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Fratelli tutti,
A fraternidade na vida monástica
Boletim da AIM • 2021 - No 121
Índice
EDITORIAL
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB, Presidente da AIM
MEDITAÇÃO
Fratelli Tutti, terceiro capítulo (extratos)
Papa Francisco
LECTIO DIVINA
“Um só é vosso Pai e todos vós sois irmãos” (Mt 23, 8-9)
Dom Olivier-Marie Sarr, OSB
PERSPECTIVAS
Irmãos segundo a Regra de São Bento
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
MEDITAÇÃO
Fratelli Tutti, terceiro capítulo (extratos)
Papa Francisco
ABERTURA PARA O MUNDO
Consequências da crise atual na vida das comunidades religiosas ao redor do mundo Irmã Patricia Murray, IBVM
GRANDES FIGURAS PARA A VIDA MONÁSTICA
Dietrich Bonhoeffer e a vida monástica
John W. de Gruchy
NOTÍCIAS
• Iwuru, fundação do mosteiro de Ewu-Ishan
Secretariado da AIM
• Solonka, fundação na Ucrânia
Secretariado da AIM
• Os monges beneditinos de Shantivanam
Secretariado da AIM
• Sessão dos Mosteiros da África Central (MAC)
Irmã Emerência
Editorial
Esta edição do Boletim da AIM contém um suplemento. Trata-se de uma reflexão da Equipe Internacional da AIM sobre a Encíclica Fratelli tutti do Papa Francisco. De fato, esta última pode ser considerada, juntamente com a Exortação Evangelii gaudium e a Encíclica Laudato Sí, como a síntese pastoral e teológica do ministério do Papa Francisco.
Pareceu-nos importante destacar este ensinamento e ver como ele se aplica à vida monástica segundo a Regra de São Bento. Este documento de trabalho é proposto ao uso das comunidades em todo o mundo para alimentar uma reflexão sobre as escolhas de vida e a participação na construção de um novo mundo.
O número do Boletim que acompanha esta publicação fornece informações complementares sobre o tema da fraternidade na vida monástica. Há também uma releitura das consequências da situação de pandemia que estamos vivendo na vida religiosa em geral. Trata-se do texto da apresentação da Irmã Patricia Murray ao Conselho da AIM em 2019. Um artigo apresenta também o pensamento de Dietriech Bonhoeffer sobre a importância da vida monástica como modelo de vida cristã. Enfim, algumas notícias recentes.
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Artigos
“Um só é vosso Pai e todos vós sois irmãos” (Mt 23, 8-9)
1
Lectio divina
Dom Olivier-Marie Sarr, OSB
Abade de Keur Moussa (Senegal)
“Um só é vosso Pai e todos vós sois irmãos”
(Mt 23, 8-9)
“Não vos deixeis chamar de mestre, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. Não chameis a ninguém na terra de pai, pois um só é vosso Pai, aquele que está nos céus” (Mt 23, 8-9).
Lendo estes dois versiculos do capítulo 23 do Evangelho de Mateus, podemos rapidamente ficar impressionados com a natureza restritiva do texto, escrito sob a forma de duas sentenças (Não vos deixeis chamar - não chameis a ninguém), seguido de um esclarecimento de cada frase (pois um só...). Estamos, assim, na presença de duas proibições: não atribuir a si mesmo o título de Mestre e o de Pai. Entre as duas, encontra-se sutilmente uma afirmação lapidar, mas muito positiva e explícita: vós sois todos irmãos.
Além disso, os dois versículos tornam-se mais claros se ligarmos e relermos os versículos 1 ao 12 do mesmo capítulo 23. Aqui, Jesus repreende os escribas e fariseus que usurparam a cátedra de Moisés e os apresenta como contramodelos. Eles falam e não fazem, gostam de se exibir com seus trajes e gostam de receber cumprimentos pretenciosos. Eles buscam os lugares de honra tanto nos momentos sociais como durante o culto.
Entretanto, as condições para uma fraternidade universal devem ir além da relação entre mestre e discípulo, filho e pai. Elas não podem fazer parte de uma lógica de títulos, honras e privilégios, porque a fraternidade é toda gratuita, sem cálculos, sem falsidade. Nesta perspectiva, a boa notícia transmitida através destes versículos enfatiza a fraternidade universal, que se torna uma honra ou um privilégio inédito. Ser irmãos entre nós e irmãos de Jesus significa recuperar a dignidade de filhos do Pai e irmãos-coerdeiros de Cristo. De fato, “se somos filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo” (Rm 8, 17). Consequentemente, “não há mais judeu ou grego, escravo ou livre... Sendo de Cristo, sois, então, descendência de Abrahão, herdeiros segundo a promessa” (Gl 3, 28-29; cf. Gl 4, 7; Fl 16). Pois o plano divino é configurar-nos “com a imagem de seu Filho, para que este seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8, 29). Esta é ao mesmo tempo nossa vocação e nossa missão: construir uma comunidade de irmãos “que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros” (Fratelli tutti, FT, 95). Jesus é o mestre que nos revela este chamado para viver e difundir esta fraternidade universal, que tem o valor de uma revelação. Somos todos irmãos, de fato, e em cada um de meus irmãos se encontra o rosto de Cristo, nosso único Mestre e o reflexo do amor do Pai celestial: “Em verdade, vos digo: todas as vezes que fizestes isso a um destes menores que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (Mt 25, 40).
Então, como abade, sou um pai que garante, de uma forma responsável, a eficácia da fraternidade? Ora, “Não se nasce pai, torna-se tal. E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exercita a paternidade a seu respeito (Patris Corde 7). Segundo esta lógica, existe uma certa paternidade na fraternidade: quando esco-lhemos cultivar a benevolência (cf. FT 222) para com nossos irmãos, doando-lhes tempo, estando atentos às suas necessidades e contribuindo para seu crescimento humano, moral e espiritual; quando participamos ativamente da coesão do grupo, evitando as dissensões (Gal 5, 15) provocada por falsos irmãos (cf. Gal 2, 4ss; 2 Cor 11, 26), praticando a correção fraterna, encorajando o apoio mútuo (cf. Rm 15, 1), usando grande delicadeza (cf. 1 Cor 8, 12) e oferecendo aos irmãos um espaço de liberdade, de escolha e de saída (cf. Patris corde 7). Em resumo, sempre que ajo responsavelmente em relação aos meus irmãos, então sou para eles, ao mesmo tempo, um irmão e um pai; uma sentença de Jesus a Simão Pedro resume perfeitamente: “Confirma os teus irmãos” (Lc 22, 32). Assim, o “exercício” da fraternidade requer uma presença e constitui um dom. Esta é a firme convicção do salmista: “Vede como é bom, como é agradável os irmãos viverem junto!” (Sl 133[132],1).
“Senhor e Pai da humanidade, que criastes todos os seres humanos com a mesma dignidade, infundi nos nossos corações um espírito fraterno” (FT 287)
Amém!
Irmãos segundo a Regra de São Bento
2
Perspectivas
Dom Jean-Pierre Longeat, osb
Presidente da AIM
Irmãos segundo a Regra de São Bento
Se existe uma dimensão que é importante para São Bento, é a da fraternidade. Na Regra, ele privilegia o título de “irmão” para designar os membros da comunidade monástica. Em comparação, o título “monge” é muito menos usado. Podemos recordar aqui as conclusões de Christine Mohrmann que, em seu tempo, mostrou esta recorrência em relação ao ideal da primeira comunidade cristã pelos primeiros ascetas cristãos, sob a guia do Evangelho, como expressa bem o prólogo da Regra.[1]
Toda vez que São Bento usa o título de irmão, ele é carregado de significado; não tem um mero papel funcional neste uso. Marca um ideal. A comunidade monástica é descrita como um exército fraterno no qual se exercita e se torna mais experiente na luta contra o espírito maligno (RB 1, 5). Esta caracterização do gênero valoroso dos cenobitas certamente não é neutra. Deve ser levada muito a sério, assim como a imagem da escola do serviço do Senhor, ou da oficina onde se exercita com os instrumentos das boas obras. Ao falar de um exército fraterno, São Bento enfatiza a importância de aprender a vencer as armadilhas do adversário e, para isso, de contar com a experiência daqueles ao lado de quem se combate.
O compromisso fraterno na comunidade
Depois que o irmão noviço emite sua profissão, ele se prostra aos pés dos irmãos, pois a consequência imediata de seu compromisso é justamente a de pertencer a este corpo fraterno onde continuará a lutar contra tudo o que possa servir de obstáculo ao mandamento do amor (RB 58, 23).
No início e no final da Regra, esta dimensão também é lembrada como uma questão importante. Nos primeiros parágrafos, São Bento exclama aos irmãos: “Que há de mais doce para nós, caríssimos irmãos, do que esta voz do Senhor a convidar-nos” (Pr 19), e no capítulo 72, que pode ser considerado a verdadeira conclusão da Regra: “Ponham em ação castamente a caridade fraterna” (RB 72, 8). É porque uma voz fraterna se dirigiu a nós com toda a doçura do amor, que nos colocamos a caminho em uma comunidade, a fim de aí trabalhar, em companhia de outros, a dinâmica da caridade.
Entre estas duas menções, podemos dizer que toda a Regra consiste em responder de forma muito concreta ao chamado recebido da voz muito convidativa do Senhor e a colocar em prática, castamente, os deveres do amor fraterno.
O Prólogo já menciona essa dupla dimensão da escuta e da prática do mandamento do amor: “Meus irmãos, quando perguntamos ao Senhor: “Quem é aquele que deseja a vida e quer desfrutar de dias felizes?”” (Sl 33), ou ainda: “Quem habitará em tua casa, Senhor?” (Sl 14), insiste São Bento: “Irmãos, escutemos a resposta do Senhor”. A voz daquele que nos fala nos convida a nos colocarmos a caminho e a agir com eficácia. É preciso, a fim de incentivar este processo, chamar os monges de caríssimos irmãos, como faz São Bento. Mas de qual fraternidade é feito o programa da vida monástica?
Uma comunidade de irmãos
Em primeiro lugar, a comunidade é constituída como um conselho de irmãos, cuja opinião o abade escuta regularmente. Esta é uma das características desta vida comum. Isto acontece em diferentes níveis: ou com toda a comunidade reunida, ou com um conselho de “sábios” em torno do abade. Como a Regra nos lembra, é bom fazer tudo com conselho, e depois de feito não se arrependerá.
Estando os irmãos reunidos, será solicitado o parecer de cada um deles: isto é tanto um direito quanto um dever. Ninguém pode se eximir de tal solicitação. “Com toda humildade e respeito, os irmãos darão o seu parecer” (RB 3, 4). Há aqui uma qualidade de escuta, de atenção e de consciência de que o parecer individual vale menos do que o comunitário. “Tudo está ligado, e o todo vale mais do que a parte”. É isto o que ocorre nos conselhos fraternos. Quando esta dimensão não intervém com suficiente regularidade na vida de uma comunidade, pode-se ter certeza da ameaça do perigo.
