir a vontade de Deus, ou estamos nos preocupando com um acúmulo completamente supérfluo que não podemos levar para o túmulo? Nossa vida está sob o sinal primário da Eucaristia, com todas as suas dimensões espiritual, pessoal, comunitária e social, ou é algo particularmente vão? Aceitar receber o alimento cotidiano do Cristo é aceitar que nossos planos imediatos sejam desviados e vivê-los alegremente seguindo Jesus que sobe a Jerusalém em direção ao Seu Êxodo.
São Bento prescreve ao abade lembrar este ensinamento do Evangelho, para que não esqueça “não trate com mais solicitude das coisas transitórias, terrenas e caducas, negligenciando ou tendo em pouco a salvação das almas que lhe foram confiadas, mas pense sempre que recebeu almas a dirigir, das quais deverá também prestar contas. E para que não venha, porventura, a alegar falta de recursos, lembrar-se-á do que está escrito: ‘Buscai primeiro reino de Deus e sua justiça, e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo’” (RB 2, 33-35).
O Dia do Senhor
Mas o hoje real na vida dos crentes é o grande hoje de Deus que se estende por toda a história e muito além. De fato, para o Senhor, “mil anos são como um dia” (Sl 89), e “mais vale um dia nos átrios do Senhor que mil em minha morada” (Sl 83, 11). Este hoje de Deus é o da Sua vinda permanente. O Senhor não cessa de vir, Ele visita a Sua criação, dirige-lhe a palavra, encarna-se nela, promete a Sua vinda gloriosa quando Cristo for tudo em todos.
Assim, a Revelação bíblica está pontuada pela proclamação deste hoje de Deus que se manifesta constantemente na vida dos homens: “Houve uma tarde, houve uma manhã, o primeiro dia” (Gn 1,5); “Este é o dia que o Senhor fez” (Sl 117, 24); “Naquele dia...” incessantemente proclamado nos profetas; esta expressão não visa necessariamente uma projeção no futuro, é um anúncio do dia de hoje, onde cada um é chamado a escolher entre a vida e a morte (cf. Deuteronômio). O Evangelho de São Lucas abre-se com o anúncio da Boa Nova: “Hoje, na cidade de Davi, nasceu-vos um Salvador” (Lc 2, 11), e conclui com a promessa: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).
Mas o que expressa melhor este grande dia de Deus é o hoje da celebração litúrgica. Na liturgia latina, hodie ressoa como uma esperança extraordinária ao longo de todo o ano. O hodie mais famoso é o de Natal: “Hodie Christus natus est…” – “Hoje, Cristo nasceu para nós; hoje, o Salvador apareceu; hoje os anjos cantam na terra, os arcanjos se alegram; hoje os justos exultam, dizendo: ‘Glória a Deus nas alturas’” (antífona do Magnificat das II Vésperas de Natal). Essa antífona encontra sua preparação no ofício da Vigília de Natal, onde é anunciado o hoje da revelação: “Hoje sabereis que o Senhor virá, e amanhã vereis a sua glória”. Podemos adicionar a essa antífona de Natal a da Epifania: “Hodie caelesti sponso” – “Hoje, a Igreja se uniu ao seu Esposo celeste, pois Cristo a lavou de seus pecados no Jordão; os Magos correm com seus presentes para as núpcias reais, e os convivas se alegram com a água transformada em vinho” (antífona do Benedictus das Laudes da Epifania). A antífona do Magnificat das II Vésperas retoma esse tema: “Hoje, a estrela guiou os Magos até o presépio; hoje, a água se transformou em vinho no festim nupcial; hoje, no Jordão, Cristo quis ser batizado por João, para nos salvar”. No mesmo espírito, a antífona do Magnificat das II Vésperas de Pentecostes anuncia o Mistério atualizado neste dia: “Hoje se completaram os dias de Pentecostes; hoje, o Espírito Santo apareceu aos discípulos sob a forma de fogo e derramou sobre eles dons misteriosos; ele os enviou pelo mundo para pregar e testemunhar. Aqueles que crerem e forem batizados serão salvos”. No meio de tudo isso, há obviamente o domingo de Páscoa e o Tempo Pascal, onde ressoa o “Haec dies quam fecit Dominus” tirado do Salmo 117, 24, o salmo pascal por excelência: “Este é o dia que o Senhor fez, exultemos e alegremo-nos nele”. Este dia é o Dia dos dias: o verdadeiro hoje da vida divina. Algumas antífonas marianas recentes (8 de dezembro, 11 de fevereiro) retomaram esse tema, e a liturgia beneditina o aplicou a São Bento, Santa Escolástica e São Mauro. O domingo é o grande Dia do Senhor, ao mesmo tempo o primeiro dia da criação, assim como da redenção na ressurreição de Cristo, e o oitavo dia, dia além dos dias, dia de Deus transfigurando todas as coisas, dia de sua vinda. O sacramental do domingo é verdadeiramente de grande importância para a expressão da vida de Cristo. Devemos desenvolver em cada uma de nossas vidas uma espiritualidade deste cotidiano que é o hoje de Deus. É o dia do nascimento, é o dia do começo, do recomeço, é o dia da ressurreição e é também o hoje da eternidade, o dia em que as aparências desaparecem para dar lugar à realidade, o dia do discernimento, que é outro nome para o julgamento.
Ao cantar os mistérios no hoje, a liturgia faz com que eles se realizem aqui como figura. Os fiéis tornam-se assim contemporâneos dos mistérios celebrados, que tomaram forma num dia do tempo e que estão sempre atuais. Este é o verdadeiro sentido do memorial cristão.
Um velho monge de nosso mosteiro, falecido há alguns anos, viveu a última parte de sua vida na convicção de que cada manhã era domingo, e como era sacristão, ele preparava diariamente tudo o que era necessário para a liturgia dominical. Claro, esse monge idoso tinha perdido um pouco o juízo, a menos que, na verdade, tenhamos sido nós que a perdemos, e ele, nessa candura, a tenha recuperado após cerca de setenta anos de vida monástica.
Um monge do deserto do Egito, no século IV, repetia a si mesmo toda manhã: “Hoje, eu começo”. Que este começo nunca deixe de habitar nossa ação: assim iremos, nas palavras de Gregório de Nissa, “de começo em começo, por começos que não têm fim”, e é assim que chegaremos ao dia sem declínio que Deus nos oferece já em figura.
