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A vida e a morte no ideal monástico
Boletim da AIM • 2020 - No 118
Índice
Editorial
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Lectio Divina
Eucaristia e serviço (Jo 13,1-15)
Dom Humberto Rincón Fernandez, OSB
Meditação
“Ele olhava como amigos os anjos que vinham a ele”. A morte de Santo Antão
Santo Atanásio
Testemunhos
• O cemitério do mosteiro beneditino de Thiên Binh
Nathalie Raymond
• O cemitério dos sete monges de Tibhirine
Monique Hébrard
• Koningsakker, o cemitério natural de uma comunidade monástica
Madre Pascale Fourmentin, OCSO
• A empresa de caixões de New Melleray
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Abertura ao mundo
As lições de vida de Paulo diante da doença e da morte
Pr Roger Gil, neurologista
Liturgia
Liturgia dos mortos: Tradições do Vietnã e ritos monásticos
Irmã Marie-Pierre Nhu Ý, OSB
Meditação
Renunciar ao sono da morte
Irmão Ireneu Jonnart, OSB
Uma página de história
Anglicanos e beneditinos
Padre Nicolas Stebbing, OSB anglicano
Trabalho e vida monástica
Orar com as mãos
Irmão Bernard Guékam, OSB
Monges e monjas testemunhas para o nosso tempo
• Dom Ambrose Southey
Dom Armand Veilleux, OCSO
• Madre Anna Maria Cànopi
Irmã Maria Maddalena Magni, OSB
• Madre Teresita D’Silva
Madre Nirmala Narikunnel, OSB
Notícias
• Ser úteis a todos. A propósito da Carta Caritatis
Dom Mauro-Giuseppe Lepori, OCIST
• Carta Caritatis. Colóquio internacional
Éric Delaissé, Responsável pelo CERCCIS
• Apresentação do 12º Encontro Monástico Latino-Americano (EMLA)
Padre Enrique Contreras, OSB
• Viagem à Argentina
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Editorial
Este número do Boletim da AIM é sobre o tema da vida e da morte no ideal monástico. Isto faz referência ao mistério pascal de Cristo, em geral, e a todos os tipos de costumes que o tornam presente no cotidiano.
Falaremos de dois exemplos originais de cemitérios monásticos, da confecção de caixões na Abadia de New Melleray (EUA); e dos ritos funerários para os monges e monjas defuntos no Vietnã. São assuntos que nos fazem refletir tanto do ponto de vista espiritual, como cultural, ou simplesmente humano.
Um médico neurologista, diretor de um centro ético e amigo de vários mosteiros, partilha, como testemunho, a vitória da vida sobre o sofrimento e sobre a morte.
Outras rubricas completam este número: a história dos monges anglicanos na Inglaterra, uma reflexão sobre “Trabalho e Economia” por um monge de Keur Moussa (Senegal), a evocação de grandes figuras monásticas: Dom Ambrose Southey que marcou tanto a Ordem dos Trapistas, a Madre Anna Maria Cànopi, fundadora do mosteiro da Ilha San Giulio, e a Madre Teresita D’Silva, fundadora do Mosteiro de Shanti Nilayam. Finalmente, este número dará notícias recentes da nossa família beneditina. Entre estas teremos um eco do 9º Centenário da Carta Caritatis da Ordem de Cister.
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Artigos
Morte e vida na Regra de São Bento
1
Padre Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente dell’AIM
Morte e vida na Regra de São Bento
No livro do Deuteronômio, Moisés fala ao povo de Deus, de modo muito decisivo no momento em que ele mesmo ia morrer, sem ter visto a Terra Prometida:
“Eu te proponho hoje a vida ou a morte, escolhe a vida e viverás”! (Deut 30,19).
A vida monástica levou a sério este apelo. Desde o começo da Regra São Bento retoma o apelo do Senhor:
“E procurando o Senhor o seu operário na multidão, ao qual clama, retomando o salmo 33: “Quem quer a vida? Quem deseja dias felizes?”diz ainda : “ Se, ouvindo, responderes: “Eu”, dir-te-á Deus “Se queres a verdadeira vida, a vida com Deus para sempre… Então procura a paz e segue-a” (Pról. 14-16).
E também no fim do Prólogo:
“De modo que não nos separando nunca do seu magistério e perseverando no mosteiro, sob sua doutrina, até a morte, participemos pela paciência, dos sofrimentos do Cristo a fim de também merecermos ser co-herdeiros do seu Reino” (Prol. 50)
No cap. 4 sobre os instrumentos das boas obras, São Bento volta ao tema da morte e da vida na existência de um monge: “Ter diariamente diante dos olhos a morte a surpreendê-lo” (RB 4, 46). Não há nada de mórbido nisso, é simplesmente sublinhar que a vida nesta terra, por mais importante que seja, é uma passagem e que agarrar-se a ela não dá a chave da existência. É, ao mesmo tempo, uma questão de orientação do desejo para a verdadeira vida e de vigilância sobre o cotidiano das palavras e dos atos.