Uma fraternidade humilde
É necessário manter o propósito da humildade no coração, a fim de fomentar uma verdadeira comunidade de irmãos. No capítulo 7 sobre a humildade, diz-se que o irmão sábio (literalmente aquele que quer ser útil) repetirá para si mesmo, incessantemente em seu coração, a fim de estar vigilante sobre seus pensamentos: “Se me preservar da minha iniquidade, serei, então, imaculado diante do Senhor” (7, 18). O pecado consiste essencialmente em virar as costas para Deus e querer agir somente por si mesmo. São Bento insiste: “Concluamos, irmãos, que devemos estar sempre vigilantes”. No final do capítulo 7, ele conclui: “Os irmãos suportam os falsos irmãos e abençoam aqueles que os amaldiçoam” (7, 43). Assim como no Prólogo e na Regra como um todo, o convite inicial é uma escuta, uma vigilância à qual os membros da comunidade são chamados em toda fraternidade, da mesma forma, no final, eles estão em condições de amar seus inimigos, de suportar os falsos irmãos, de abençoar aqueles que os amaldiçoam, em outras palavras, de praticar perfeitamente o mandamento do amor. É impossível avançar de outra forma: a humildade nos conduz à uma disposição de escuta, de atenção, de vigilância, para preservar nosso coração para seguir o Cristo em seu caminho pascal e para viver a comunhão fraterna, em verdade, como ele mesmo a viveu.
O belo testemunho de uma comunidade monástica no coração da sociedade vale sobretudo por causa desta capacidade fraterna que traz a graça da paz, da unidade e do amor.
Sob a guia de Cristo
O abade, que, por sua vez, tem a tarefa de manifestar a presença de Cristo no seio da comunidade, deve cuidar para que a inimizade fraterna não penetre no grupo. Ele permanece vigilante, especialmente com relação às suas próprias ações, que falam tanto e às vezes mais do que suas palavras. Verifica-se isto, particularmente, na qualidade de seu relacionamento com os irmãos, que ele abordará com humildade: “Viste o grão de palha no olho de teu irmão e não viste a trave no teu próprio” (RB 2, 15).
A responsabilidade do abade é a mesma, não importa quantos irmãos ele tenha a seu cargo (RB 2, 38). Ele terá que responder pelo progresso ou pelo retrocesso de cada um, devido à vigilância que lhe cabe. O capítulo 64 traduz isto em uma fórmula lapidar: “O abade odiará os vícios e amará os irmãos” (64, 11).
Os colaboradores do abade serão escolhidos geralmente com o conselho dos irmãos, como por exemplo, o prior (65, 15). Os decanos devem ser nomeados dentre os irmãos de boa reputação e vida santa (21, 1). No capítulo sobre o celeireiro, São Bento especifica a atitude fraterna que ele espera do responsável pela organização material do mosteiro: “Que o celeireiro não entristeça seus irmãos” (31, 6); “que ele possa dar uma boa palavra quando um irmão lhe pedir algo desarrazoadamente” (31, 7.13) e “que ele ofereça aos irmãos a parte estabelecida para cada um, de acordo com suas necessidades” (31, 16).
São Bento tem, portanto, a preocupação de envolver os irmãos na escolha de seus responsáveis, e de possibilitar a vivência da fraternidade em todos os seus aspectos, de tal modo que ninguém se entristeça na casa de Deus.
O serviço fraterno
Pode-se dizer que é toda a comunidade que deve ter essa preocupação. “Que os irmãos se sirvam mutuamente” (35, 1). Aqueles que entram em serviço a cada semana lavarão os pés de seus irmãos, imitando a Cristo na véspera de sua Paixão. A refeição e o serviço que ela implica são concebidos como momentos eucarísticos. Eles se referem aos ágapes que a primeira geração cristã realizava por ocasião da partilha eucarística.
Um cuidado especial é dado aos irmãos doentes que representam Cristo na comunidade de uma maneira muito especial (“Fui enfermo e visitaste-me” e “aquilo que fizestes a um destes pequeninos, a mim o fizestes”, RB 36, 2-3).
Mas há também uma grande atenção por parte de São Bento de que o serviço fraterno não crie nenhuma perturbação na comunidade: “Que os irmãos trabalhem sem murmurar” (41, 5). É por isso que a organização deve ser bem temperada, há um tempo para tudo: trabalho, liturgia, leitura espiritual, vida fraterna... Um capítulo inteiro é dedicado a esta distribuição do tempo e, finalmente (48), toda a vida é dedicada a uma atividade de conversão com um encorajamento mútuo. Se por acaso houver algum irmão que sofra de desânimo (acédia), é preciso apoiá-lo, estar ao seu lado e ajudá-lo superar tal etapa (48, 18). Por outro lado, é também importante que haja momentos pessoais nos quais a relação fraterna não sirva como uma dispersão (48, 21). Se há irmãos mais frágeis, deve-se ter um cuidado especial para com eles, e uma atividade proporcional deve ser encontrada para eles, para que possam participar do esforço comum e, ao mesmo tempo, não sejam sobrecarregados ou levados a fugir de sua tarefa (48, 24).
É necessário zelar para que os serviços não sejam muito pesados: na cozinha, nas oficinas, na enfermaria, na hospedaria, na portaria... Se o porteiro precisar de ajuda, um irmão mais novo o ajudará (66, 5). Isto parece trivial, mas é uma dimensão que desempenha um papel importante na qualidade da vida cotidiana. Quando alguém está sobrecarregado de trabalho, não pode servir seus irmãos em boas condições.
E assim como o celeireiro deve tratar os objetos do mosteiro com todo cuidado como vasos sagrados do altar, assim o abade confiará todo esse material a irmãos confiáveis, e ele ficará atento para que, em cada semana, nada seja dispersado, a fim de que os irmãos que se sucedem nos serviços não tenham surpresas e possam contar com a confiabilidade dos outros.
Uma vida de busca
A Regra especifica que a fraternidade está enraizada na busca de um fundamento interior que pode ser encontrado na oração e na meditação.
Além do fato de que nada deve ser preferido à Obra de Deus, ou seja, à oração comum, São Bento pede que o tempo seja empregado no estudo do Saltério e nas leituras. Sabemos que os antigos monges empregavam parte do tempo memorizando os salmos, que são a matéria-prima do Ofício. Portanto, os irmãos que precisam são chamados a se dedicar a essa ocupação durante o tempo livre após as Vigílias celebradas durante a noite, esperando o Ofício da manhã (8, 3).
A leitura no coro é objeto de um cuidado especial. Ela não deve ser desempenhada por alguém que não conhece a arte da leitura (9). Também aqui há um sentimento de fraternidade que toca as raízes do que é revelado.
Correção fraterna
A Regra é baseada na confiança fraterna. A comunidade está organizada como uma equipe esportiva onde cada um desempenha seu papel e conta com os outros para desempenhar o seu.
E cabe principalmente ao abade exercitar a confiança fraterna, sabendo naturalmente o que ele pode pedir a um ou a outro. Por exemplo, em matéria de administração, ele a confiará a irmãos dos quais esteja seguro (32, 1), e verificará se não há problemas no cotidiano, especialmente na transferência de responsabilidades.
Mas não devemos ser ingênuos; no mosteiro, como em todas as sociedades, existem fraudadores e é necessário corrigir e acompanhar as suas tentações de tomada de poder.
Não se pode alcançar uma vida fraterna harmoniosa sem colocar em prática algumas normas. É por isso que São Bento prevê medidas que incentivam a reflexão pessoal sobre a própria conduta, o que permite a correção. Isto acontece especialmente no contexto de reuniões comunitárias diárias (liturgia, refeições). Um irmão culpado de uma falta pode ser temporariamente excluído da mesa comum ou da oração comum (24-29). Esta privação visa afirmar a vida fraterna como um bem superior aos desejos multiformes e desordenados de cada um. Hoje, vemos um fenômeno perturbador que leva alguns irmãos ou irmãs a se manterem separados por própria vontade, sem que isso seja considerado uma dificuldade ou uma provação. Estão felizes em cultivar sua própria diferença sem se preocupar com o bem comum e estão convencidos desse direito. Assim, os modos de correção fraterna adaptados à mentalidade contemporânea são tão difíceis de encontrar que acabamos por aceitar que eles quase não existem mais. Parece-me que este é um assunto que precisa ser aprofundado na vida de nossas comunidades, a fim de encontrar a maneira correta de agir.
A conclusão da Regra
No final de sua Regra, São Bento insiste muito na dimensão das relações fraternas. Ele pensa nos irmãos que partem em viagem, seja para perto ou longe do mosteiro. Ele pede que os irmãos sejam abençoados em sua partida e que se reze por eles quando retornam. Ele se preocupa em como lidar com a questão das coisas ordenadas que parecem estar além das possibilidades do irmão ao qual a ordem é dirigida. O processo do debate é notável (cf. 68).
Ele pede que ninguém bata ou puna outro irmão deliberadamente, mas que a correção fraterna seja regulada pelo abade e pela comunidade.
Acima de tudo, ele pede que os irmãos se obedeçam mutuamente (71). Portanto, que haja no mosteiro uma vontade de escuta recíproca e de agir de forma unida. E se um irmão irritou outro, ele deve imediatamente reconhecer seu erro e pedir perdão ali mesmo (71, 6).
São Bento resume sua preocupação em considerar a horizontalidade fraterna com esta fórmula lapidar: “Ponham em ação castamente a caridade fraterna” (72, 8), isto é, que ninguém ouse se aliar a outro, nem bater em quem quer que seja.
Conselhos para viver a fraternidade
Apontamos aqui alguns conselhos da Regra que concretizam a relação fraterna.
A coisa mais importante para viver livremente a fraternidade é se desapegar de tudo e sentir-se dono de nada, e cuidar das necessidades de cada um, tanto de corpo quanto de alma.
Um diálogo necessário para a interpretação das ordens recebidas será integrado à vida fraterna, tornando sua execução ainda mais relevante, mesmo quando se trata de coisas que, à primeira vista, parecem impossíveis (68). Dessa maneira, os irmãos aprenderão a colocar em prática uma vontade comum que possa ser enraizada na vontade de Deus (71).
Naturalmente, serão evitadas, a todo custo, as vinganças pessoais que fariam arbitrariamente prevalecer a lei do mais forte: ninguém tomará decisões subjetivas e radicais a respeito dos outros irmãos; as decisões serão remetidas para os responsáveis (70). Mas, por outro lado, uma união mal-intencionada entre dois irmãos também deve ser evitada.
Os monges não devem se preocupar com sua aparência no que diz respeito ao vestuário, mas devem receber suas vestes da comunidade, sem preocupação de estilo ou cor, mas com um senso de moderação e, portanto, sem despesas excessivas (55).