Conclusão
Não basta estabelecer alguns princípios de análise; é igualmente necessário derivar deles consequências concretas.
Será que realmente ouviremos o chamado que ressoa em nossos ouvidos vindo de Deus? Teremos o coração suficientemente receptivo para entrar no hoje da Palavra? Estamos verdadeiramente nos perguntando se estamos mantendo contato com a Palavra divina de alguma forma (leituras bíblicas e espirituais, oração, meditação, ruminação, lectio divina)? Será que nosso hoje é o advento de Deus em nós e ao nosso redor, procurando e chamando Seu operário de maneiras sempre inesperadas? Faremos da nossa vida um companheirismo cotidiano? Como partilhar o Pão de Deus com irmãos e irmãs? Como receber o maná, que é o verdadeiro Pão da Vida? É evidente que, quando sabemos que metade dos habitantes do nosso planeta morre de fome, realmente nos perguntamos onde está a oração: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”; há, então, impossibilidade de nos tornarmos discípulos na travessia do deserto deste mundo?
Finalmente, como nossa vida testemunha o Dia além dos dias? Sabemos relativizar os bens imediatos para nos entregarmos a Deus, com a coragem de um trabalho incansável, mas desprovido da preocupação de nos promovermos? O dia de Deus é sempre um dia de julgamento, onde somos desnudados para sermos verdadeiramente o que devemos ser: simples criaturas, simples servos que se reconhecem como filhos de Deus para a eternidade. Aí está o nosso tesouro, e “onde está o teu tesouro, aí também estará o teu coração” (Mt 6, 21).
“Este é o dia que o Senhor fez; alegremo-nos, passemo-lo na alegria” (Sl 117, 24).
[1] As citações dos salmos são provenientes da tradução do saltério pelos monges de Ligugé, publicada em “Le Psautier de Ligugé”, edições Saint-Léger, 2019.
Santa Macrina, “Toda a sua vida foi liturgia”
3
Perspectivas
Irmã Véronique Dupont, osb
Abadia Notre-Dame de Venière (França)
Santa Macrina
“Toda a sua vida foi liturgia”[1]
A vida de Santa Macrina
Gregório de Nissa escreveu a vida de Macrina (VSM)[2] talvez em 380, ou mais tarde em 383 no auge de sua carreira, no melhor momento de sua irradiação espiritual. Este texto, contemporâneo da Grande Catequese[3] é o lado espiritual das verdades da fé; é sua ilustração. A ocasião imediata que deu origem à redação deste texto, é conhecida: quando da viagem que fez à Arábia, para dar contas das decisões do primeiro concílio de Constantinopla (381), Gregório encontrou um monge, Olímpio, a quem falou, emocionado, da morte de sua irmã. Muito tocado, Olímpio pediu a Gregório que escrevesse sobre ela, para servir de exemplo para os monges e monjas.
Uma liturgia eucarística
Gregório apresenta a vida de Macrina como uma liturgia eucarística: Macrina prepara o pão, unge as mãos para as coisas sagradas, oferece outras, ela mesma faz memória das magnalia Dei, pede que venha a santificação (epiclese), e morre durante a eucaristia lucernária. Este tipo de morte, no final da oração e no fim da vida, é um lugar comum, habitual, nos relatos cristãos da época[4].
Macrina “punha suas mãos a serviço litúrgico” (ver VSM 5, pág 159) que é que isso quer dizer? Talvez preparava o pão eucarístico, como muitas virgens do seu tempo, como o diz o Padre Daniélou[5]. Ela recebia esse pão nas suas mãos, que por isso eram ungidas (Cristo) e portanto consagradas para todas as ocupações do dia.
Quais eram as ocupações de Macrina durante o dia? “Meditar sobre as realidades divinas, rezar sem cessar, cantar hinos dia e noite, realizar as tarefas indispensáveis da vida. Ela não deixava para os escravos, ou as servas o cuidado das coisas materiais” (VSM 11).
O Primado da Escritura
Macrina tinha sido treinada, desde sua juventude, a meditar as realidades divinas. Aprendeu a ler com as Escrituras. Foi instruída pelas Escrituras. Tudo o que na Escritura inspirada por Deus, era considerado apto para uma criança, era visto como programa de vida, sobretudo na Sabedoria de Salomão, e neste livro, o que contribuía para a vida moral. Também não ignorava nada do saltério, e recitava salmos em determinados momentos do dia; ao sair do leito, ao começar ou terminar o trabalho, no começo das refeições, ao sair da mesa, ao deitar, ou ao levantar-se para rezar, em toda a parte tinha com ela a salmodia, como companheira fiel de cada momento. Toda a educação de Macrina foi feita com a Sagrada Escritura. Por sua vez, o seu irmão mais novo, Basílio, será também inicialmente formado pela Escritura. Daí as abundantes citações e as referências aos textos sapienciais nos escritos de Basílio. Pedro, o último (que virá a ser bispo de Sebaste) também será formado assim. Macrina o educou e o fez aceder à mais alta cultura, exercitando-o nas ciências sagradas desde a infância (VSM 12). Para os Antigos a Escritura era uma porta de entrada para o conhecimento universal. Com a Escritura pode-se aprender a ler, a escrever, a compreender, a descobrir a história, as ciências naturais, a cosmologia, a matemática, a medicina, o simbolismo dos números e, sobretudo, a Sabedoria que é o Cristo. A educação de Macrina e de seus irmãos começou, portanto, quando eram pequenos, pelo estudo dos livros sapienciais e do saltério. Macrina dizia o saltério completo todos os dias: “Nem um só momento falhava”[6] isto quer dizer que o sabia de cor (memorização pelo coração). Achamos o mesmo na Carta 107 de São Jerónimo sobre a pequena Paula: “Que sua língua ainda infantil seja impregnada com a doçura dos salmos… que aprenda em primeiro lugar o Saltério”[7]. Também na Regra, São Bento dá como primeiro trabalho para os jovens estudarem o saltério[8]. Mas o uso escriturístico de Macrina não se resumia ao Antigo Testamento. Macrina vive a vida filosófica, ora o Filósofo é o Cristo. Esta vida de filósofos vivida em Annesia[9] é a vida evangélica vivida como absoluto. Leva em conta os apelos de São Paulo na carta aos Colossenses: “abandonai tudo isto: ira, exaltação, maldade, blasfémia, conversa indecente” (Col 3, 8) e de São Pedro aos cristãos: “ Revesti-vos todos de humildade nas relações mútuas, de uns para com os outros, porque Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (1 P 5, 5). A Vida de Macrina faz referência a numerosas outras citações de textos semelhantes do Novo Testamento. A descrição feita por Gregório, é, no seu estilo próprio, característica dessa época, sinal da passagem do homem velho para a o homem novo (ver Col 3, 9-10). Alguns episódios da vida em Annesia são apresentados por Gregório como evangélicos, provavelmente para fazer a ligação entre a vida monástica e o seguimento de Cristo, a imitação do Cristo. Num dia de fome, Pedro, o irmão de Macrina, conseguiu tantas provisões que a multidão dos visitantes – atraída pela reputação das boas obras do mosteiro – “que o deserto parecia uma cidade”;[10] isto evoca as multidões que seguiam Jesus, por exemplo em São Marcos 1, 45, ou quando da multiplicação dos pães (Mar. 6, 31-34) ou quando das curas. Macrina fazia muitos milagres (CSM 36). Gregório quer assim mostrar que o ideal da filosofia, é a perfeição da vida cristã, e que seguir esse ideal não é o seguimento de uma abstração, mas de uma pessoa: Cristo. Rezar sem cessar, cantar os louvores de Deus é para Macrina e seus companheiros, o seu trabalho e o seu repouso depois do trabalho (VSM 11).