Concretamente isto traduz-se por uma atenção na escuta obediente, para que o amor circule livremente entre nós. Assim no capítulo sobre a humildade, São Bento diz : “O terceiro grau da humildade consiste em que, por amor de Deus, se submeta o monge, com inteira obediência ao superior, imitando o Senhor, de quem disse o apóstolo: Fez-se obediente até à morte” (RB 7, 34). Mais uma vez é questão do mistério pascal. O quarto grau completa o anterior, mostrando como isso exige paciência e perseverança ; trata-se de “não se entregar, nem ir embora” até ao fim, para saborear a vida verdadeira.
Isto se vive sobretudo no quadro da liturgia, em que a alternância regular do dia e da noite reatualiza na nossa vida o mistério pascal de Cristo: ao pôr do sol com as Vésperas, em que Cristo morre na cruz, na noite escura das Vigílias com o combate que se passa nos salmos, ao nascer do sol com as Laudes, manhã da ressurreição, e ao longo das Horas Menores seguindo o caminho do sol e a paixão do Filho do Homem.
Isto também interfere igualmente no comportamento para com os doentes. Estes nos lembram a fragilidade da existência e a proximidade da última passagem. São Bento diz para reconhecer neles o Cristo, o Cristo sofredor e moribundo, e, no entanto mesmo nessas circunstâncias, testemunha constante da vida que está em Deus.
Do mesmo modo, São Bento pede que se tenha cuidado com as crianças, os hóspedes, os peregrinos, os pobres; neles reconhece-se o Cristo pobre, confrontado com a fragilidade da existência.
Para mostrar ainda mais esta relação com Cristo no seu mistério da Páscoa, a Regra prevê em diversas circunstâncias o rito do lava-pés. Na acolhida dos hóspedes, e também cada semana, quando os monges entram no serviço do refeitório e da cozinha, mesmo se esse rito não se faz mais hoje. Esta dimensão do serviço manifesta a participação na morte e na ressurreição de Cristo. O rito do lava-pés tem todo o sentido em ligação com a refeição eucarística, como Jesus fez na véspera da sua paixão.
O monge torna-se pobre de qualquer pertença pessoal. No dia de sua profissão, faz doação de tudo o que possui; sobretudo de si mesmo, pois está dito que a “partir desse dia nem sobre o próprio corpo tem poder” (RB 53, 25). É por isso que em certas épocas, a liturgia da profissão simbolizava a morte espiritual do novo candidato, que, prostrado, ficava coberto com um pano preto. Ou então, o professo ficava coberto com um capuz durante três ou oito dias, antes de se descobrir e aparecer como testemunha da ressurreição, segundo o modelo da liturgia do batismo. Lembremos também o “encorajamento” que outrora os monges trapistas faziam quando se encontravam “Irmão, caminhemos para a morte”, ou então, aqueles monges que, cada dia, cavavam o seu túmulo para experimentarem a vaidade das coisas que passam. Estes costumes já não se praticam hoje, pois o colocou-se o polo da vida e da ressurreição no seu devido lugar. Mas a vida monástica tem que vigiar para manter o equilíbrio das duas dimensões do mistério pascal. Uma nunca vai sem a outra.
No fim da Regra São Bento, resume-se assim a vida dos monges:
“Nada absolutamente anteponham a Cristo, que nos conduza juntos para a vida eterna” (RB 72, 11-12).
A morte e a vida só se compreendem bem, na vida monástica, à luz do mistério pascal de Cristo.

Eucaristia e serviço, missão de acolhimento nos nossos mosteiros
2
Lectio divina
Humberto Rincón Fernandez, OSB
Abade do mosteiro da Epifania, Guatapé (Colômbia)
Eucaristia e serviço, missão de acolhimento nos nossos mosteiros
Jn 13, 1-15
“Amou-nos até ao fim” (Jo 13,1)
O relato do lava-pés não evoca nada do que costumamos chamar de “Eucaristia”, resumido no gesto e nas palavras de Jesus sobre o pão e o vinho. No entanto no 4º Evangelho, a última Ceia, portanto a Eucaristia, é o lava-pés.
Dponto aos especialistas o cuidado de aprofundar o debate sobre o que aconteceu, realmente, durante a Ceia : ato sacramental sobre o pão e o vinho, ou ato profético do lava-pés, como o faziam os escravos? Li que parece que no começo da vida da Igreja os dois gestos estavam ligados, e que foi, pouco a pouco, por razões de facilidade que se privilegiou o do pão e do vinho.
O 1º versículo do cap. 13 do Evangelho de João é muito solene e muito profundo.
(13,1) “Antes da festa da Páscoa sabendo Jesus que chegara a sua hora, de passar deste mundo para o Pai, ele que amou os seus que estão no mundo, amou-os até ao fim.”
Estamos antes da festa da Páscoa, e Jesus prepara a celebração da sua Páscoa. Ele sabe que chegou a hora de passar deste mundo para o Pai, quer dizer a hora da sua glorificação, a hora de se manifestar definitivamente, de manifestar totalmente o Pai, de manifestar sua glória, seu ser, sua essência.
Jesus tinha mostrado ao longo de sua vida o seu amor pelos seus, mas agora, nesta hora, leva o amor até ao extremo, até ao fim, até às últimas consequências (até à morte, a morte de cruz, até à morte de um escravo crucificado).
(13,2) “Durante a refeição… (13,4) Jesus levanta- se da mesa, tira o manto, toma uma toalha com que se cinge (13,5) derrama água numa bacia e começa a lavar os pés de seus discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido.”