Não deve haver monopolização dos dons provenientes do exterior ou do interior do mosteiro, mas se deve aceitar que sejam dados a outros a quem eles forem mais úteis.
Deve-se ter o cuidado de adotar interiormente a atitude permanente que marca o dia da profissão definitiva, quando o novo irmão se prostra aos pés de todos os outros e pede suas orações, a fim de ser recebido plenamente na fraternidade da comunidade. Ele manterá também o seu lugar de ordem para eliminar as diferenças sociais e para que em tudo prevaleça a comunhão.
Quando os irmãos se encontrarem, eles se cumprimentarão de forma fraterna. Os jovens honrarão os mais velhos e esses amarão os mais jovens: eles se chamarão afetuosamente de “irmão” e “nono” (nonni). Isto caracterizará a relação vivida dentro do mosteiro: uma relação substancial com referência ao mandamento da caridade.
Deve-se evitar que os jovens sejam deixados juntos o tempo todo; eles devem ser integrados com os mais velhos para que tenham algum tempo para a reflexão e não sejam tentados a entrar em fácil contestação ou a se dispersarem do que é essencial (22).
Os irmãos se revezarão para servir uns aos outros à mesa e se assegurarão de que não falte nada a ninguém (38, 6). Haverá dois pratos de cozidos para que nenhum irmão seja privado se não puder comer de um deles.
Os irmãos assegurarão também a leitura à mesa a cada semana e, para que não lhes seja pesado, poderão tomar a refeição antes do serviço, especialmente se estiverem em jejum desde a manhã (38, 6.10).
É importante que os irmãos façam tudo o que têm que fazer sem serem tentados a murmurar interna ou externamente. São Bento é muito sensível a esta dimensão para a qualidade da vida fraterna.
Ele também é sensível ao fato de que tudo aconteça no devido tempo. Ele prevê que o próprio abade toque o sino para a liturgia ou então que ele confie essa tarefa a um irmão que seja pontual, de maneira que o ofício nunca seja perdido (47). E quando o ofício termina, todos os irmãos saem do oratório em sumo silêncio (52).
São Bento também prevê que alguns irmãos possam permanecer no oratório após o ofício. Neste caso, eles o farão com discrição, dirigindo a Deus suas súplicas sem rumores de voz (52).
Acolhida fraterna
Os irmãos são convidados a compartilhar sua oração e parte de sua vida com as pessoas que vêm se hospedar no mosteiro. Este é um ponto forte da vida monástica de acordo com São Bento. Os irmãos não estão destinados a se isolar em si mesmos. Eles devem ser testemunhas da importância da comunhão fraterna para aqueles que eles acolhem (53).
São Bento especifica que todo hóspede será recebido como o Cristo, de tal modo que à sua chegada, o abade e todos os irmãos corram ao seu encontro, mostrando-lhe todos os sinais de caridade (53, 3). Eles rezarão juntos e o abade lavará seus pés, seguindo o exemplo de Cristo para com seus discípulos.
O abade tomará a refeição com os hóspedes e romperá o jejum por causa deles; ele poderá convidar outros monges para sua mesa (56, 2), enquanto que a comunidade dos irmãos manterá a prática do jejum de acordo com a Regra (53, 10).
Quando há muitos hóspedes, o importante é que tudo seja organizado de tal forma que a vida dos irmãos não seja perturbada em seus aspectos fundamentais (53, 16). É por isso que a função de hospedeiro requer grandes qualidades espirituais, especialmente a consciência da presença permanente de Deus, que dá sentido a todos os relacionamentos e a todos os atos da vida (53, 21).
Os monges não estão enclausurados de forma absoluta, segundo a Regra de São Bento. Eles viajam e estão em contato frequente com pessoas externas. Um capítulo inteiro é dedicado aos irmãos que partem em viagem (67). Quando os irmãos têm que deixar o mosteiro por algum tempo, eles pedem a oração da comunidade na partida e no retorno, e permanecem ligados a ela, na medida do possível, assegurando as horas de oração.
Conclusão
Enfim, a Regra de São Bento não é um tratado sobre a fraternidade como uma ideia generosa à qual seria bom estar ligado, mas sim um convite para colocá-la em prática dentro da estrutura de uma comunidade de vida permanente. Esta fraternidade se estende aos hóspedes, acolhidos no mosteiro e a todos aqueles que, perto ou longe, estão ligados à comunidade. Finalmente, como vemos ao longo da história humana, este testemunho fraterno é um elemento estimulante na construção de toda a sociedade. Na verdade, as comunidades monásticas provam que a fraternidade é possível; elas a vivem ao longo do tempo com estabilidade. O fator tempo é essencial no ideal monástico mesmo que, infelizmente, o espaço tenha muitas vezes desviado a atenção dele: às vezes estamos mais atentos à estrutura que pode se tornar fixação e incapaz de adaptação.
São Bento, como vemos em sua vida escrita por São Gregório Magno, amava este papel essencial da fraternidade na construção da sociedade. Ainda hoje, ele nos convida a sermos verdadeiras testemunhas que dão suas vidas por amor no seio de uma comunidade fraterna.
[1] Christine Mohrmann, “Le rôle des moines dans la transmission du patrimoine latin”, Revue d’histoire de l’Église de France, 1961, n° 144, p. 185-198.
Consequências da crise atual, ligada à Covid 19, na vida das comunidades religiosas
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Abertura para o mundo
Irmã Patricia Murray, IBVM
Institute of the Blessed Virgin Mary (USA)
Secretária da União Internacional das Superioras Gerais
Consequências da crise atual,
ligada à Covid 19,
na vida das comunidades religiosas
ao redor do mundo
Em agosto de 2019, fui convidada para falar na Conferência dos Superiores em Scottsdale, Arizona. Parece que foi há muito tempo, visto que hoje é quase impossível viajar. Muitos dos elementos deste discurso adquiriram novo significado quando considerados através do prisma da atual epidemia da Covid-19. Durante a apresentação em Scottsdale, citei o poema TRASNA escrito pela Irmã Raphael Considine, religiosa da Apresentação. “TRASNA” em irlandês significa “Passagem”. Creio que estas linhas resumem a “viagem Covid” que nós, religiosos(as), fazemos há muitos meses.
Os peregrinos pararam sobre velhas pedras,
no vale.
Atrás deles estava o caminho que haviam
percorrido,
Em frente, a neblina escondia o caminho.
A questão planava, subentendida:
Por que continuar?
A vida não é bastante curta?
Por que procurar penetrar seu mistério?
Por que se aventurar mais longe por esses estranhos caminhos
e arriscar tudo?
É obviamente um jogo de tolos ... ou de amantes!
Por que não retornar calmamente pela estrada
que nós conhecemos?
Por que ser ainda um peregrino?
Uma voz que eles conheciam os chamou, dizendo:
Este é Trasna, o lugar de passagem. Escolham!
Voltem se quiserem:
Vocês encontrarão facilmente o caminho:
este é o caminho de ontem,
Vocês poderão armar a tenda perto do fogo de ontem.
Ainda pode haver até mesmo fogo sob as brasas.
Se este não é o vosso desejo mais profundo, não se mexam!
Deponham a carga,
Tomem vossa vida entre as duas mãos
(vocês têm aqui algo precioso
que lhes foi confiado)
E depois, investiguem os anseios do vosso coração:
O que eu estou procurando? Qual é a minha busca?
Quando vossa estrela se erguerá dentro de vocês,
Confiem na direção que ela aponta.
Vocês terão a luz para dar os primeiros passos.
É o TRASNA, o local de passagem. Escolham!
É o TRASNA, o lugar de
passagem. Venham!
Estas linhas refletem muitas das conversas que estão ocorrendo hoje entre religiosos e religiosas do mundo inteiro. Na União Internacional das Superioras Gerais (UISG), lançamos as “conversas Zoom”, envolvendo religiosos, homens e mulheres, de diferentes continentes, para imaginar juntos o futuro da vida religiosa. Cada vez os participantes dizem: “Somos chamados a algo novo”; “Não podemos retroceder, devemos ir adiante”; “Fazemos parte da humanidade sofredora e compartilhamos sua fragilidade e vulnerabilidade”; “Vamos ler os sinais dos tempos atuais”.
Durante essa mesma apresentação no Arizona, lancei uma série de apelos que esperava que lhes tocassem sobre a realidade de suas vidas como superiores. Hoje gostaria de levantar novamente alguns desses pontos no contexto da Covid, assim como a questão sobre o seu impacto na vida religiosa em diferentes partes do mundo. Farei isso, evidentemente, a partir de minha experiência entre as religiosas, mas estou certa de que vocês encontrarão ecos disso em suas próprias vidas e nas de seus irmãos e irmãs.
Primeiro apelo: alarguemos a tenda de nossos corações
O profeta Isaías disse: “Alarga o espaço da tua tenda, estenda bem a cortinas de tuas tendas, estica as cordas, finca bem as estacas!” (Is 54, 2). Esta imagem aplicada à vida religiosa, ou mesmo a qualquer vida, fala ao mesmo tempo de flexibilidade e de enraizamento, de hospitalidade sem limites e de identidade. Somos convidados a não nos conter, a nos alargar, mas ao mesmo tempo a “fortalecer nossas estacas”, cuidando do que mantém a tenda no lugar, de modo que ela esteja profundamente enraizada.
Este versículo nos convida a dar espaço em nossos corações para o Cristo e para aqueles que dentre nós lutam para consegui-lo. É esta maneira de ver as coisas que inspiraram nossos fundadores e fundadoras e que estava no coração de sua vida consagrada “como expressão concreta de seu amor apaixonado”.[1]
Nossos fundadores e fundadoras traduziram sua resposta em um modo de vida particular que respondia às necessidades de seu tempo. Hoje, especialmente durante este tempo de Covid, nós vemos, enquanto religiosos(as), nossos carismas se dilatando e expandindo. Mas como criar este espaço quando, em algumas partes do mundo, nossos espaços de vida são controlados e podemos nos sentir limitados(as)? Em outras partes do mundo, os religiosos(as) são considerados(as) como atores da linha de frente e podem se mover livremente. No entanto, seja qual for o contexto, vejo religiosos(as) se inspirando em seus carismas para encontrar novas maneiras de “alargar o espaço de suas tendas”.
Hoje, talvez mais do que nunca, temos a oportunidade de nos aproximar uns dos outros, de compartilhar nossas ansiedades e medos, visto que todos nós enfrentamos juntos as consequências desta pandemia. Mas também compartilhamos a bondade, a generosidade, o sentido de comunidade e solidariedade quando nos unimos a muitos outros que, como indivíduos ou grupos, cuidam de quem necessita. Só podemos fazer isso quando e se encontrarmos pessoas face a face. Mas também podemos fazê-lo através da janela, pelo telefone, pelo Twitter, Facebook ou Zoom. As possibilidades de criatividade são enormes. Penso nos cestos baixados das janelas de apartamentos na Itália e em outros lugares, nos cantos nas sacadas, nos coros online, para levantar o ânimo das pessoas: são formas simples de compartilhar com quem precisa. A cesta é um símbolo poderoso porque qualquer pessoa pode usá-la ou acrescentar nela alguma coisa. É um símbolo maravilhoso de comunidade, unidade e solidariedade.