Trabalho / repouso; trabalho / descanso;
Vacare Deum, férias em Deus, repouso em Deus
O labor da salmodia e do canto dos hinos é fonte de energia, alimento. Neste sentido a vida em Annesia é uma vida “angélica”, pois os anjos louvam a Deus sem cessar (VSM 12 e 15). Primazia é sempre dada ao Ofício Divino. Macrina, doente, embora sabendo que é a última vez que conversa com seu irmão, interrompe esse diálogo espiritual (que no fundo é uma anamnese das Magnalia Dei) (VSM 20) assim que ouviu o começo do Lucernário. Imediatamente mandou seu irmão para a Igreja, enquanto ela se refugia, junto de Deus, na oração (VSM 22). No final de sua oração fez o sinal da cruz e “deixou de rezar e de viver”.[11]
Três celebrações
Mais do que sublinhar todos os traços de “liturgia” na vida de Macrina, olhemos três celebrações litúrgicas: O acolhimento de um hóspede, a morte em Cristo, a liturgia do funeral.
O acolhimento de um hóspede
Quando Gregório, bispo, chega a Annesia para ver sua irmã doente, o grupo dos homens (monges instalados num lugar mais afastado na sua imensa propriedade familiar) vai ao seu encontro, enquanto que o grupo das virgens, alinhado em boa ordem, junto da igreja espera aí a chegada de Gregório. Gregório entra, reza, dá a bênção às virgens que se inclinam (VSM 16). Do mesmo modo, quando um hóspede chega ao mosteiro, ou a uma fraternidade basiliana, começa-se por rezar[12]. É um costume já muito bem atestado no quarto século, no Oriente. Encontramos isso também na Regra de São Bento (RB 53). Este costume se tornou universal no mundo monástico.
Morrer em Cristo
Quanto mais Macrina sente que sua morte biológica está próxima (no final do dia, o que é também um símbolo), mais pressa tem de ir para o seu Bem-Amado (VSM 23). Seu leito está virado para o Oriente. É no oriente que os primeiros cristãos colocavam o paraíso; é do Oriente que esperam a volta do Cristo, e também a vinda dos anjos que acolhem a alma dos justos e a conduzem ao paraíso de Deus. Pacômio vê no oriente a alma de um irmão levada pelos anjos. Macrina contempla a beleza do Esposo, no lado do Oriente, com os olhos fixos nele. Rezando, Macrina faz o sinal da cruz na sua boca, nos seus olhos e no seu coração: forma de proteção de todo o seu ser contra os demónios. Depois manifesta o desejo de dizer a oração da eucaristia do Lucernário, quer dizer a grande oração da tarde. Fá-lo com gestos e no seu coração, pois a febre não a deixa mais falar. Esta oração termina com um grande sinal da cruz, e com um profundo suspiro deixa de rezar e de viver (VSM 25). Este modo de nos apresentar a morte de Macrina quer dizer que toda a sua vida era oração, se tinha tornado uma liturgia. Isto não significa que tudo o que realizamos na vida monástica seja um ritual, nem por sombras, mas sim que nada está excluído da nossa vida cristã: “Tudo é vosso, vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 22-23).
A liturgia do funeral
Um fato contado por Gregório mostra que a liturgia impregna toda a vida monástica. Quando Macrina morreu, entoou-se cantos fúnebres. Ela tinha fixado um tempo para as lágrimas (VSM 27), prescrevendo que se chorasse no tempo da oração, mas dizia que essas lágrimas não deviam ser gemidos, nem lamentos. Quer dizer há um tempo para tudo, um tempo para chorar e um tempo para dar graças. Mas, se há um tempo para tudo, isso não significa que se pode fazer as coisas de qualquer forma. Pode-se expressar a dor na liturgia (cf o canto dos salmos por exemplo). Jesus também chorou. Chora-se, mas não com gemidos. Sob a direção de Lampadion, a mestra de coro, as virgens salmodiam “pois os salmos acalmam os lamentos” diz Gregório de Nazianzo[13] Passa-se a noite a cantar hinos, como para os mártires. Isto não significa que a morte de Macrina seja igual à de um mártir, mas sim porque ela foi fiel até ao fim! É por isso que a celebração de um jubileu, de um funeral de uma monja é uma celebração maior do que a da profissão monástica: a profissão é grave, mas é uma promessa para o futuro; a morte de uma monja é a promessa realizada. A salmodia canta-se em dois coros. Um coro feminino: as monjas de Annesia e as outras mulheres (pois veio uma grande multidão, não sem às vezes perturbar a salmodia), e um coro masculino: os monges e os outros homens. Estes coros alternam, ou cantam juntos, mas formam um coro “perfeitamente homogéneo graças à melodia comum”[14]. O cortejo fúnebre põe-se a caminho para a capela, situada a um km e meio, e dedicada aos 40 mártires de Sebaste. Aí já repousam os pais da defunta. O cortejo é liderado pelo bispo Araxios, a quem Gregório mostra o caminho. Sabe-se que esse cortejo, por causa da multidão, demorou o dia todo. Foi uma verdadeira procissão litúrgica (VSM 34) com diáconos, clérigos menores, turiferários e outros. Durante todo o trajeto salmodiou-se, como os três jovens na sarça ardente, a uma só voz (ver Dan. 3, 51). No momento da abertura do túmulo, uma das virgens começou a chorar em voz alta, seguida de outras e gerou-se uma confusão. Gregório, finalmente, pediu silêncio, o cantor convidou para a oração e o povo acalmou-se. Como as virgens sábias (Mat 25), o cortejo vai ao encontro do Esposo, o rosto de Macrina iluminou-se. Para o baixar do corpo (VSM 35) note-se um costume bíblico praticado nesse tempo: para não ver a nudez dos pais (mortos há muito tempo) – os gregos não aguentavam tal espetáculo – cobria-se o corpo deles (o que restava do esqueleto) com um lençol novo[15] e se colocou Macrina junto de sua mãe, conforme a vontade das duas. A vida de Macrina é uma ascensão mística para o Cristo. Encontramos os mesmos graus espirituais na “Vida de Moisés”[16] ainda que apresentados de uma outra maneira.