“Levanta-se da mesa”, quer dizer abandona o lugar que é o seu, o lugar de honra. Já tinha dito isso num outro texto do Evangelho. Quem é o maior? O que está à mesa, ou aquele que serve? Não é o que está à mesa? Ora eu estou no meio de vós como aquele que serve. (Luc 22, 27)
“Tira o manto”. São Paulo em Fil. 2, 6 e seguintes explica assim:
”Ele que tinha a condição divina, não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, assumiu a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens; E achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até à morte e morte de cruz.”
“Começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido” o que significa que faz um trabalho próprio de escravo e dos servidores da casa, ou das mulheres, nessa sociedade patriarcal em que os homens ocupam o primeiro lugar. E na lógica do hino dos Filipenses, é este abaixamento que o faz Senhor, que o leva a ser exaltado, a receber o Nome, que está acima de todo o nome. Quer dizer que o leva a ser reconhecido como Filho de Deus, que Deus age assim com os homens, e que tal é o amor de Deus pelos seus.
(13,8) “Pedro diz-lhe: jamais me lavarás os pés”! Jesus respondeu-lhe: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo” (13,9). Simão Pedro respondeu-lhe: “Senhor não apenas os meus pés, mas também as mãos e a cabeça”.
Pedro, por respeito pelo mestre, ou talvez por falsa humildade, ou talvez por um cálculo premeditado (se me deixar lavar, ele vai-me pedir para fazer a mesma coisa), recusa o gesto de Jesus. É muito engajamento! Mas diante da ameaça de Jesus, anunciando-lhe que, sem isso, não terá parte com ele, quer dizer não teria sua amizade e perderia a relação de mestre-discípulo, reage e pede para ser todo lavado. Este gesto amoroso do Senhor parece tocá-lo profundamente.
(13,12) “Depois que lhes lavou os pés, retomou o seu manto, voltou à mesa novamente e lhes disse: “Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais de Mestre e de Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou (13,13). Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns aos outros (13,14). Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais” (13,15).
Detalhe notável: Jesus retoma o manto, mas sem tirar a toalha com que se tinha cingido. Mesmo à mesa, continua servo, escravo. O fato de ser Senhor e Mestre, não o dispensa de continuar servo.
Depois vem a ordem que corresponde ao relato do pão e do vinho: “Fazei isto em memória de mim”. Esta expressão é utilizada ao mesmo tempo para o lava-pés e para a refeição da Ceia, a Eucaristia.
(13,14) Se vos lavei os pés, eu o Senhor e o Mestre, vós também deveis lavar os pés uns aos outros, pois é um exemplo que vos dou: o que eu fiz, fazei-o vós também.
Lavar os pés uns dos outros. Tal é o mandamento. Fazermo-nos escravos e servos do próximo, decorre da participação da Ceia do Senhor. Dar a vida, como ele fez, até às últimas consequências.
O capítulo continua com o anúncio da traição de Judas e da negação de Pedro. Desde o começo está bem presente a possibilidade de que aqueles que participam da Ceia possam trair e negar o Mestre. Para o Senhor, pouco importa o que possa acontecer; ele continua a convidar-nos para a sua mesa, a mesa do seu amor e do não se admirar com nada.
Quero voltar ao outro gesto que nos é mais familiar: o do pão e do vinho. Jesus faz uma declaração sobre esses dois elementos. Identifica-se com eles: esse pão sou eu, que me dou por vós. Faço-me pão para ser rompido, partilhado, distribuído. Sou a vida entregue, partilhada. O vinho deste cálice é meu sangue que vai ser derramado para celebrar uma nova aliança. Este vinho é meu sangue derramado, para dar uma vida nova.
E depois encontramos a mesma ordem do capítulo 13 “Fazei isto em memória de mim”. A realização deste ato sacramental em cada Eucaristia nos compromete tanto como o lava-pés. Comer o corpo do Cristo e beber o seu sangue compromete-nos a ser, uns para os outros, um corpo dado, sem nada reter, totalmente; ser sangue derramado engaja-nos a dar a nossa vida, gota a gota, pelos outros.
Estes dois gestos têm relação com a vida monástica. A participação na Eucaristia deve traduzir-se na vida concreta de cada monge e de cada monja, no serviço do lava-pés, simbolicamente não somente no acolhimento e serviço dos hóspedes, o que é mais fácil, mas no de qualquer irmão ou irmã com quem partilhamos o mesmo ideal de vida.
Esta coerência entre Eucaristia e vida, que nos é pedida no acolhimento dos outros, deve ser total, a começar no nosso mosteiro, na comunidade. Não pode haver acolhimento autêntico do hóspede, sem uma vida fraterna verdadeira e autêntica no interior da comunidade monástica. Quer queiramos ou não, os hóspedes percebem isso quando visitam nossos mosteiros. Muitas vezes só têm contato com o porteiro, o hospedeiro, ou eventualmente um acompanhante espiritual, mas deixam nas mensagens escritas que fazem a gratidão para com todos os monges pelo testemunho de vida que dão, sua atenção, a comunhão fraterna, e também, mais fundamentalmente a relação com o Senhor, que perceberam nas celebrações e nas atenções discretas que receberam. Quando acontece serem testemunhas de divisão, de inveja, de maledicência, de incoerência de vida, percebem-no também. Não ousam expressar isso por escrito, mas falam e guardam um sabor amargo. É um contra testemunho.