Estou ciente do modo como tantas congregações rapidamente “alargaram o espaço de suas tendas” e se moveram para responder às necessidades locais de forma criativa e de diferentes maneiras:
- Envolver toda a comunidade na preparação de alimentos para as famílias locais, sair às ruas para distribuir alimentos ou outros suprimentos, como é o caso em diferentes partes da Ásia, África e América Latina.
- Compartilhar alimentos e as próprias mesas com aqueles que perderam seus empregos e voltaram para suas casas na área rural, vindos de grandes cidades da Índia e do Brasil.
- Ir a lugares remotos para conversar com as pessoas sobre a doença, como ela pode afetar as comunidades locais e como melhor se preparar para ela; as irmãs viajam em grupos para a Amazônia para alcançar comunidades distantes.
- Trabalhar com as comunidades locais para desenvolver maneiras criativas de fabricar máscaras, para gerar a distância social em favelas onde as pessoas vivem umas sobre as outras, para encontrar maneiras de fornecer água suficiente para lavar as mãos regularmente em lugares distantes de poços ou de estações de água. Estas são coisas que muitas vezes podemos tomar como certas.
- Implantação, na Índia, de uma linha de aconselhamento Zoom para que as pessoas possam telefonar se estiverem ansiosas ou temerosas; isto agora foi estendido para a África.
- Utilização do rádio para chegar aos habitantes de áreas rurais, a fim de ensiná-los como reconhecer e se proteger da Covid.
- Organização de acomodações temporárias para aqueles que perderam seus empregos.
- Utilização da tecnologia moderna para que as pessoas possam comunicar-se, não só em grandes iniciativas, mas em minúsculos grãos de mostarda: uma palavra de esperança, um coração que escuta, uma presença compassiva, um olhar que ajuda a curar. Este misticismo do encontro acontece em toda parte; é “de longo alcance, pessoal e comunicativo”.[2]
Vemos esta mística em ação em nossas comunidades, nos leitos dos doentes, nas ruas da cidade com os sem-teto, nas fronteiras com as famílias separadas, nos campos de refugiados, nos hospitais e nas paróquias com pessoas que lutam.
Este tempo de Covid nos mostra que são pequenas, escondidas e discretas ações de bondade e amor que transformarão nosso mundo. É a qualidade de nossa presença individual e comunitária que mais importa. Embora não possamos tocar, apertar a mão ou abraçar alguém, somos chamados a encontrar outras formas de transmitir nosso amor e nossa atenção. O Papa Francisco falou muitas vezes de uma revolução da ternura que nos lembra que “a ternura de Deus leva-nos a compreender que o amor é o sentido da vida”[3]. Através desta revolução de ternura e amor, o Papa propõe uma maneira humilde de mover continentes e montanhas[4]. Cada vez mais religiosos(as) se perguntam: “Quando as pessoas vêm pedir alimentos ou apenas passar um momento para saber como está nossa vida, o que temos a oferecer a eles? Qual é o alimento que podemos lhes dar?”.
“A generosidade e a ternura são uma parte essencial do nosso testemunho?”[5]. Certamente devemos prover as muitas coisas materiais que são necessárias neste momento, mas somos, de fato, chamados a doar mais: ser uma presença profética radical, dar testemunho de um coração universal; “ser um peregrino e uma presença orante” sempre vigilantes, “intercessores, fortes na fé”, direcionados para Deus, em nome de todo o mundo sofredor[6].
Segundo apelo: estar presente nas fronteiras
O Papa Francisco fala de uma Igreja em movimento, uma Igreja “em saída”, que deve ir até os países feridos, às periferias. Este período de distância física e confinamento nos desafia neste sentido. Gloria Anzaldua usou a metáfora “borderlands” ou “terra de fronteira” para designar diferentes tipos de travessias: através de fronteiras geopolíticas, entre os lugares de ruptura social, ou ainda as travessias que existem em múltiplos contextos linguísticos ou culturais[7].
Estas “borderlands” estão em toda parte: em nossos bairros, em nível nacional e internacional, e tão perto de nós, dentro de nossas comunidades religiosas. Pode ser que esta pandemia tenha reavivado fronteiras que sempre existiram por causa de raça, religião, classe ou casta. Muitos religiosos e religiosas falam de tensões crescentes dentro de suas comunidades à medida que a demanda para viver com a Covid aumenta nas comunidades locais e nacionais.
Tenho ouvido de várias comunidades religiosas sobre o estabelecimento de verdadeiras fronteiras físicas, mas por razões de saúde e segurança: fronteiras entre aqueles que foram infectados com Covid e aqueles que resultaram negativos; entre aqueles que estão na linha de frente porque vão trabalhar e aqueles que ficam em casa (muitas vezes os mais frágeis e mais velhos); entre aqueles que estão uniformizados e com máscaras, que encontram os doentes, e aqueles que precisam de proteção. Eles também refletiram sobre a coragem dos milhares de leigos que escolhem trabalhar em casas para pessoas idosas, hospitais e clínicas, bem como dos muitos trabalhadores em serviços essenciais: catadores de lixo, entregadores de alimentos e outros produtos, transporte público, agentes de limpeza, cozinheiros... a lista é interminável. Esses - e muitos outros - também arriscam suas próprias vidas e as de suas famílias quando prestam serviços em casas e instituições religiosas.
Precisamos cultivar um coração e um espírito “borderlands”. É essencial ver “nos olhos dos outros” uma melhor compreensão, uma empatia e uma compaixão mais profundas do que se pode sentir permanecendo no próprio meio social. Fiquei profundamente emocionada ao saber que irmãs e irmãos que trabalham como médicos e enfermeiros em um hospital na Índia ofereceram seus salários àqueles que prestam serviços essenciais ao hospital e que não são bem pagos. Em outros casos, os responsáveis pelas instalações destinadas a religiosos e religiosas disseram a seus funcionários que ficassem em casa e procuraram maneiras de encontrar pessoal, às vezes trazendo membros de sua Congregação de outros países e continentes.
“Borderlands” é de fato uma rica metáfora. Pode-se pensar nos muitos lugares e oportunidades que permitem que pessoas de culturas e contextos diferentes se encontrem, oferecendo a possibilidade de aprender e crescer juntas. Vivemos em países fronteiriços. Acredito que nesta época da pandemia de Covid, este tipo de travessia é feito pessoal e comunitário, presencial ou mesmo virtualmente. Na UISG Zoom web, religiosos e religiosas se reúnem, apesar dos idiomas, para compartilhar, refletir e rezar juntos sobre uma multiplicidade de questões. Quando isto acontece, são construídas relações entre si que levam a uma transformação mútua. Não se trata apenas de sobreviver lado a lado: trata-se de um processo de construção de laços profundos, de celebração e apreciação da diferença, de compromisso de trabalhar em conjunto.
Alguns religiosos e religiosas trabalham em fronteiras geográficas onde refugiados e migrantes ainda chegam com a esperança de uma vida melhor neste tempo de pandemia. Ainda vai levar tempo para que eles realizem suas esperanças e sonhos no Norte e podem até mesmo ser infectados pelo vírus. A teóloga espanhola Mercedes Navarro nos lembra que o Deus cristão é “um Deus fronteiriço” e que “para sobreviver às fronteiras, é preciso viver sem fronteiras e ser uma encruzilhada”[8]. Assim, em nossa contemplação, em nossas orações, em nosso alcance, devemos habitar constantemente fronteiras e terras de fronteira; devemos viver profeticamente no espaço intermediário e encontrar maneiras de transportar as pessoas através da divisão da cultura, religião, gênero, raça e etnia. Devemos ser pessoas que estão na encruzilhada, física e espiritualmente, observando e esperando. A preocupação de nossos corações, o poder de nossas orações e nossa pregação podem sustentar os irmãos e irmãs que estão nas fronteiras físicas em diferentes partes do mundo. Podemos nos perguntar: “O que significa hoje viver sem fronteiras e ser um ponto de encontro? Como podemos estar hoje física e espiritualmente presentes nos países fronteiriços?”.
Finalmente, somos chamados a abraçar a vulnerabilidade
Talvez uma das imagens que mostraram bem a vulnerabilidade tenha sido a do Papa Francisco rezando sozinho na Praça São Pedro. Antes da pandemia, examinando a evolução da situação das congregações religiosas no mundo inteiro, víamos como etapas de um ciclo de vida: nascimento, maturidade, declínio e, em alguns casos, desaparecimento... Nós vivemos o ciclo da paixão, da morte e da ressurreição tanto da pessoa como da organização. Agora, com o impacto da Covid, este sentimento de viver o Mistério Pascal se aprofundou ainda mais.
Muitas congregações perderam membros devido ao vírus: algumas perderam poucos, outras muitos, especialmente nos primeiros tempos, quando não sabíamos o quão contagioso o vírus era. Obviamente, as dioceses e as congregações na Itália e depois na Espanha foram muito atingidas. Muitos padres, irmãs e irmãos morreram. Isto continuou em outros países, especialmente nos Estados Unidos.
Na UISG fomos duramente atingidas pela Covid pessoalmente: Irmã Elisabetta Flick, que havia ocupado o cargo de Secretária Executiva Adjunta, faleceu três meses após sua aposentadoria no norte da Itália, apenas três dias após ter adoecido. Todos nós tivemos casos semelhantes. Em seguida, na UISG, ouvimos falar regularmente sobre as muitas congregações afetadas e infectadas. E as comunidades choravam por suas irmãs e irmãos, não podendo sequer enterrá-los com os habituais ritos litúrgicos e da congregação.
Como religiosos, nós estávamos e vivíamos em um estado de maior fragilidade e vulnerabilidade. Em um sentido profundo, isto nos torna mais proeminentes do que nunca, nos colocando em comunhão com as pessoas de nosso tempo e país que enfrentam a morte de entes queridos e a impossibilidade de lhes dizer adeus. Todos nós vivemos em algum tipo de “espaço de fronteira”. As Escrituras nos lembram que estes lugares são muitas vezes os desertos ou as montanhas selvagens.
As pessoas quase sempre parecem se sentir compelidas a ir ao deserto e “tomar o caminho mais difícil, mais oneroso e mais perigoso, exercício exigido pela radicalidade de sua fé”[9]. Ora, é no deserto, que as pessoas foram alimentadas, cinco mil de cada vez, e que uma nova comunidade está tomando forma. Lembremo-nos constantemente que “o lugar da escassez, mesmo de morte, é revelado por Jesus como um lugar de esperança e de vida nova”[10].