Os milagres de Macrina
No epílogo (VSM 39) São Gregório faz alusão a numerosos milagres feitos por Macrina, milagres de diversos tipos: Curas de doentes, expulsão de demónios, alusão a um milagre feito em tempo de fome: mas não conta muitos detalhes, pois pensa que a santidade de sua irmã é bem conhecida sem que seja preciso acrescentar esses detalhes. Assim, durante o texto da vida de Macrina, só são contados dois milagres, um diz respeito a Macrina mesmo, o outro é sobre um menino, e este segundo milagre dá ocasião a Gregório para fazer um ensinamento filosófico (quer dizer monástico). Estes milagres não foram escolhidos ao acaso. Lembremos que os milagres contados em vidas de santos são para mostrar a semelhança entre o santo, ou a santa, e o Cristo. Os milagres são escolhidos com um critério rigoroso de referência escriturística; aqui a cura de um cego e a unção na fé.
O milagre acontecido em Macrina
Este milagre foi conhecido depois da morte de Macrina, quando Gregório e Vetiana, uma das virgens de Annesia, foram cobrir o corpo de Macrina. De fato, Vetiana contou então a Gregório, que sua irmã tinha tido outrora um grave tumor no seio e tinha recusado tratar-se, apesar da insistência sua mãe. Quando Macrina rezava com lágrimas, no santuário, fez lama com suas lágrimas e colocou a lama no seu seio. Sua mãe convidou-a a fazer o sinal da cruz sobre o seu mal, o que ela fez. O tumor desapareceu, ficou só uma pequena marca para ser “um memorial da intervenção divina, assunto e motivo incessante de ação de graças a Deus”[17]. Este texto mostra a profundidade da fé de Macrina. A própria estrutura do texto lembra as curas evangélicas feitas por Jesus: “Vai, tua fé te salvou”. (Mat 9, 22)
O milagre da menina, filha de um militar
O relato deste milagre é maravilhoso (VSM 37-38), pois há um vai e vem contínuo entre a vida filosófica e a doença da menina filha de um militar. Este militar e sua esposa foram a Annesia para ver Macrina e visitar o mosteiro. Levaram a filha pequena que sofria de um mal num olho, consequência de uma doença infeciosa. O militar visitou o mosteiro dos homens, (dirigido por Pedro, o irmão de Macrina e de Gregório) e sua esposa o das mulheres, dirigido por Macrina. No momento da partida, em sinal de amizade, receberam o convite de partilhar “a mesa filosófica”. A menina estava com sua mãe. Macrina pegou-a no colo, viu o seu mal, e prometeu à mãe uma recompensa por terem vindo à mesa filosófica. Deu-lhe um colírio para curar as doenças dos olhos. Depois da refeição o casal foi embora, e ao longo do caminho perceberam que tinham esquecido o colírio; mas no mesmo instante viram que sua filha estava curada. A mãe percebeu que o verdadeiro colírio tinha sido a oração, remédio divino. O militar pegou a menina nos seus braços e lembrou-se de todos os milagres do evangelho: sua fé os salvou. Estes dois milagres são muito evangélicos. A base comum é a fé. São contados num estilo que imita voluntariamente os sinóticos (ver Luc 4, 40; 7, 21).
A vida de Macrina é uma corrida para o Cristo e com Ele
Lembra o De instituto Christiano atribuído a Gregório de Nissa[18]. Gregório compara sua irmã a um atleta de corrida, e isto diz tudo sobre o caráter de Macrina, que chega quase no fim, tendo ultrapassado seu adversário e anunciando já a vitória, vendo a coroa do vencedor, e fixando o olhar no prémio, que vem do chamado do alto. Macrina vive como um atleta de Cristo. A sua procura do Cristo é libertação progressiva, para o ver. (VSM 23) O Cristo é o seu Amado. Macrina sentia um amor puro e divino por Cristo, seu esposo invisível. Alimentava este amor no mais íntimo do seu ser. Seu coração estava animado pelo desejo de se apressar para o seu Bem Amado, para estar com ele o mais depressa possível, uma vez liberta do seu corpo: “Em verdade era para o seu Amado que se dirigia sua corrida, sem que nenhum prazer da vida a afastasse de sua atenção”[19]. (Não é certo que esta frase seja de Gregório de Nissa)
Fascinada pelo Cristo, ela contempla nele a beleza do Esposo e tem os olhos sempre fixos nele. Morre, como viveu, “vestida como uma noiva” ornada para o seu esposo.[20] Resplandecente de luz, mesmo quando vestida com roupa pobre, Macrina está revestida pela Luz, como Adão e Eva na origem, antes da aventura das túnicas de pele. Como o Cristo, Macrina vive para Deus (Rom. 6, 10) Macrina tornou-se Luz, como seu Criador. Sua vida foi uma ascensão para o Cristo, o final da corrida era um rosto: o do seu Bem Amado.
Felizes os puros de coração, porque verão a Deus!