Quando falamos de Eucaristia, falamos de comunidade. É a comunidade que celebra a Eucaristia. Uma pessoa sozinha, mesmo sendo padre, não pode celebrar uma Eucaristia (de fato a Apresentação Geral do Missal Romano (nº 252) exige que haja pelo menos um ministro para assistir o padre; somente em casos excepcionais e justificados que se pode celebrar sem um ministro, ou sem um fiel (nº 254). O Ite missa est é um envio no plural; isto significa que a missão que decorre da participação na Eucaristia, não é uma missão privada. Isto aplicado ao nosso tema significa que o hospedeiro ou a hospedeira que representa a comunidade não age como se o cargo fosse coisa sua. Isto quer dizer, aquele que está de serviço, que age em nome da comunidade, e não à margem, ou pior contra a comunidade. Em consequência, há também uma exigência para todos os monges e monjas: como assistem ao hospedeiro (a), atentos ao que fazem e disponíveis para dar uma ajuda?
O serviço da hospedaria é uma missão dada pelo superior ou superiora da comunidade. O hospedeiro (a) deve estar em comunhão com eles e mantê-los a par do que se passa na hospedaria.
São Bento, quando fala do acolhimento dos hóspedes, no cap.53 da Regra, nos envia ao primeiro gesto que comentamos: o do lava-pés. No Evangelho, o Cristo, o Mestre, lava os pés dos seus discípulos,seus irmãos, e convida-nos a lavar os pés mutuamente, como irmãos, a fazermo-nos escravos e servos do próximo, como ele fez. Na suaRegra, São Bento sublinha um ponto muito interessante: o hóspede não é somente um irmão, mas o Cristo em pessoa, que vem nos visitar.
“Que se recebam todos os hóspedes, que se apresentam, como ao próprio Cristo, pois ele mesmo disse: fui hóspede e me recebestes.”
É uma referência ao cap. 25 do Evangelho de São Mateus (Mt 25, 31-46) sobre o Juízo Final, aonde está dito: “Em verdade vos digo, cada vez que o fizestes a um destes irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes” (v. 40).
Isto significa para São Bento, que não é somente o sacramento do Corpo e do Sangue que envia para a missão do serviço do acolhimento no mosteiro, mas também o sacramento do irmão. Este tema volta muitas vezes na Regra : o irmão não somente representa o Cristo, mas é o próprio Cristo que nos vem visitar; é por isso que se deve ter o maior cuidado.
Creio que todos nós fazemos esta experiência: os hóspedes não são perturbadores, uma coisa que atrapalha e que devemos suportar na nossa vida monástica. São verdadeiras testemunhas do que fazemos e do modo como o fazemos, testemunhas da autenticidade do que fazemos, às vezes distraidamente ou como uma rotina. Eles mesmos nos dão o testemunho da força de sua fé e do esforço de coerência que tentam ter nas suas vidas, do modo como lutam na sua vida para ficarem fiéis, levando uma vida corajosa, lutando para ganhar o pão de cada dia, para gerirem bem sua casa, para serem responsáveis no trabalho, que não abandonam por qualquer motivo, etc.
Para concluir, gostaria ainda de citar São Bento. Nesse mesmo cap. 53, ele dá indicações sobre a escolha do hospedeiro. Como em todas as coisas no mosteiro, este serviço vive-se no temor de Deus, quer dizer na presença de Deus. Na fé, eu sei que minha vida está sempre presente a seus olhos. Não para me vigiar e ver minha falha, para me castigar, mas para me amar com seu olhar e seu amor miseri- cordioso. Sou amado por Deus e minha vida irradia esse amor nas minhas relações com os outros.
Vivemos tempos difíceis na Igreja, com o problema dos abusos sexuais sobre menores. Não vou abordar aqui essa questão, que não é do meu campo, mas gostaria de aproveitar o que o Papa desenvolve a esse respeito em várias de suas intervenções: o abuso sexual é precedido por abuso de poder e abuso de consciência.
O monge ou a monja representam uma realidade muito especial aos olhos dos fiéis e das pessoas que vêm ao mosteiro. Consideram-nos mais ou menos como santos. E isto cria em nós, inconscientemente a ideia que somos superiores aos outros. Isso significa ter poder. E a partir daí podemos cair facilmente no abuso de poder. Podemos aproveitar dos outros, especialmente dos hóspedes: para cumular carências afetivas, para ter amigos cheios de solicitude fora do mosteiro, para conseguir, de maneira indelicada, vantagens econômicas para o mosteiro, para que nos façam presentes, ou que nos venerem, ou o que é pior ainda, para desviar, em nosso proveito, os dons que os hóspedes deixam para o mosteiro.
Em tudo isto, cegos sobre o abuso de consciência, achamos facilmente razões para motivar nosso comportamento. Sou hospedeiro (a), tenho de ser amável com nossos visitantes, não posso ser frio, ou seco com eles… Não faço nada de mal (e nada de bem também)… Eu também preciso de compensações… Trabalho bastante para merecer uma recompensa, etc.