Richard Rohr descreve o “espaço-fronteira” como “um tempo crucial intermediário onde tudo realmente acontece e onde, no entanto, nada parece acontecer”[11]. Este é o tempo de espera. Para nós, religiosos, este momento parece ser aquele tempo de espera em que somos chamados a ser pacientes, para deixar chegar o novo tempo e espaço.
Neste lugar de fronteira, podemos compartilhar nossas ideias e nos ouvir atentamente para compartilhar a maneira como sentimos o chamado de Deus; estas conversas podem revelar os sussurros do Espírito.
O escritor espiritual Belden Lane, refletindo sobre a morte de sua mãe, escreve: “O ponto de partida para muita coisa é a tristeza: no ponto em que o fim das coisas parece tão absoluto”[12]. Nossa fé nos lembra que “a dor do fechamento” é muitas vezes “o que precede uma nova abertura em nossas vidas”[13]. Sabemos que nossa experiência de fraqueza, de confusão, de busca nos coloca entre os homens e mulheres de nosso tempo.
O que temos para oferecer às pessoas hoje é, acima de tudo, nossa experiência de vulnerabilidade, fragilidade, fraqueza e nossa profunda convicção de que a graça de Deus raramente vem da maneira como poderíamos esperar. Muitas vezes, isso requer “o abandono de toda segurança” e é somente aceitando a vulnerabilidade que a graça exige, que nos vemos convidados à plenitude[14]. É através de nossas próprias limitações e fraquezas, enquanto seres humanos, que somos chamados a viver como Cristo viveu.
Professar os conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência é “testemunhar radicalmente o poder do Mistério Pascal” enquanto abandonamos tudo Àquele que oferece a vida eterna. Podemos ter conversas sobre a fragilidade e a vulnerabilidade entre nós e com os outros? Acreditamos que Deus prepara o caminho para algo novo em nossas vidas? Na vida do mundo?
Conclusão
Há algum tempo, participei de um seminário sobre leadership (liderança) criativa na Burren School of Art, no Oeste da Irlanda. Burren é uma região de paisagens extraordinárias. É uma das mais importantes regiões cársticas/calcárias do mundo; há um certo poder místico nessa região. Éramos um grupo muito diversificado, vindo de diferentes horizontes e de várias partes do mundo. Tivemos numerosos e bons intercâmbios sobre liderança. Ao final de cada sessão, um poeta, um músico ou um artista resumia o essencial de cada conversa com um poema, um símbolo ou uma resposta musical... porque o leader (líder) é realmente um artista. Ao final de uma sessão, Martin Hayes, um violinista tradicional irlandês, tocou uma peça que terminava com uma longa nota. Percebi que, como religiosos, precisamos aprender a ouvir e identificar aquelas longas notas que são tocadas na vida cotidiana e que nos indicam o que está acontecendo mais profundamente e nos chamam a procurar como responder.
Santo Inácio de Loyola nos pede para imaginar a Trindade olhando o mundo do alto e de imitá-la contemplando o que acontece com a humanidade. Quase podemos ouvir a Trindade dizer: “Traba-lhemos para transformar toda a raça humana; respondamos aos gemidos de toda a criação”[15]. A meditação nos convida a “descer na realidade do mundo e nos envolvermos nele, a fim de transformá-lo”[16]. Ir mais longe toca as profundezas místicas e proféticas de nossas vidas, das quais toda nossa ação flui. As respostas residem no fato de estar aberto e pronto para se envolver em simples atos de encontro, de comunhão com aqueles que estão próximos e aqueles que estão distantes. Vimos que podemos fazer isto de maneiras diferentes nestes tempos. Encontrar o outro e estar em comunhão com os outros é o coração de nossa vocação, quando então encontramos novas e criativas maneiras de fazer isso.
Viver a mística do encontro requer “a capacidade de escutar, de ouvir os outros; a capacidade de buscar mais e mais meios”, de construir juntos o reino de Deus neste momento particular. Em todo o mundo, os(as) religiosos(as) se veem novamente como discípulos missionários, procurando ir adiante, tomando corajosamente a iniciativa, indo até os outros, procurando aqueles que estão perdidos e solitários, temerosos e esquecidos. Sentimo-nos chamados acima de tudo a ser uma presença contemplativa no mundo, discernindo como responder a esses cenários em transformação; dizer o que se passa em toda parte onde nos encontramos, como nos sentimos chamados a responder e a convidar uns aos outros a se apoiar.
Estou agradavelmente surpresa atualmente: os religiosos e as religiosas trabalham online, colaborando e compartilhando o que têm, para o bem daqueles que mais precisam. Muitas vezes eles demonstram coragem diante do desconhecido, uma coragem que compreende a fidelidade como “uma mudança, um florescimento e um crescimento” e, finalmente, enquanto testemunhas religiosas, “fiéis à busca contínua e incessável de Deus neste lugar e tempo em constante mudança”.
[1] Papa Francisco. Testemunhas da alegria. Carta apostólica às pessoas consagradas por ocasião do Ano da Vida Consagrada, § 2.
[2] Papa Francisco. Testemunhas da alegria. Carta apostólica às pessoas consagradas por ocasião do Ano da Vida Consagrada, § 2.
[3] Papa Francisco. Teologia da ternura. 13 setembro 2013.
[4] Mateus 17, 19 ; 21, 21.
[5] Patricia Jordan, fsm, Shifting sands and solid rock (Heredfordshire: Gracewing Publication 2015) 14.
[6] CICLSAI, Keep Watch, To consecrated Men and women, Journeying in the footsteps of God. 8th september 2014.
[7] Introduction to the fourth edition by Norma E. Cańtu and Aida Hurtado in Gloria Anzaldúa, Borderlands: La Frontiera – The New Mestiza, 4th edition (San Francisco: Aunt Lute Books, 2012) 6.
[8] Gloria Anzaldúa, Borderlands: La Frontiera – The New Mestiza, 6.
[9] Beldon C. Lane, The Solace of Fierce Landscapes: Exploring Desert and Mountain Spirituality (London: Oxford University Press; 8th edition, February 26, 2007), p. 44.
[10] Idem.
[11] Richard Rohr, Daily Meditation for Holy Saturday.
[12] B. Lane, The Solace of Fierce Landscapes, 25.
[13] Idem.
[14] Ibidem, p. 30.
[15] Fr. Daniel Ruff, sj, Bulletin of Old St. Joseph’s Church in Philadelphia, Advent 2008.
[16] Josep M. Lozano, Leadership: The Being Component, in J. Business Ethics, Published online 23 March 2016.
Dietrich Bonhoeffer e a vida monástica
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Grandes figuras para a vida monástica
John W. de Gruchy
Dietrich Bonhoeffer e a vida monástica
Algumas reflexões de um teólogo da Reforma[1]
Apequena semente do interesse de Bonhoeffer pelo monaquismo estava já plantada quando, em 1924, sendo um jovem estudante em Tübingen, visitou Roma pela primeira vez. Emocionou-se profundamente com a Semana Santa. Alguns anos mais tarde, redigiu a sua tese, Sanctorum Communio, na qual repensava a Igreja protestante como ecclesia, comunidade de amor e não instituição de tipo sociológico. Nela fazia a proposta inovadora de encarar a Igreja como “Cristo existente enquanto comunidade de pessoas ”. Mas o catalisador que finalmente fez passar Bonhoeffer do teólogo “escolástico” ao teólogo “monástico” revelou-se durante o seu ano de estudos na Union Theological Seminary de Nova Iorque em 1930-1931, quando “descobriu a Bíblia”. Deu-se conta que, por muito que tenha pregado, “não era ainda um cristão”. Compreendeu então, escreve, “que a vida de um servo de Jesus Cristo deve pertencer à Igreja, e pouco a pouco pareceu-me mais claro o compromisso final ao qual isso conduz”. Este foi o começo da viagem de Bonhoeffer no “deserto” e a sua descoberta “da condição onerosa de discípulo” com a sua participação na luta da Igreja alemã contra o nazismo, seguida da sua própria “guinada monástica” em Finkenwalde, e finalmente o seu martírio.
Ainda que profundamente influenciado por Barth[2], Bonhoeffer só o encontrou pela primeira vez no verão de 1931 em Bona, após escutar uma conferência sua numa manhã. Nesse dia mais tarde foi convidado a participar de uma discussão em casa de Barth, onde, surpreendentemente, encontrou monges beneditinos do mosteiro vizinho de Maria Laach.
Mais tarde, visitou o mosteiro com os irmãos, e desenvolveu com eles uma boa relação. Mas os acontecimentos ultrapassaram este contato e cedo Bonhoeffer, seguindo o exemplo de Barth, viu-se profundamente implicado na luta da Igreja contra o nazismo. Entretanto, em outubro de 1933, para grande tristeza de Barth, Bonhoeffer viajou para Londres com duas congregações de expatriados alemães. Foi lá que começou a refletir mais seriamente sobre o monaquismo e escreveu ao seu irmão Karl-Friedrich que “a restauração da Igreja devia imperativamente formular um novo tipo de monaquismo, sem nada de comum com o antigo mas que deveria assemelhar-se a uma vida de discípulo sem compromisso, na senda de Cristo, segundo o Sermão da Montanha”.
Em 1935, Bonhoeffer é convidado a regressar à Alemanha para fundar um seminário confessional em Finkenwalde na Prússia oriental. Antes de partir, visitou vários seminários de estilo monástico na Inglaterra para o guiar na sua nova tarefa de preparar os ordenandos já formados na universidade, para se tornarem pastores mais fiéis nesse período de crise nacional. Mas como os seminaristas não permaneciam mais do que um semestre ou dois, Bonhoeffer estabeleceu uma Casa de Irmãos, composta de alguns ordenandos que deveriam permanecer mais tempo e comprometer-se numa vida comum. A sua intenção era vê-los assegurar a estabilidade e a continuidade. O livro de Bonhoeffer “Vida em comunhão”, que inspirou numerosos monges e outras pessoas implicadas na formação de comunidades, baseia-se nessa experiência. É igualmente nesta altura que escreve o seu clássico “Discipulado” – o preço da graça, no qual opõe “a graça por muito pouco” e a “onerosa”. Ele afirmava que a depreciação da graça que se havia produzido nas Igrejas da Reforma tinha sido evitada na Igreja católica devido ao monaquismo. As pessoas, escreve, “deixaram tudo o que tinham por amor a Cristo e tentaram seguir os mandamentos de Jesus pela ascese quotidiana. A vida monástica tornava-se assim um vivo protesto contra a secularização do cristianismo, contra a degradação da graça. Foi precisamente assim que os primeiros monges compreenderam a sua retirada para o deserto”.