Para concluir, digamos que a vida de Santa Macrina foi um progresso constante, uma celebração permanente. A busca do ideal filosófico é uma ascensão mística: Libertar-se das paixões, quer dizer dominá-las, é ser crucificado com Cristo, pregar sua carne por meio do temor de Cristo; é purificar sua alma para ser encontrada sem mancha diante de Deus (VSM 24) e ser acolhida por ele. Os valores postos em evidência pela vida filosófica são: a virgindade, a pobreza (a pobreza é a ama da filosofia[21] dirá São Basílio), pobreza que é renúncia a uma carreira, aos hábitos de luxo, e vontade deliberada para se tornar igual aos pobres, daí o sentido profundo do trabalho; todos estes valores não eram um fim em si. O fim é o Cristo. Assim, caminha-se para ele na vida “imaterial” chamada também de vida angélica. Que é que isso quer dizer? Os anjos veem sem cessar a face de Deus; pela contemplação Macrina vive no sociedade dos anjos, “caminhando nas alturas com as forças celestes”[22]. Desde que Cristo se sentou à direita do Pai, com sua humanidade ressuscitada, os homens tornaram-se cidadãos dos céus: subiram ao céu com o Cristo, nasceram para a vida nova. Isto é uma verdade ontológica, não moral. O batismo faz-nos habitantes do céu: “Deus nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus em Cristo Jesus” (Ef. 2, 6). Já estamos aí, somos concidadãos dos anjos, temos a cidadania no céu. Nossa pertença à cidade celeste liberta-nos ontologicamente do domínio da cidade terrestre, e nos coloca sob outra jurisdição, num corpo político. Mas estamos ainda na terra! Sim, é verdade, mas não estamos mais na terra, “somos estrangeiros e peregrinos nesta terra” (Heb 11, 13). Pelo sacramento, mysterium, as realidades do céu vêm comunicar sensivelmente, entrar no tempo, e graças a isso não somos transportados para o céu, em extase, como Plotino, mas ontologicamente.
Concidadãos dos anjos quer dizer confronto com o demónio, o anjo caído, o anjo que exerce sua inveja sobre os que se tornaram concidadãos dos anjos, daí o combate espiritual, que é uma realidade que devemos olhar de frente. Enquanto houver monges e monjas eles lutarão contra os demónios, qualquer que seja a forma que esses demónios tomam, conforme as épocas. A vida monástica não é um simples retorno ao paraíso, é entrada na cidade dos anjos, no reino do Cristo, aonde tudo foi restaurado, e a ordem reestabelecida. Pouco a pouco todo o ser do monge, da monja, é deificado, como aconteceu com Macrina. Enquanto estamos ainda na terra, participamos da cruz do Cristo e ao mesmo tempo exultamos com os anjos. Vivemos nos dois mundos ao mesmo tempo. A missão do monaquismo na Igreja é manter aberta a porta da comunicação entre o céu e a terra, porta por onde os anjos entram e saem, porta por onde a Igreja assiste e participa na liturgia e na vida da cidade celeste.
[1] Este artigo apareceu, sob uma forma diferente, na revista Liturgie nº 124, em Março de 2004, pág. 23-35. Está reproduzido aqui com a licença amável da redação dessa revista e da comunidade de Venière. Esta conferência foi dada em Koubri, na festa de Todos os Santos, no dia 1º de Novembro de 2003; em memória da Madre Marie Hamel e de Ir. Josefina Balma.
[2] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, “Sources Chrétiennes” 178, Cerf, Paris, 1971.
[3] Gregório de Nissa, Discurso Catequético, “Sources Chrétiennes” 453, Cerf, Paris, 2000.
[4] Ver Gregório de Nazianzo, quando da morte de seu pai, da sua mãe e da sua irmã Gorgonia.
[5] Jean Daniélou, “O ministério das mulheres na Igreja antiga”. La Maison-Dieu 61 (1960), pag. 88, www.patristique,org, pág 2.
[6] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 3.
[7] Gregório de Nissa, Ibidem. 8, São Jerónimo, Carta 107.
[8] Annesia é o npome da propriedade rural da família, próxima de Neocesareia, aonde Macrina fundou um convento em 341, www.patristique.org, pág 3
[9] Grégoire de Nysse, Vie de sainte Macrine, 12, p. 185.
[10] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 12.
[11] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 25.
[12] Basílio de Cesareia, Regras Monásticas, PR 312.
[13] Gregório de Nazianzo, Discurso fúnegre por seu irmão Casário, 7, 15, Sources Chrétiennes 405.
[14] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 33.
[15] Ver Gen. 9, 25; Lev. 18,7.
[16] Gregório de Nissa, Vida de Moisés, Sources Chrétiennes 1.
[17] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 31.
[18] Gregório de Nissa, Escritos espirituais.
[19] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 22.
[20] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 32.
[21] Basílio de Cesareia, Cartas I, 4.
[22] Gregório de Nissa, Vida de Santa Macrina, 11.
A atuação da reforma da Liturgia das Horas Monástica na Congregação Beneditina do Brasil
4
Perspectivas
Dom Jerônimo Pereira, OSB
Mosteiro de São Bento, Olinda (Brasil)
Liturgista, professor em Sant’ Anselmo, Roma.
A atuação da reforma
da Liturgia das Horas Monástica
na Congregação Beneditina do Brasil
A vida liturgica emerge como a índole que, em certo sentido, distingue a vida monástica beneditina. Essa perspectiva norteou o Congresso internacional dos Abade e Priores Conventuais da Confederação Beneditina, sediado em Santo Anselmo, Roma, dos dias 19 de setembro a 04 de outubro de 1966, sob a direção do Abade Primaz Benno Walter Gut (1897-1970). O argumento central foi a reforma do Breviário Monástico. A acalorada discussão girava em torno dos temas da pluralidade ou uniformidade, do latim ou da língua vulgar, do canto “moderno” ou do Canto Gregoriano, e, sobretudo para o Saltério, do aplicar o conceito da quantidade ou da qualidade. Era em jogo a procura do equilíbrio entre a letra e o espírito da Regra. O Congresso concluiu-se com a formação de uma comissão – De re liturgica – para estudar a forma mais adequada de responder e harmonizar esses impasses e acalmar os ânimos. No ano sucessivo se deu a segunda parte do Congresso (de 18 a 30 de setembro), como previsto. Votou-se nas propostas apresentadas pela comissão; elegeu-se o novo Abade Primaz, Dom Rembert George Weakland, formou-se uma nova comissão para prosseguir com os estudos, e no dia 15 de outubro do mesmo ano o Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia aprovou o uso ad experimentum do ordo provisório do Saltério, apresentado no Congresso pelo Abade Dom Emmanuel Maria Heufelder (1898-1982), Abade de Niederalteich, Alemanha.