Lembremo-nos do que disse: nosso serviço de acolhimento está fundamentado na Eucaristia. Acolhemos e servimos aqueles que vêm ao mosteiro, pois queremos oferecer-lhes o humilde serviço de Cristo na última ceia, queremos dar nossa vida, como Ele. Nós acolhemos o hóspede e todos os visitantes, pois é a pessoa mesmo de Cristo que vem a nós. E tudo isto o fazemos com o coração puro, sem outras intenções, pois trata-se do próprio Cristo, nosso Senhor, que deu sua vida por nós, morrendo e ressuscitando.
A morte de Santo Antão
3
Meditação
“Ele olhava como amigos os anjos que vinham a ele”
A morte de Santo Antão
Santo Atanásio
Antão tinha ido como seu costume, visitar os mosteiros da montanha que está além do deserto; tendo sido avisado pela Providência que seu fim estava próximo, disse aos irmãos: “É a última visita que vos faço, ficaria muito admirado que pudéssemos nos ver ainda neste mundo. O tempo da minha partida chegou, pois que tenho quase 105 anos”. Seus discípulos ouvindo isto puseram-se a chorar; abraçaram o ancião nos seus braços e cobriram-no de beijos; ele, semelhante a alguém que parte de uma cidade estrangeira para ir para a sua pátria, falou-lhes com voz alegre; exortou-os a nunca relaxar o trabalho de ascese, a nunca desanimar nos exercícios de piedade, a viver como se cada dia fosse o último de suas vidas.
Os irmãos queriam forçá-lo a ficar com eles e aí consumar seu martírio, mas ele não consentiu; voltou à montanha do deserto onde morava e poucos meses depois ficou doente. Chamou os dois discípulos que moravam com ele, para o servirem na sua velhice e disse-lhes: “Vou seguir o caminho de meus pais, como diz a Escritura, pois vejo que o Senhor me chama; enterrai meu corpo, escondei-o debaixo da terra e guardem fielmente esta recomendação; que ninguém fique sabendo onde é o lugar em que está o meu corpo, exceto vós. No dia da ressurreição dos mortos, recebê-lo-ei incorruptível das mãos do meu Salvador. Repartam assim as minhas vestes: deem ao bispo Ataná- sio duas peles de ovelha com a manto sobre o qual costu- mava dormir; ele deu-me isso novo, e ficou velho com o uso. Deem ao bispo Serapião a outra pele de carneiro; quanto a vocês guardem minha túnica de pelo. Adeus meus filhos, Antão vai-se e desde agora não está mais convosco”. Depois de ter pronunciado estas palavras os dois discípulos beijaram-no. Antão recolheu os pés e olhando como amigos os anjos que vinham ao seu encon- tro, e cuja presença o enchia de alegria, rendeu o espírito e foi ao encontro de seus pais.
Os dois discípulos executaram fielmente a ordem recebida, enterraram-no na terra bem fundo; e até hoje ninguém sabe aonde está escondido, exceto esses dois religiosos. Quanto àqueles que receberam as peles de cordeiro, que ele lhes legou, mais o manto usado, conser- vam isso como relíquias, como objetos infinitamente preciosos, pois olhando para eles, é como se vissem ainda Antão, e quando usam essas coisas parece-lhes que carregam com eles as lições e os conselhos de Antão.
O cemitério do mosteiro beneditino de Thiên Binh
4
Testemunhos
Nathalie Raymond
O cemitério do mosteiro beneditino
de Thiên Binh, aberto à vida
Original, em relação à tradição beneditina, sem o ter premeditado, o cemitério do mosteiro de Thiên Binh formou sua configuração atual ao longo dos anos, em resposta a necessidades concretas. É aberto a outras congregações religiosas masculinas e femininas e até a leigos católicos, e esteve no coração de uma reflexão comunitária sobre sua função espiritual.
Um monaquismo missionário…
O mosteiro foi fundado em 1970 pelo P. Thadée, vindo de Thiên An, mosteiro que tinha sido fundado pelo mosteiro Pierre-qui- Vire no final de 1930. Desde o começo, a ideia de um monaquismo missionário esteve sempre presente, sobretudo no contexto político muito difícil de guerra. Tratava-se de responder às necessidades das populações desfavorecidas e desenraizadas, vindas das regiões rurais, por causa do conflito, e ao mesmo tempo, dar uma formação aos jovens de origem modesta, graças a uma escola técnica.
Hoje a situação econômica e política é muito diferente, mas continuam a existir populações desfavorecidas e desenraizadas, vindas das áreas rurais à procura de uma vida melhor na grade cidade de Saigon. O mosteiro continua a esforçar-se para responder a suas necessidades urgentes, não mais no setor da educação, mas no da saúde. O mosteiro tem um dispensário, aonde os pobres são tratados pela medicina tradicional e aonde é distribuída gratuitamente água potável, de uma fonte que graças a Deus, nunca secou.
Esta preocupação pela saúde física caminha junto com a da saúde espiritual. Os monges beneditinos acolhem e acompanham os que precisam, rezam por eles, celebram missas por eles; e são igualmente muito agradecidos para com seus benfeitores, graças aos quais podem manter essas atividades.
Sem que a vida beneditina seja afetada, o mosteiro tem trocas muito dinâmicas com o exterior, em dons múltiplos e recíprocos, geradores de vida. Mas os defuntos não estão excluídos desse processo.
… que inclui igualmente os defuntos.