Bonhoeffer partilhava as reservas de Lutero sobre o monaquismo. Mas insistia no fato de que o regresso de Lutero ao mundo não visava evitar uma vida exigente de discípulo, e que a sua própria “guinada monástica” não era antes uma tentativa de fuga ao mundo. Com efeito, Bonhoeffer trabalhava para a Resistência enquanto escrevia a seus pais do mosteiro beneditino de Ettal em 1945: “Esta forma de vida não me era naturalmente estranha, e experimento a sua regularidade e o seu silêncio como extremamente benéficos para o meu trabalho”. Prosseguia dizendo que “seria certamente uma perda (e seria certamente uma perda para a Reforma!) se esta forma de vida comunitária preservada durante mil e quinhentos anos viesse a ser destruída”.
Ao longo dos anos, Bonhoeffer conheceu muitas desilusões mas nunca abandonou a Igreja. Pelo contrário, a sua visão de um “novo tipo de monaquismo” visava permitir à Igreja ser “conforme ao Filho único que se fez homem, foi crucificado e ressuscitou”. A Encarnação de Cristo é para aqui e agora. Nada de mais monástico do que dizer, com Bonhoeffer, que “vivemos no meio da morte; estamos precisamente no meio do pecado; mas somos novos no meio do antigo. Com efeito, “o nosso mistério permanece oculto para o mundo”. Vivemos porque Cristo vive, e vivemos com ele só”. Os que se conformam com Cristo desta maneira, diz ainda Bonhoeffer, “não procuram destacar-se, mas exaltam a Cristo para o bem dos seus irmãos e irmãs... manifestam- se como aqueles que receberam o Espírito Santo e estão unidos a Jesus Cristo num amor e numa comunhão incomparáveis”.
Numa carta que escreveu mais tarde da prisão a seu amigo Bethge, Bonhoeffer relata uma conversa que teve com um pastor francês e outro estudante no Union Seminary em 1930. O Pastor dizia-lhe querer ser santo. Bonhoeffer respondeu que preferia que quisesse “aprender a ter fé”. Com efeito, não tentava mais fazer o que quer que fosse por si mesmo. Em vez de experimentar ser uma pessoa religiosa, acreditava que Cristo exigia de nós viver uma “maturidade humana”. Esta “humanidade” significava: “viver plenamente no meio das responsabilidades, das questões, dos sucessos e dos fracassos, das experiências e das perplexidades da vida”, e não mais levar a sério “os seus próprios sofrimentos mas antes o sofrimento de Deus no mundo”. Isto, diz ele, “é a fé; é a conversão, é a metanoia. E é assim que nos tornamos seres humanos, cristãos (cf. Jr 45 !)”.
Assim, a humanidade, a “mundanidade” de Bonhoeffer não significava certamente “a mundanidade superficial e banal dos iluminados, dos agitados, dos confortáveis ou dos lascivos”, mas a profunda “mundanidade” que demonstra a disciplina e inclui o conhecimento sempre presente da experiência real de morte e ressurreição. Thomas Merton estava em consonância com Bonhoeffer. A verdadeira mundanidade cristã, escreve, “é uma afirmação de vida e de humanidade, de confiança e de esperança no meio da luta, do sofrimento e da morte”. Com efeito, a verdadeira ascese cristã é uma forma de exercer a responsabilidade cristã para o mundo, de forma amante, criativa, redentora, cheia de esperança e de vida, e de educar, de disciplinar consequentemente os nossos desejos.
No seu “Plano para um livro” que Bonhoeffer esboçou na prisão, descreve o que seria a Igreja e o cristão num mundo pós-cristão. Assim, dá corpo ao novo tipo de monaquismo que tinha em mente. Se o monaquismo começou em reação à cristandade, aos valores do império e de uma Igreja cada vez mais mundana, um novo tipo de monaquismo é agora necessário, enquanto a cristandade se afunda, para garantir que a Igreja permaneça fiel ao seu testemunho a favor de Cristo, no qual a realidade de Deus e do mundo estão unidos.
Primeiramente, Bonhoeffer diz que a Igreja não é Igreja se não “estiver presente para os outros”, porque Jesus não existe “a não ser para os outros”. Os mosteiros poderão ser enclausurados, mas para Bento os mosteiros existem tanto para o exterior como para os monges que estão no interior. Com efeito, aquele que segue a Regra de Bento deve tratar todos os que batem à porta como Cristo em pessoa. Ser solidário com as vítimas da sociedade é pois uma marca da Igreja, e não o fazer é uma rejeição de Cristo.
Em segundo lugar, diz Bonhoeffer, “a Igreja para os outros” deve “dar todos os seus bens a quem deles tem necessidade”. A visão monástica de pôr em comum pela partilha todas as coisas questiona a maneira como a Igreja compreende e utiliza os seus recursos. Isto concerne muito diretamente à Igreja quando se trata de uma instituição apoiada pelo Estado, segundo o contexto que Bonhoeffer conhecia. Mas isto desafia igualmente os cristãos, as congregações e os mosteiros mais ricos a partilhar os seus recursos, o que agrava também a questão da justa repartição das riquezas na sociedade, de uma maneira mais geral.
Em terceiro lugar, prossegue Bonhoeffer, a Igreja deve ser autosuficiente e comprometer-se com um trabalho quotidiano que torne isso possível, participando “nas tarefas mundanas da vida, a partir da comunidade – não dominando mas ajudando e servindo”. Desta forma, a Igreja é um exemplo para todos do que é “uma vida com Cristo”, quer dizer “um ser para os outros”. O fato de os mosteiros se tornarem historicamente centros de cuidados para os doentes e as pessoas incapacitadas, bem como lugares de aprendizagem e de educação, é uma extensão deste ministério.
Em quarto lugar, Bonhoeffer fala da luta monástica contra os vícios pessoais como um programa da própria Igreja. Porque a vida “com Cristo” e “para os outros” exige não somente que os monges ou os cristãos individualmente, mas toda a Igreja , enfrentem e ultrapassem “os vícios do orgulho, o culto do poder, a inveja e a ilusão como raízes de todo o mal”. A Igreja deve também perseguir as virtudes contrárias a estes males: “a moderação, a autenticidade, a confiança, a fidelidade, a firmeza, a paciência, a disciplina, a humildade, a modéstia, o contentamento com aquilo que não se tem”. Feito isto, a Igreja descobre que “a sua palavra tem peso e poder não por conceitos mas pelo exemplo”[3].
Enfim, Bonhoeffer religa a vida litúrgica da Igreja com a sua participação na luta pela justiça no mundo. Conforme escreve num sermão sobre o batismo quando se encontrava na prisão: “Não podemos ser cristãos hoje a não ser de duas maneiras, pela oração e favorecendo a justiça entre os seres humanos. Todos os pensamentos, palavras e organizações cristãs devem renascer de novo, a partir dessa oração e dessa ação”. Mas como existem a Igreja, o mosteiro, a congregação “para os outros”, comprometidos com o serviço do mundo nas suas lutas pela justiça, sem perder a sua identidade de Ecclesia? Assim perguntava Bonhoeffer a Bethge:
“Como podemos nós, os chamados, ser ecclesia, sem nos compreendermos religiosamente como privilegiados (quer dizer como fazendo parte da cristandade), mas pelo contrário nos considerando como pertencendo por inteiro ao mundo? Cristo não seria então mais somente o objeto da religião, mas uma outra coisa, ele seria verdadeiramente o Senhor do mundo”.
Tal como Bonheoffer insistiu sobre o fato que a sua compreensão da condição de discípulo não era nem banal nem superficial, também insistia sobre o fato que quando a Igreja se abre ao mundo, seja pela sua hospitalidade calorosa, a sua solidariedade com as vítimas sociais, ou procurando interpretar o Evangelho, ela não deve nem abandonar a sua identidade nem questionar os mistérios da fé. Com esta finalidade, Bonhoeffer propõe recuperar a disciplina do mistério monástico. Quer dizer a prática adotada na Igreja do século IV para proteger os “Mistérios-sacramentos na prática interna da Igreja, em particular para o batismo e a eucaristia”, conservando-os “ocultos” do mundo. Assim, Bonhoeffer propõe que o mistério monástico seja restabelecido, porque assim os mistérios da fé cristã estariam “ao abrigo da profanação”, enquanto que, ao mesmo tempo, e este é o ponto crítico, a Igreja encontrar-se-ia mais implicada na vida do mundo. O abrir-se ao mundo e o esconder-se no mistério da fé são indissociáveis porque um e outro fazem indissociavelmente parte da sua identidade profunda. Este kairos, este momento monástico não é pois para os cristãos tempo de fugir do mundo, mas sim amar o mundo com o amor de Deus, de não perder nunca a esperança no mundo enquanto mundo de Deus, e assim participar juntos mais ativa e plenamente da vida de Deus.
[1] Jonh W. de Gruchy , nascido em 1939, é um teólogo cristão da África do Sul, professor emérito na universidade do Cabo e professor extraordinário na universidade de Stellenbosch. Algumas das suas primeiras obras foram escritas durante o apartheid, manifestando-se contra a legislação e apoiando-se na teologia de Dietrich Bonhoeffer para advogar a favor da libertação dos oprimidos. Após a abolição da legislação sobre o apartheid em 1991, de Gruchy escreve um certo número de obras falando do papel teológico da arte na sociedade e defendendo uma teologia da reconciliação. [Nota do editor.]
Extratos de: Rediscovering Monasticism.
Dietrich Bonhoeffer, nascido a 4 de fevereiro de 1906 em Breslau (atualmente Wroclaw na Polônia), morreu por enforcamento em 9 de abril de 1945 no campo de concentração de Flossenbürg (Baviera), e foi um pastor luterano, teólogo, ensaísta e resistente ao nazismo, membro influente da Igreja confessora.
[2] Karl Barth (1886-1968) é um pastor reformado e professor de teologia suiço. É considerado como uma das personalidades maiores da teologia cristã do século XX. [Nota do editor.]
[3] D. Bonhoeffer, Letters and Papers from Prison, 503-4.
Iwuru, fundação do mosteiro de Ewu-Ishan (Nigéria)
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Notícias
Secretariado da AIM
Iwuru, fundação do mosteiro
de Ewu-Ishan (Nigéria)
A Nigéria é um país da África Ocidental situado no golfo da Guiné. Com mais de 186 milhões de habitantes em 2014, a Nigéria é o país mais populoso da África e o sétimo país do mundo em número de habitantes. O peso econômico e demográfico da Nigéria valeram-lhe o sobrenome de “Gigante da África”.
O subsolo é rico em recursos naturais (petróleo e gás) e constituem a principal fonte de rendimento do país. O país é o primeiro produtor de ouro negro da África. A Nigéria produz igualmente um certo número de metais (estanho, ferro, chumbo, zinco...) bem como carvão.
Todavia, o país permanece relativamente pobre, devido a uma forte corrupção (fuga de capitais). A Nigéria é assim o único país do mundo dispondo de importantes recursos petrolíferos a apresentar um déficit orçamentário. Em 2015, mais da metade dos nigerianos vivia com menos de 1,25 $ por dia. Pouco mais de um quarto da população beneficia-se dos rendimentos do petróleo.