No dia 10 de fevereiro de 1977, a Sagrada Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino aprovou o documento litúrgico preparado pela comissão e apresentado para a aprovação pelo Abade Primaz no dia 11 de novembro de 1976, o Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae[1]. Para a distribuição do Saltério o Thesaurus apresenta quatro esquemas diferentes que levam os nomes dos seus autores: esquema A’ (da Regra de São Bento); B, organizado por um monge da Abadia suíça de Dissentis, Notker Füglister (esquema “Füglister”); C, chamado de “Scheyern” por causa da Abadia homônima alemão onde foi idealizado e D, estruturado pelo trapista Chrysogonus Waddell, da Abadia de Gethsemani, Kentucky, Estados Unidos[2].
O processo de atuação em terras brasileiras
1. A constituição da commissio
Para atuar a reforma do Breviário Monástico em terras brasileiras, o Capítulo Geral da Congregação Beneditina do Brasil, sob a direção de Dom Basílio Penido, Abade do Mosteiro de São Bento em Olinda desde 1964 e Abade Presidente da Congregação de 1972 a 1996, instituiu uma comissão de monges e monjas sob a direção da Madre Maria Teresa Amoroso Lima (1929-2011), então Abadessa da Abadia de Santa Maria, em São Paulo. Compunha a comissão, além da supracitada Abadessa, Dom Timóteo Amoroso Anastácio (1910-1994), Abade do Mosteiro de São Sebastião, na Bahia; Dom Marcos de Araújo Barbosa, poeta e tradutor, da Abadia de Nossa Senhora do Monserrate, no Rio de Janeiro; Ir. Francisca Biolchini (1920-2012), da Abadia de Santa Maria em São Paulo; e duas monjas do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, em Belo Horizonte, a Ir. Maria Teixeira de Lima (1913-2012) e a Madre Martinha Marques Mello (1925-2020). Infelizmente, nos arquivos da Abadia de Santa Maria, não se encontram registros documentais dos trabalhos da comissão.
2. O método de trabalho da commissio e o resultado
A “renovação do Breviário Monástico” consistia na tradução dos textos do então recentemente publicado Thesaurus. A comissão passou a reunir-se regularmente na Abadia de Santa Maria, em São Paulo. Segundo o testemunho da atual Abadessa de Santa Maria, Madre Escolástica Ottoni de Mattos, Dom Abade Timóteo Amoroso Anastácio, foi encarregado da tradução dos textos da Sagrada Escritura, procurando uma linguagem mais poética, enquanto os hinos eram traduzidos pela comissão, competindo a Dom Marcos de Araújo Barbosa os ajustes de métrica e rima da poesia. Os livros da Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico da Congregação Beneditina do Brasil foram publicados em quatro volumes. O primeiro veio à luz no ano de 1981, destinado ao ciclo das manifestações, Advento, Natal e Epifania, incluindo o Próprio dos Santos desse ciclo litúrgico[3]. O segundo volume, destinado às celebrações do Tempo Comum, incluindo as festas do Senhor: SS. Trindade, Corpus Christi, Sagrado Coração de Jesus e Cristo Rei, apareceu no ano seguinte, 1982[4]. No início da Quaresma daquele mesmo ano de 1982 veio à luz o terceiro volume com os formulários para o ciclo da glorificação, Quaresma, Páscoa e Pentecostes[5]. O último volume, o Santoral, traz a data de apresentação da Festa de Santa Rosa de Lima, 23 de agosto do mesmo ano[6].
Os volumes são apresentados pela Madre Maria Teresa como experiência e publicação provisória, em vista de uma publicação completa e definitiva três anos mais tarde. Em todo o caso, apresentam-se escassos de oficialidade: não constam de um nihil obstat e apresentação da parte do Abade Presidente da Congregação e não têm nenhuma forma de “Praenotanda”.
3. Características gerais dos volumes
Em linhas gerais, os volumes, dos quais nunca veio à luz a prometida publicação completa e definitiva, têm a mesma apresentação assinada pela Madre Maria Teresa. Algumas linhas mestras foram observadas para essa publicação “provisória”, das quais apontamos as mais universais: Para manter reduzidas os números das páginas dos fascículos, não se incluiu a totalidade dos textos do Thesaurus, escolhendo apenas os esquemas A’, da Regra de São Bento, e o esquema B (esquema “Füglister”) de distribuição do Saltério. Em muitos casos, em vista do canto, os textos das antífonas do Thesaurus foram substituídos pelos textos do Psalterium Monasticum, de então recente edição pelos monges de Solesmes[7]. Pelo mesmo motivo incluíram-se somente as memorias obrigatórias. No fascículo do Tempo Comum foram incluídas as antífonas do Magnificat e do Benedictus com respectivos responsórios para as semanas pares (II) e ímpares (I). Para o final das Vigílias deu-se a possibilidade de usar o esquema da Regra de São Bento, presente também no Psalterium Monasticum solesmense. Os responsórios das Vigílias, tomados da Liturgia das Horas Romana, apareceram como apêndice, na espera da publicação do Lecionário Beneditino.
4. Questões ligadas ao canto
Com a tradução dos novos livros da Liturgia das Horas Monástica surgiu o problema da adequação do canto, especialmente das antífonas que tinham passado por mudanças dos mais diversos gêneros (mudança de lugar e de ordem, substituição, desaparecimento etc.), sem contar o número de novos textos dos responsórios breves e dos hinos, além das várias festas novas. Para responder a essa lacuna, a Madre Maria Teresa apresentou “pela comissão” o Antiphonale Monasticum pro Diurnis Horis (Ad instar manuscripti)[8]. O Antiphonale oferece “melodias gregorianas para todos os textos, tiradas, em primeiro lugar, das fontes indicadas no ‘Thesaurus’, e também do ‘Psalterium Monasticum’ de Solesmes”. Para estar de acordo com o Psalterium solesmense substituíram-se antífonas indicadas no Thesaurus por outras com sentido similar e já musicadas. Alguns textos foram adaptados a melodias já existentes e copiou-se muitos responsórios breves publicados pelas Beneditinas do SS. Sacramento de Alatri, Itália.