Devido à relativa pouca idade do mosteiro, até agora morreram poucos monges, somente três, entre os quais o fundador, o P. Thadée, que morreu no dia 31 de Janeiro de 1995. No entanto, a questão da função espiritual do cemitério, colocou-se a partir de fatos concretos que se impuseram ao P. Thadée: os primeiros a ser enterrados no cemitério foram membros de uma família pobre, vítimas de uma bomba que explodiu no fim dos anos 70. Esta situação não podia deixar insensível o P. Thadée, sempre muito preocupado em responder às urgências dos mais necessitados. Depois, as irmãs de uma congregação vietnamita (As amantes da Cruz) pediram autorização para enterrar ali suas irmãs defuntas, e depois outras congregações de religiosos e religiosas fizeram o mesmo pedido. E seguiu-se o acolhimento de leigos católicos defuntos. Houve um motivo muito prático para estes pedidos vindos do exterior, a falta de espaço na metrópole de Hô-Chi-Minh-Cidade. É impossível aumentar, ou até manter cemitérios, além de que isso não entra nas prioridades do governo comunista. A cremação é muito espalhada no país e a única solução diante da falta de espaço, mas é difícil de ser aceita por certos católicos, daí a procura de cemitérios.
A alegria de poder repousar em paz, ao lado de um lugar de oração, foi outro motivo muito compreensível para católicos fervorosos, religiosos, ou não. Isto dá ao cemitério de Thiên Binh uma fisionomia muito original no mundo beneditino (tanto mais que o cemitério está fora da clausura): um cemitério inter-congregacional, masculino e feminino, aberto igualmente a leigos. Isto levou a comunidade a esclarecer, progressivamente, a função espiritual do cemitério. Esta reflexão foi feita ao longo de vários anos, à luz do Espírito Santo, e levou a descobrir nessa situação particular, uma espécie de prolongamento dos contatos múltiplos que o mosteiro mantem com o exterior. Um prolongamento inscrito na comunhão dos santos, celebrada pela Igreja e ao mesmo tempo na memória dos antepassados, tão cara aos Vietnamitas. De fato, é muito importante para os vivos, na cultura vietnamita, ter consciência de tudo o que devem àqueles que os precederam, e honrá-los.
A diversidade de “ocupantes” do cemitério reflete também a diversidade da Igreja, e é bom imaginar que esses encontros com o exterior, começados quando estavam vivos, continuam depois da morte. É bom ver nisso a continuação da atividade missionária, tão cara ao fundador, e aos seus sucessores. Além disso, quem sabe o que o mosteiro deve a esses antepassados, que agora estão na luz de Deus? Em troca de um pedaço de chão, quantas graças obtidas pela intercessão desses santos para a continuação das atividades realizadas por meio deles e em favor dos vivos?
La diversité des « occupants » du cimetière reflète aussi la diversité de l’Église et il est bon d’imaginer que l’échange entre les moines et l’extérieur, initié de leur vivant, se poursuit au-delà de la mort. Il est bon d’y voir une poursuite de cette activité missionnaire si chère au cœur du fondateur et de ses successeurs. En outre, qui sait ce que le monastère doit à ces ancêtres qui sont désormais entrés dans la lumière de Dieu ? En échange d’un lopin de terre, combien de grâces obtenues par l’intercession de ces saints pour la poursuite des activités réalisées par et en faveur des vivants ?

A celebração do ciclo vida-morte-vida
Em ação de graças por esta comunhão entre vivos e defuntos, é celebrada uma missa, cedinho, no cemitério sempre a 2 de Novembro, quando a Igreja comemora os fiéis defuntos. Nesta ocasião, as famílias religiosas e biológicas das pessoas enterradas no cemitério, juntam-se à comunidade dos monges para prestar homenagem aos seus antepassados na oração e na celebração da Eucaristia. A fumaça do incenso acompanha estas orações e os pauzinhos continuam a queimar em cada túmulo. É um momento muito importante de comunhão e de recolhimento, que torna palpável o mistério da vida e da morte inscritas no mesmo ciclo.
Este ciclo vida-morte-vida materializa-se de um outro modo no cemitério. O visitador de fora verá, com surpresa, que aí crescem muitas plantas: flores, ou plantas decorativas, em cima dos túmulos, nos vasos de terra, mas igualmente arbustos, pequenas palmeiras, e numa parte do cemitério açafrão, com cujas raízes os monges fazem medicamentos. Esta vegetação faz também do cemitério um lugar de refúgio para muitos pássaros. Trata-se de um espaço que materializa o fato que a vida continua e que é mais forte que a morte, o que está no coração da nossa fé.
Este cemitério ao longo das circunstâncias (nas quais se pode ver a mão de Deus) impôs-se uma espécie de prolongamento da atividade missionária e do acolhimento do mosteiro no coração da vocação monástica beneditina. Inscrevendo-se de modo particular e aberta ao mesmo tempo na Igreja e no ciclo vida-morte-vida, é igualmente um lugar que reflete a comunhão dos santos. Demos graças a Deus por todos os frutos que esse lugar produz nos corações.