O país faz parte da comunidade econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Enviou soldados para a Libéria e para a Serra Leoa, e ofereceu ajuda na resolução de numerosas crises.
As duas principais religiões são o cristianismo e o islamismo. O Norte do país é maioritariamente muçulmano enquanto que o Sul é de maioria cristã. Três quartos dos cristãos nigerianos são protestantes evangélicos e um quarto católicos. Desde 2009, as intervenções do movimento Boko Haram, que visa controlar a população do nordeste do país e instalar a charia no conjunto dos outros Estados, moveu-se num conflito armado com as forças armadas nigerianas. Os ataques de Boko Haram tiveram repercussões humanas (13000 mortos na Nigéria e mais de 1,5 milhões de deslocados) e econômicas, das quais em primeiro lugar uma escassez alimentar.
A comunidade
Sob a insistência do Bispo, amigo da comunidade, os monges de Ewu-Ishan recuperaram uma pequena fundação na extremidade Este do país. Esta fundação era o projeto de um padre diocesano que fizera o seu noviciado em Ewu-Ishan, mas a fundação não conseguiu desenvolver-se. Cinco monges de Ewu-Ishan foram enviados a Ewuru que se tornou em 2018 uma cela do mosteiro. Em 2020, havia já quatro noviços e quatro aspirantes. A fundação de Iwuru possui 150 hectares de terras agrícolas; há uma imensa plantação de palmeiras, tanchagem, bananeiras e cacauzeiros. Os irmãos começaram uma produção de óleo de palma e de criação de porcos.
No terreno já existem duas pequenas casas destinadas à hospedaria, uma com cinco quartos e outra com quatro. É preciso um grande trabalho de renovação para melhorar os quartos e sanitários.
Solonka, fundação na Ucrânia
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Secretariado da AIM, segundo informações transmitidas
pela Congregação da Anunciação e as irmãs de Zhytomyr
Solonka, fundação na Ucrânia
Até recentemente, Zhytomyr era a única abadia beneditina na Ucrânia. As monjas organizavam há muitos anos uma nova fundação em Solonka, perto de Lviv. Com efeito, em 2016, o arcebispo de Lviv, D. Mieczyslaw Mokrzycki, propôs às irmãs começarem a vida beneditina num mosteiro, fundado por uma família suíça, cuja construção se iniciava. Em outubro de 2019, quando da visita canônica da abadia de Zhytomyr, feita pelo abade presidente Maksymilian Nawara e o prior de Lubin, Izaak Kapala, a construção estava quase pronta a tempo da partida das irmãs para o novo mosteiro. Entretanto, as irmãs receavam que sem uma ajuda real para nortear a vida beneditina em Lviv tal tarefa seria muito difícil. O abade Maksymilian contactou então o arcebispo Mokrzycki para declarar o seu apoio à criação da fundação.
Quando do reencontro de agosto de 2020 em Lubin, D. Mokrzycki convidou monges beneditinos polacos para cocriar o mosteiro de Lviv, com a perspectiva de se instalar num outro lugar mais tarde. O arcebispo garantiu a ajuda e, de fato, atribuiu imediatamente toda a capelania novamente aos irmãos.
Entretanto, nenhum dos mosteiros polacos tinha até ao presente aspirado uma fundação na Ucrânia. Era igualmente evidente que nenhum dentre eles era suficientemente conhecedor para fazê-la sozinho. Havia duas opções: abandoná-la (utilizando o argumento secular: “somos demasiado pouco numerosos”) ou fazê-lo em conjunto. Pela primeira vez na história moderna dos beneditinos na Polônia, o Abade Presidente convidou todos os superiores dos mosteiros beneditinos do país em Biskupów para discutir possibilidades de cooperação real e prática. O fruto deste primeiro “sínodo dos abades polacos” foi um consentimento unânime em tentar um projeto de fundação comum na Ucrânia. É uma novidade na tradição beneditina. Habitualmente, um mosteiro – a Casa Mãe – funda outro e responsabiliza-se por ele. Desta vez, os irmãos deviam elaborar novas regras que expuseram na “Declaração de Cooperação. A capelania das monjas beneditinas de Lviv”.
Os irmãos vão a Lviv principalmente para apoiar as irmãs do mosteiro de São José novamente criado, e exercer o ministério na sua igreja de São Bento. Instalar-se-ão no edifício da capelania, na esperança de encontrar dentro de alguns anos um edifício para um mosteiro masculino, salvaguardando o seu apostolado.
Foram enviados quatro irmãos: de Lubin, o abade Maksymilian – que permanece o moderador do conjunto do projeto – e o irmão Efrem Michalski. De Tyniec, o irmão Leopold Rudzinski, primeiro beneditino de origem ucraniana a ser ordenado sacerdote na nova igreja em de 20 março, e o irmão Borys Kotowski.
As três primeiras irmãs enviadas de Zhytomyr foram a irmã Bernadeta Venglovska, a irmã Rita Linenko e a irmã Augustyna Tichon.
Faltava primeiro elaborar um ritmo comum de oração: os irmãos e irmãs dos três mosteiros possuíam as suas próprias tradições e costumes, cada um devendo aprender a participar da nova liturgia, abandonando formas familiares do seu mosteiro de origem. A liturgia é celebrada em ucraniano e latim. A eucaristia dominical começa com uma procissão comum das irmãs e dos irmãos. Todas as noites participam fiéis na adoração eucarística. Cada manhã, os irmãos e as irmãs reúnem-se no capítulo para um comentário da Regra pelo padre Maksymilian.
Nesse momento, também fala-se da atualidade, da partilha do trabalho, etc.
A cada dia aparecem novos desafios. Há dois meses, os irmãos e irmãs conviviam a maior parte do tempo com operários efetuando trabalhos de acabamentos ou corrigindo defeitos. A região de Lviv é muito úmida, chove quase todos os dias; é preciso pois encontrar meios para reduzir a umidade ambiente. O mosteiro não está ainda ligado ao fornecimento de gás. A casa dos hóspedes está agora mobiliada e chegam pessoas: amigos da Polônia, irmãos da Eslováquia... Os primeiros padres vêm para retiros individuais.
Os fiéis católicos de tradição latina ou grega bem como fiéis ortodoxos acolhem calorosamente esta nova fundação. A comunidade trava cada dia conhecimento com o clero da arquidiocese de Lviv e com as comunidades religiosas vizinhas. Não tem ainda fontes de rendimento. Toda a ajuda é benvinda.
Em 4 de junho de 2020, D. Mokrzycki abençoou a cruz instalada sobre a igreja de São Bento.
Em 19 de março aconteceu a consagração da igreja de São Bento, do sino e do mosteiro de São José, com a presença da família suíça que construiu o mesmo.
Em 24 de julho do ano passado, a irmã Maria Lyudmila Kukharyk pronunciou os seus votos solenes na nova comunidade – a primeira profissão desta fundação.
Os monges beneditinos de Shantivanam
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Secretariado da AIM
Os monges beneditinos de Shantivanam
(Tamil Nadu, Índia)
Tamil Nadu, literalmente “país dos Tamouls”, é um Estado do Sul da Índia. Conta aproximadamente com 72 milhões de habitantes para pouco mais de 130 000 km2. O Tamil Nadu é mais rico e mais urbanizado que a média nacional. A capital do Estado é Chennai (outrora chamado Madras) e foi criado segundo critérios linguísticos em 1956: corresponde mais ou menos às regiões da Índia onde se fala tamoul.
Distingue-se dos outros Estados da Índia pela riqueza da sua arquitetura religiosa. A sua língua oficial, o tamoul, é uma das mais antigas do mundo. Situado no sudeste da península, é exemplo de uma grande riqueza cultural.
O Tamil Nadu é o primeiro Estado indiano produtor de jasmim. 55% da energia eólica produzida na Índia encontra-se lá. A areia de praia contém minerais muito cobiçados, como a granada, a ilmenite, o rútilo, o zircão, a sílica, o leucoxênio ou a monazite. Há anos que verdadeiras máfias dominam este setor.
A comunidade
O mosteiro de Shantivanam foi fundado em 1950 por dois franceses, o padre Jules Monchanin (padre diocesano) e o padre Henri Le Saux (monge de Kergonan). O seu objetivo era integrar o monaquismo beneditino na vida tradicional indiana do Ashram.
Em 1953, o padre François Mahieu (monge de Scourmont, Bélgica) – chamado mais tarde de Francis Acharya – junta-se ao ashram, seguido do padre Bede Griffiths (monge de Prinknash, Inglaterra) um pouco mais tarde. Estes dois últimos, mais atraídos pela vida cenobítica, fundaram o mosteiro de Kurisumala em 1958.
O padre Monchanin faleceu em 1957, e Henri Le Saux, cada vez mais atraído pela solidão, instalou-se num eremitério junto às fontes do Ganges. Bede Griffiths retorna a Shantivanam em 1968, como prior.
Em 1982, Bede Griffiths obtém a afiliação do mosteiro à congregação beneditina dos Camaldulenses, que favorece a vida eremítica.
A capela do mosteiro foi construída segundo o tipo dos templos hindus do sul da Índia.
A comunidade compreende hoje catorze monges dos quais quatro com votos temporários.
Devido à fama de místico cristão de Bede Griffiths, muitas pessoas da Europa vinham passar algum tempo em Shantivanam, recebendo o mosteiro então muitas doações. Bede Griffiths encorajou os monges a utilizá-las, não para o mosteiro, mas para as pessoas pobres vizinhas (educação, casa de acolhimento, dons diversos). O mosteiro possui somente uma pequena granja e alguns campos.
Após o falecimento de Bede Griffiths, as doações diminuíram. Os monges supriam as suas necessidades graças à sua atividade agrícola.
Hoje, os recursos são menores: o rendimento das terras agrícolas é menor que os custos, tal como o salário dos operários. Esta situação é idêntica para todos os pequenos agricultores do país. A comunidade deseja aumentar o seu capital com mais vinte vacas leiteiras, a fim de obter mais leite que possa ser vendido. A AIM participa da recuperação de um edifício para levar a cabo este projeto.
A irradiação do mosteiro é importante na Índia, e mesmo internacionalmente. A perspectiva do diálogo inter-religioso está aí sempre bem presente.
Sessão dos Mosteiros da África Central (MAC)
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Irmã Emerência
Sessão dos Mosteiros da África Central (MAC)
Julho de 2021 em Goma
Após a sessão da associação MAC no Ruanda em 2019 – com a participação dos superiores e superioras –, a de fevereiro de 2021 para os jovens em formação de Lubumbashi e de Kinshasa, organizou-se uma outra em julho passado no centro de formação dos padres palotinos em Goma, a este da República Democrática do Congo, de 1 a 7 julho.