O trabalho de confecção do Antiphonale pode ser dividido praticamente em três etapas: a primeira corresponde ao período da coleta de livros “antigos e novos” entre as comunidades; a segunda, a experimentação que algumas comunidades faziam à medida que as folhas (folhetos) eram impressas e, finalmente, a reunião de todo o material num volume que supera o número de 900 páginas. O critério fundamental era que tudo se aproximasse ao máximo da Liturgia das Horas Monástica que era já em processo de uso nas comunidades. O Antiphonale, impresso de forma muito artesanal, apresenta duas datas. Na primeira página encontra-se a data de 24 de novembro de 1981, onde a Madre Maria Teresa assinala o início das comemorações do 700 aniversário do início do Louvor Divino na Abadia de Santa Maria. Duas páginas depois, no fim da apresentação geral do volume, aparece a data da Festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro) de 1982.
Conclusão e questões abertas
Passadas 4 décadas, a Congregação Beneditina do Brasil nunca procurou levar a cabo o projeto de uma edição definitiva dos seus livros corais. Uma série de inciativas foram tomadas isoladamente, fazendo com que cada comunidade se organizasse de acordo com as suas próprias forças para manter, dentro do possível, uma celebração coral digna.
É bem verdade que somente em 2018 apareceu a tradução oficial da Bíblia, obra da Conferência episcopal (CNBB), de onde se deveriam extrair os textos para o uso litúrgico, cujo Saltério não se adequa ao canto, especialmente coral, e esse ano o Missal Romano, com a tradução dos textos eucológicos.
Com relação ao canto, convém salientar que nem todas as comunidades, pelas mais variadas razões, fazem mais um uso abundante do latim, e consequentemente do Canto Gregoriano, nas suas celebrações, tanto da Missa quanto do Ofício, o que, se de um lado lamenta-se a perda de um tesouro multissecular, de outro alegra-se, porque tal “acidente de percurso” suscitou o desenvolvimento de um repertório justo à atual situação, embora correndo-se sempre o risco de melodias de gosto duvidoso.
O grande desafio de uma reedição dos livros corais para a Congregação Beneditina do Brasil, o que se faz absolutamente necessário, é a manutenção do equilíbrio em manter alta a qualidade da oração coral em todos os seus elementos, sem sufocar a criatividade operosa de cada comunidade, masculina e feminina, levando em consideração as suas mais variadas características, e o fato de estarem espalhadas num território multicultural e de dimensões continentais, chamado Brasil.
[1] Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae, éd. Secretariatus Abbatis Primatis, Tipografia Leberit, Rome, 1977.
[2] Cf. R. M. Leikam, « El Thesaurus liturgiae horarum monasticae de 1977 y la renovación del opus Dei benedictino », Cuadernos Monásticos 86 (1988), 299-330.
[3] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico I: Tempo do Advento, Natal e Epifania, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1981.
[4] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico II: Tempo Comum, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.
[5] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico III: Tempo da Quaresma, Páscoa e Tempo Pascal, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.
[6] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico IV: Próprio e Comum dos Santos, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.
[7] Psalterium Monasticum cum Canticis Novi & Veteris Testamenti. Psalterium Monasticum iuxta regulam S.P.N. Benedicti et alia schemata Liturgiae Horarum Monasticae cum canto gregoriano cura et studio monacorum solesmensium ; abbaye Saint-Pierre, Solesmes, 1981.
[8] Antiphonale Monasticum pro Diurnis Horis (Ad instar manuscripti), ed. Abadia de Santa Maria, São Paulo 1981.
Le Saux-Abhishiktananda, um sacerdote no Espírito
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Grandes figuras da vida monástica
Padre Yann Vagneux
Missões Estrangeiras de Paris (MEP)
Sacerdote em Bénarès (Índia)
Le Saux-Abhishiktananda,
Um sacerdote no Espírito
Por ocasião do quinquagésimo aniversário da morte do irmão Henri Le Saux, publicamos aqui um artigo do P. Yann Vagneux, que já apareceu num número da revista Vies Consacrées, mas que é muito atual .(Com a amável licença do editor e do autor. Este texto apareceu também em Portraits indiens, Médiaspaul, 2022, 215 páginas)
No dia 21 de dezembro 1971, no dia do trigésimo sexto aniversário de sua ordenação, Henri Le Saux (1910 – 1973), mais conhecido com o nome Swami Abhishiktananda, escrevia no seu diário íntimo: “Consagrado para um ministério” mas um ministério que ultrapassa as manifestações ditas eclesiais. Ministério a serviço do mistério, revelação do Mistério. Revelação aos homens do seu próprio mistério pessoal (sic) e também do mistério total, do mistério em si. O monge desaparece, passa para o mistério. O sacerdote revela este mistério. Mas quem pode verdadeiramente revelá-lo, sem se perder nele?” Estas linhas resumem admiravelmente o sacerdócio do monge cristão, que tinha deixado há mais de 20 anos sua longínqua Bretanha, para viver em margens Indianas, aonde o seu ministério de sacerdote foi vivido principalmente em meio hindu. É evidente que o sacerdócio de Abhishiktananda, tal como sua vida, não é somente uma questão de mudar de lugar. No entanto, por mais único e ardente que tenha sido, seu sacerdócio não perdeu nada de sua força inspiradora, sobretudo para aquele que, como ele, deseja encontrar em profundidade o coração da India, para lhe transmitir a novidade do Cristo.
Quaerere Deum
Henri Le Saux entrou aos onze anos, em 1921, no seminário menor de Châteaugiron. Cinco anos mais tarde passou para o seminário maior de Rennes, para aí continuar a sua formação, para ser sacerdote diocesano. Contudo depois da morte de um de seus amigos que queria ser monge, sentiu-se chamado a assumir o lugar dessa vocação jovem, inacabada, e entrou na Abadia Beneditina de Kergonan, em 1929. Alguns meses antes de começar o postulado, confiou ao mestre de noviços os motivos desse novo chamado: “O que me atraiu desde o começo, o que me guia ainda, é a esperança de encontrar a Deus de mais perto. Tenho uma alma muito ambiciosa. Acho que isso é permitido quando se trata de procurar a Deus, e espero não ser dececionado”. Nesta confidência, cheia de entusiasmo juvenil, podemos escutar como eco das palavras que São Bento coloca no coração de sua Regra, como o objetivo da vida monástica “Quaerere Deum “ “Procurar a Deus” e “Nihil amori Christi praeponere”, “Nada antepor ao amor de Cristo”. O Papa Bento XVI, na sua bela conferência em 2008 no Colégio dos Bernardinos explicou o que é o “quaerere Deum” dos monges beneditinos:
“No meio da confusão dos tempos de então, em que nada parecia resistir, os monges desejavam a coisa mais importante: encontrar o que tem valor e permanece para sempre, encontrar a Vida. Procuravam a Deus. Queriam passar das coisas secundárias para as realidades essenciais, para aquilo que é, verdadeiramente, a única coisa importante e segura. (…) Procuravam o definitivo, para além do provisório”.