O cemitério dos sete monges de Tibhirine
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Testemunhos
Monique Hébrard, Jornalista
O cemitério dos sete monges de Tibhirine
A silhueta dos sete monges trapistas vê-se na penumbra da noite do dia 26 para o dia 27 de Março de 1996. Essa última imagem do belíssimo filme de Xavier Beauvois deixava-nos na incerteza : estariam reféns num lugar escondido? Teriam sido assassinados? Se foi o caso, onde estavam os corpos? Sabe-se como é difícil viver um luto quando os corpos das vítimas de um acidente de avião, ou de um crime, não são encontrados.
A penumbra da incerteza só foi levantada – numa visão horrível – quando no dia 30 de Maio foram encontrados os corpos… de fato as sete cabeças decapitadas.
Os restos dos sete monges repousam agora no cemitério do mosteiro Notre Dame do Atlas, lugar aonde viveram. Milhares de pessoas de todos os países vêm aí recolher-se, rezar. Cristãos, mas também, e sempre mais jovens muçulmanos à procura de um sentido para a vida.
Esse lugar me falava muito, mesmo sem nunca ter estado lá, por isso agarrei a possibilidade de ir aí, quando da beatificação dos 19 mártires da Argélia, no dia 8 de Dezembro de 2018, mártires desse “anos negros” da guerra civil argelina, que fez milhares de mortos.
A partir do mosteiro passa-se uma entrada, e desce-se no meio de árvores, passando diante das fontes que continuam a alimentar a exploração agrícola. Depois chega-se a uma clareira cheia de flores de lavanda e de rosas, impecavelmente tratada por Youssef e Samir que continuam a trabalhar na exploração agrícola. Sete placas com sete nomes por ordem de chegada ao mosteiro. O primeiro foi irmão Lucas, o médico que encarnou tão bem a fraternidade universal tratando todos os que se apresentavam: gente da aldeia e também feridos do GIA.
Os jardineiros estão conosco. O modo como olham esta terra tão bem trabalhada, que eles cuidam, mostra o amor repleto de respeito que têm por este lugar. Momento forte de silêncio! Grande emoção, mas também paz profunda e mistério!
Tibhirine significa jardim. Jardim do paraíso, cultivado com amor, no meio de árvores frutíferas. Jardim de oliveiras, lugar de sofrimento e de morte. Como em oração há grupos que leem muitas vezes o testamento de Christian de Chergé. E é-se penetrado por essa mensagem de fraternidade e de comunhão que anuncia a Vida e o Amor mais fortes que o ódio devastador.
Quando se chega à esplanada, é difícil sair do silêncio desta viagem espiritual.
Quando estávamos em Tibhirine era o tempo do Advento. Na capela feita na antiga adega da exploração agrícola, havia um presépio já armado com sete personagens que esperavam a vinda do Salvador.
Koningsakker, o cemitério natural de uma comunidade monástica
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Testemunhos
Madre Pascale Fourmentin, OCSO
Abadessa de Koningsoord, Arnhem (Holanda)
A natureza entre céu e terra
Koningsakker, o cemitério natural
de uma comunidade monástica
“Koningsakker” é o nome do cemitério natural, ou ecológico, ligado à Abadia cisterciense Koningsoord nos Países Baixos. Vendo bem, o nome do cemitério e o nome da Abadia começam com a mesma palavra : Koning , “Rei” em neerlandês. Não é tanto o nome, em si, que importa, mas o fato de ser o mesmo nome. Isto expressa o laço que existe entre o cemitério e a Abadia.

Mas o que é que é um cemitério natural? Por que uma Abadia cisterciense se lançou na exploração de um tal cemitério? É compatível com a vida monástica? São algumas perguntas que vêm esponta neamente ao espírito, quando se ouve falar de tal projeto. Este artigo quer dar alguns elementos de resposta, por um lado, explicando o conceito de cemitério natural, por outro mostrando o desenvolvimento do projeto.
1. A natureza, última morada na terra
Talvez tenhamos esquecido, mas a natureza é, sem dúvida, o lugar mais natural em que o homem sempre foi enterrado. Evidentemente a necessidade de ritos, de lugares, de símbolos, depressa levou ao desenvolvimento de lugares específicos, aonde o homem com sua religião e sua cultura se expressou de formas diferentes. A situação atual dos cemitérios citadinos, “superpovoados” de caráter religioso, ou leigo, o fechamento de muitas igrejas paroquiais, a necessidade para os parentes dos defuntos de renovar o uso do espaço por duração determinada, as mudanças das famílias para o estrangeiro, ou para outras regiões do país, evidentemente o aumento do número de cremações levaram a repensar o modo de enterrar os nossos mortos. O aparecimemnto do cemitério natural situa-se em linha reta com estas reflexões. Apareceram primeiro na Inglaterra e depressa chegaram aos Países Baixos. Este movimento cresceu muito nos últimos dez anos.
O princípio deste tipo de cemitério é muito simples, trata-se de enterrar um defunto na natureza, de entregar o corpo à natureza. Não há nenhum sinal distintivo, nenhuma pedra, nenhuma cruz, nenhuma cerca. O princípio é que a natureza vai cuidar do túmulo. A natureza que é viva, vai continuar a desenvolver-se. Vê-se já aqui o laço estreito entre a vida e a morte, pelo menos no plano natural. Para levar mais longe o laço entre vida e morte, este projeto de cemitério tem também por fim participar no desenvolvimento e na preservação da natureza. De fato, certos cemitérios têm também como objetivo concreto, e é o caso de Koningskker, de “criar” a natureza. Koningsakker transformou 17 hectares de campo de milho em reserva natural, em harmonia com o meio ambiente. Esta reserva natural participa do desenvolvimento da fauna e da flora na nossa região. Nos Países Baixos, a preocupação ecológica está muito presente e a gestão do território centrada na preservação da natureza.