Esta última reuniu quinze superiores/as e os seus ecônomos de diferentes mosteiros da associação MAC: a comunidade hóspede de Goma, os nossos irmãos cisterciences de Mokoto, lugar inicialmente previsto para as reuniões; dois mosteiros beneditinos de Kinshasa – Árvore da Vida e Mambré; a comunidade cisterciense de Mvanda, e enfim os dois mosteiros beneditinos de Lubumbashi – Santo Salvador e N. S. das Fontes/Kiswishi.
Lamentamos a ausência de outras comunidades. As irmãs bernardinas de Goma não puderam tomar parte das reuniões, devido a enfermidade da irmã Marie-Rémi que acabou por falecer. Apresentamos as nossas condolências à comunidade; as medidas sanitárias e o horário impediram-nos de estar presentes nas exéquias. Pelas mesmas razões, as comunidades monásticas do Ruanda não puderam infelizmente reunir-se a nós para a sessão. Devido às celebrações das profissões monásticas e das ordenações sacerdotais, os nossos irmãos cistercienses de Kasanza, na região de Kikwit, também não participaram. Todavia estávamos em união de corações com todos eles.
Graças ao amor e à ternura do nosso Deus, a sessão desenrolou-se num clima de paz e alegria. O grande centro de acolhimento dos padres palotinos, situado nas margens do lago Kivu, é bem indicado para este gênero de encontros. Para nós que vínhamos do sudeste e do oeste da República Democrática do Congo, esta sessão foi também uma ocasião para manifestar o nosso apoio e proximidade aos nossos irmãos e irmãs acometidos por numerosos acontecimentos infelizes, como a erupção vulcânica em maio passado e outros tormentos que atingiram a região Este.
Exprimimos a nossa gratidão à AIM por ter apoiado esta sessão, o que contribui para o enraizamento da vida monástica em solo africano.
Apreciamos a comunicação do padre Martin Neyt que nos ajudou a reenquadrar o espírito de economia na vida monástica, situando a economia no mosteiro numa perspectiva profética. Alertou-nos, insistindo que a economia de um mosteiro não visa somente o ganho, mas que deve aparecer como um testemunho de solidariedade com aqueles que o circundam. Mesmo as nossas obras, como as nossas escolas, os nossos centros de saúde... devem inserir-se nesta lógica.
A nossa gratidão volta-se para o abade João Maria Vianney Sebunoti, padre da diocese de Goma, que, com competência e devoção, conseguiu em tempo reduzido iniciar-nos nas noções de saldo e balanço, com exercícios de apoio, fazendo-nos apreender os nossos deveres e direitos para com os nossos operários e em relação ao Estado. Felicitamo-lo. Esteve à altura da sua tarefa. Cabe a cada comunidade pôr em prática os elementos essenciais da sua intervenção.
Após a intervenção do abade João Maria Vianney, o irmão Simão Madeko, novo prior do mosteiro de Mambré, falou-nos da espiritualidade do celeireiro do mosteiro. Para apreender sua espiritualidade, é preciso compreender o que é dito do Abade, gestor da casa de Deus no mosteiro pensado por São Bento. O celeireiro colabora com o abade para que este último cumpra a sua missão de permitir a cada um nascer e renascer como filhos de Deus. Sua espiritualidade está em relação com a do superior. Alertou-nos contra a mentalidade do momento que vê na pessoa do ecônomo um “chefe, grande benfeitor” mais do que um servidor.
Além das conferências, tivemos momentos de partilha das experiências de cada comunidade presente. Destas partilhas nasceu o desejo de aprofundar a possibilidade de fazer do mosteiro de N. S. das Fontes (Kiswishi) um centro de estudos teológicos e monásticos para os mosteiros da região da associação MAC. A questão permanece em aberto.
Concluindo, a sessão foi de grande proveito para os participantes. Apontamos as exigências da gestão, descobrimos riquezas e também alguns dos nossos limites no exercício dos nossos direitos e deveres.
A assembleia pronunciou o desejo de que a sessão 2023 seja em Kikwit, nas nossas irmãs cisterciences de Mvanda. Todos os formadores serão convocados; o animador apresentado – se Deus o permitir – é o padre Amedeo Cencini, padre canossiano italiano, perito mundialmente reconhecido no domínio da formação na vida religiosa.
Terminamos este relato saudando, mais uma vez, os nossos irmãos cisterciences de Mokoto pela sua dedicação. Deus seja glorificado nas suas obras!
Notas de leitura
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Este artigo não foi traduzido para o português. Veja o artigo em francês.
Notas de leitura
Les éditions Saint-Léger éditent régulièrement des ouvrages dans une collection monastique sous la direction du père Christophe Guillaume, prieur de Mahitsy (Madagascar). Nous en donnons ici un écho.
Pierre le Vénérable, L’amitié à l’épreuve de la diversité. Correspondance avec Bernard de Clairvaux, Ch. Vuillaume, Saint-Léger Éditions, 2018, 200 p.
Pierre le Vénérable, Le souci de tous mes frères. Correspondance de Pierre le Vénérable avec ses frères moines et l’abbesse Héloïse. Suivie des statuts de Cluny (1122-1146), Ch. Vuillaume, Saint-Léger Éditions, 2019, 300 p.
Pierre le Vénérable, Cette Église qui vous est confiée. Correspondance de Pierre le Vénérable avec les Papes et les Évêques, Ch. Vuillaume, Saint-Léger Éditions, 2019, 300 p.
Pierre le Vénérable, Pour votre salut éternel. Correspondance de Pierre le Vénérable avec sa famille, divers ecclésiastiques, souverains et laïcs, Ch. Vuillaume, Saint-Léger Éditions, 2020, 284 p.
Pierre le Vénérable, dernier des grands abbés de Cluny est à la fois une personnalité reconnue et en même temps relativement ignorée. Le fait de mettre à disposition sa correspondance le rend plus accessible et permet de mesurer l’originalité et la qualité de sa pensée et de son action. Merci au père Christophe Guillaume d’avoir permis cela par un travail soutenu de traduction de grande qualité. La correspondance de Pierre le Vénérable est adressée à des personnes très variées du monde ecclésiastique, religieux ou de la société civile. Homme de foi, de cœur et de culture, Pierre le Vénérable a su tenir ensemble la relation à Dieu et la relation aux autres, aussi divers soient-ils. Cette correspondance est une leçon magistrale d’humanité et de spiritualité, l’un n’allant jamais sans l’autre pour Pierre le Vénérable.
Pierre Damien, L’héritage monastique, volume 1, Ch. Vuillaume Saint-Léger Éditions, 2020, 320 p.
Pierre Damien, L’héritage monastique, volume 2, Ch. Vuillaume, Saint-Léger Éditions, 2020, 200 p.
Pierre Damien, L’héritage monastique, volume 3, Ch. Vuillaume, Saint-Léger Éditions, 2021, 200 p.
Trois volumes sont consacrés à Pierre Damien (1007-1072), cet ermite devenu cardinal. Ses écrits le révèlent. Il est bon qu’une traduction française nous en soit offerte. Merci au père Vuillaume de s’y être consacré. Un premier volume regroupe deux écrits : La perfection de la vie monastique et La Règle érémitique ou Lettre à Frère Étienne avec plusieurs lettres et avec des textes concernant des faits historiques de son époque.
Dans un deuxième volume, le P. Christophe présente la traduction de trois autres textes de Pierre Damien : Le « Dominus vobiscum » suivi de « L’éloge de la vie érémitique » ; « Cherchez d’abord le Royaume de Dieu » ou « Du mépris du siècle » et « La vie érémitique et les vrais ermites ». Le père Christophe Vuillaume montre comment la perspective de Pierre Damien incarne le propos monas-tique dans ce temps de Réforme qu’est le 11e siècle. Mais ce sont des textes qui dépassent une époque particulière et peuvent encore nous inspirer pour aujourd’hui.
Le troisième volume intéresse plus particulièrement l’histoire monastique. Il consiste en 21 lettres adressées aux communautés de moines, ainsi qu’une vie de saint Odilon. On trouve là beaucoup de renseignements concernant la vie monastique au 11e siècle dont bon nombre de corrections d’abus, et de polémiques. La vie de saint Odilon relève davantage du genre hagiographique mais nous renseigne cependant sur quelques aspects de la vie des communautés à cette époque, ainsi que les deux lettres qui suivent.
Le P. Vuillaume doit être remercié pour ce travail qui rend accessible des ouvrages qui autrement ne resteraient que l’affaire de spécialistes. Pierre Damien comme Pierre le Vénérable sont des personnalités suffisamment originales pour leur consacrer de l’attention et puiser dans leur inspiration des sources de renouveau. Il est intéressant de constater que l’érémitisme n’a pas cantonné Pierre Damien dans un univers clos et que la vie monastique fut pour Pierre le Vénérable un terrain propice à une grande ouverture. Ils ont été préparés, chacun pour leur part, à vivre un témoignage ecclésial qui est heureusement parvenu jusqu’à nous, tant pour ce qui est du monachisme que de la vie de l’église dans le monde en général. Il ne s’agit pas de prendre tous ces écrits à la lettre, mais de les intégrer dans un mouvement de recherche qui puisse être porteur de vie nouvelle.
Sagesse monastique dans un monde en devenir. Entretiens du P. Jean-Pierre Longeat avec Catherine Labey, 2021, Saint-Léger Éditions, 260 p.
Voilà plusieurs années, à l’AIM, que le projet était en cours de publier un genre de synthèse sur les questions d’aujourd’hui en relation avec les intuitions de la vie monastique. Encouragé par les contacts nourris avec de très nombreux monastères au niveau international du fait de sa responsabilité à l’AIM, le P. Jean-Pierre Longeat a collaboré avec Catherine Labey, membre des Amis des Monastères à travers le monde (AMTM), pour mener à bien ce travail. Un photographe, Bruno Jary, a également apporté son concours, donnant un aperçu en images de la variété des situations monastiques qu’il a côtoyé en Inde durant un séjour de quelques semaines. D’autres photos venant de la phototèque de l’AIM complètent l’ouvrage.
Les monastères ont-ils encore quelque chose à dire et à faire dans le monde d’aujourd’hui ? Plus que jamais. Ils font partie de ces réalités qui inspirent encore la confiance à bon nombre de nos contemporains. Leur longue histoire, leur tradition spirituelle et culturelle, leur radicalité dans la prise au sérieux du message du Christ leur donnent quelque crédit.
Il valait donc la peine de développer cette pertinence en quelques chapitres touchant à l’écologie, l’interculturalité, le dialogue interreligieux, l’économie, l’exercice des responsabilités, la sexualité et bien d’autres domaines qui sont aujourd’hui des lieux de profondes remise en cause. Il est possible de concevoir les monastères, dans le contexte actuel, comme des lieux alternatifs en collaboration avec de nombreux partenaires de la société civile.
Le livre se lit facilement, les propositions sont nombreuses. Le réseau monastique de la famille bénédictine, avec plus 1 700 communautés dans le monde, a vraiment encore quelque chose à dire et à faire sous la conduite de l’Évangile.