Parece-nos ler as palavras do jovem monge de Kergonan que pronunciou os votos perpétuos na festa da Ascensão, no dia 30 de Maio 1935. No final desse ano, no dia 21 de Dezembro foi ordenado sacerdote, no mesmo dia em que a Igreja latina festejava então a festa de São Tomé, apóstolo da India.
É importante sublinhar que o sacerdócio de Abhishiktananda foi primeiro vivido no quadro monástico beneditino, de que guardará a marca indelével até ao fim da vida. Seu sacerdócio estava plenamente inscrito no procura do “quaerere Deum” de que Bento XVI dizia ainda:
“Quaerere Deum: como os monges eram cristãos, não se tratava de uma aventura num deserto sem caminho, de uma busca na obscuridade absoluta. O próprio Deus colocou as marcas, aplainou o caminho e sua tarefa era encontrá-lo e segui-lo. Este caminho era sua Palavra oferecida aos homens nos livros da Sagrada Escritura”.
A vida do monge cristão é, de fato marcada pela lectio divina das Escrituras. Estas ecoam na liturgia, com os 7 ofícios diários no coro. O canto gregoriano, de que Henri Le Saux era um apaixonado, por meio de seu ofício de cerimoniário, era todo construído por passagens bíblicas – principalmente os salmos – postos em relevo por meio dessa magnífica sobriedade do canto. Abhishiktananda guardou a nostalgia disso até ao fim da vida e chorou quando os amigos lhe entoaram na India “Dominus dixit”: o introito da missa da meia noite que ele não tinha escutado há dezenas de anos… Em Kergonan, Henri Le Saux era também bibliotecário, quer dizer um cargo que toca um dos lugares centrais da vida monástica. No contato diário com os livros, cultivou uma grande proximidade com os Padres da Igreja, que nos primeiros séculos desenvolveram uma contemplação única do mistério revelado em Cristo. Mas foi, sobretudo, na atmosfera de silêncio tão impressionante em Kergonan, que Henri Le Saux viveu o “quaerere Deum”. Tal era sua vocação de monge, de que escreveu anos mais tarde: “o solitário é na Igreja ministro do silêncio de Deus”.
Os 19 anos que Abhishiktananda viveu na sua abadia beneditina foram fundantes, em particular para viver seu sacerdócio na India, numa cultura tão marcada pela figura do monge, quer seja ele hindu, jaïn, budista ou cristão:
“O monge é o homem do eschaton. E aquele que dá testemunho que o tempo vem da eternidade e vai para eternidade. Quem dá testemunho da advaita, da não dualidade do ser, na sucessão dos tempos e na multiplicidade das formas religiosas”.
O sacerdócio de Melquisedec
Henri Le Saux chegou à India do Sul em 1948 e juntou-se a Jules Monchanin (1895+ - 1957) perto de Trichy, que já vivia aí há mais de dez anos. Ambos fundaram, em 1950, o ashram de Shantivanam, não longe Kulitalai, e escolheram novos nomes cristãos de sannyasis. Monchanin escolheu o nome de Paramarubyananda em honra do Espírito Santo, e Le Saux o nome de Abhishiktananda em referência ao Cristo, o Ungido (abhishikta) do Pai. Por meio do seu humilde ashram desejavam que a Igreja da Índia, já rica, na época, em instituições escolares e médicas, pudesse tornar visível sua forma contemplativa, como Maria aos pés do Senhor, enquanto sua irmã Marta trabalhava no serviço da mesa. Para eles era essencial que o hinduísmo descobrisse que o cristianismo tinha uma longa tradição contemplativa e monástica. Pensavam também que o ashram poderia ser um lugar de diálogo, aonde os cristãos receberiam os dons que o Espírito Santo colocou no coração da Índia.
Alguns anos mais tarde, escrevendo Une messe aux sources du Gange, o relato de sua peregrinação a Gangotri, Abhishiktananda pôs estas palavras na boca de Raimon Panikkar, seu companheiro de caminhada:
“Nosso papel como cristãos na India, é mergulhar nesses tesouros que nos foram legados pelos nossos rishis, nossos videntes, nossos sábios, perscrutar as Escrituras, beber nas fontes mais puras e mais primordiais de sua experiência para transmitir à Igreja os segredos incomparáveis”.
Nesse livro escreveu ainda:
“A India e suas Escrituras fazem parte do imenso Testamento cósmico, que precedeu a Aliança do Sinai e aquela que Deus concluiu com Abraão (…) É como no interior deste Testamento, desta Aliança original que o Espírito prepara a plenitude dos tempos, a vinda do Verbo encarnado através de todos os povos, todos os lugares todos os tempos do Universo”.
Falando de “Testamento cósmico” Abhishiktananda colocava a procura hindu no plano de salvação, bem antes da Revelação cristã. Um tal olhar teológico mais amplo era necessário para justificar tudo o que ele experimentava na descoberta da India. De modo singular descobria esse misterioso “testamento cósmico” nos encontros que fazia com os sannyasis nos caminhos, ou nas grutas de Arunachala. Contemplava ainda os sacerdotes bramânes que oficiavam nos grandes templos do país Tamoul e nos vizinhos em Uttarkashi nos Himalaias, aonde comprou um terreno em Março de 1961 para aí pôr um pequeno eremitério. Abhishiktananda foi, verdadeiramente tocado por essa cumplicidade no sacerdócio que ele experimentava com os pandits hindus. Descrevia assim as missas únicas que celebrava em latim, vizinho deles:
“Já te falei, acho, dessas primeiras missas celebradas na aldeia Himalaia de Gyansu. Ainda que celebrasse o mais cedo possível, o sadhou que morava no quarto em baixo do meu, já estava levantado. Ele salmodiava já a Gita, ou repetia as mantras, pontuando-as com OM vibrantes. Eu murmurava a meia voz os Dominus vobiscum da liturgia. Eram os namah shivaya – Glória a Shiva – que subiam como resposta. Os Hari Om