Concretamente, uma pessoa que queira ser enterrada no nosso cemitério escolhe o lugar. Este lugar fica no sistema GPS. Por isso é sempre possível encontrar o lugar do túmulo, mesmo no meio de um campo de urzes. A pessoa compra o direito de ser enterrada nesse lugar. Este direito é por tempo indeterminado. Ficará sempre ali, não vai acontecer nada com seu túmulo. Quando todos os túmulos forem vendidos, fica sempre uma reserva natural. Depois do enterro, os parentes podem escolher pôr um sinal de madeira com o nome do defunto gravado. Este sinal, como tudo o que é enterrado com o defunto, é biodegradável.
Além do aspecto ecológico, o aspecto humano tem uma grande importância no projeto. O acompanhamento das pessoas é essencial ao longo de todo o processo. Além de uma presença constante no acolhimento do cemitério, todo o encaminhamento desde a escolha do lugar, até ao enterro, e pelas visitas dos parentes nos anos seguintes, tudo é cuidadosamente acompanhado por um pessoal competente e especializado. Este pessoal está ali para escutar, acompanhar, aconselhar. O cuidado da natureza e o cuidado das pessoas são uma preocupação constante neste tipo de projeto.
2. O surgimento de um cemitério

Como chegamos a este projeto? Foi fruto de um lento processo comunitário. Dois elementos se cruzaram para chegar a esta pista. O primeiro foi a preocupação de guardar uma zona de silêncio e de natureza à volta da Abadia. A comunidade tinha mudado de lugar há 10 anos, por causa do crescimento da cidade em que a Abadia estava antes. Não queríamos voltar a viver esse mesmo tipo de cenário, o que não é muito fácil num país com forte densidade populacional. Os campos de milho vizinhos da nossa Abadia eram um risco para a nossa solidão. Surgiu a oportunidade de comprar esse terreno, e vimos nisso um apelo. Ao mesmo tempo a nossa economia monástica estava num desequilíbrio estrutural, que exigia uma solução. Eis os ingredientes de base do projeto. À primeira vista a ideia de fazer um cemitério parece esquisito. E depois nós nem sabíamos bem do que estávamos falando. Mas pouco a pouco nos informamos, visitamos outros lugares aonde já existia esse tipo de projeto, dialogamos juntas sobre a possibilidade. Depois das primeiras reações de rejeição diante da ideia de morar ao lado de um cemitério, surgiram outros argumentos: Laudato Si, a ecologia, uma nova relação com a morte e com os modos de enterrar, a partilha da nossa propriedade, “ter sempre a morte diante dos olhos”, como dia Regra de São Bento no cap. 4, o testemunho da nossa fé na ressurreição, e finalmente, para nós cistercienses, a ligação contemporânea com a terra e sua gestão. Também tivemos de refletir sobre nossa identidade católica, no coração de uma região protestante. O cemitério não é um cemitério católico, tal como nossa hospedaria que é aberta a todos. No entanto afirmamos claramente nossa identidade cristã e católica. As pessoas que querem ser enterradas aqui têm de respeitar isso, tal como os hóspedes têm de respeitar o nosso modo de agir na hospedaria. Apesar do mundo altamente secularizado em que vivemos, as pessoas são sensíveis ao nosso testemunho por meio deste projeto. Para eles e para suas famílias é um modo de entrar em contato com a Abadia.
Koningsakker abriu suas portas, se se pode dizer assim, no dia 1º de setembro 2019. Em todo o país há um verdadeiro interesse por esta forma nova de cemitério e pelo processo para o pôr em prática. Isto confirmou a escolha que fizemos. No entanto precisa-se agora acompanhar, de perto, este projeto, ver o que acontece, adaptar a fórmula aos pedidos recebidos e aos nossos objetivos. A comunidade viveu uma experiência muito construtiva. Vivemos isto como um testemunho de nossa fé na ressurreição, no coração de uma posição ecológica, contemporânea. Trabalhamos em colaboração com o pessoal do setor. O cemitério é gerido por leigos, mas nós asseguramos uma presença discreta no local. Rezamos particularmente pelos que estão enterrados no nosso cemitério. Embora pareça paradoxal, o desenrolar deste processo, que foi pesado, vivificou a nossa vida comunitária e nos uniu à volta de um projeto inovador, arriscado, mas que já está dando frutos.
A empresa de caixões de New Melleray
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Testemunhos
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
A empresa de caixões de New Melleray
Uma maravilha,[1] mas também quanto trabalho no belíssimo terreno do mosteiro de New Melleray, perto de Dubuque no estado de Iowa, nos Estados Unidos, com cerca de 1376 hectares de mata e de terras agrícolas! Hoje menos numerosos e envelhecidos do que no passado, os monges continuam a aproveitar do lugar, mas tiveram de procurar o que seria suscetível de produzir rendimentos suficientes, sem ser esmagados pelo peso do trabalho.
O tempo em que a Abadia de New Melleray tinha 150 monges vivendo do trabalho de uma fazenda diversificada, com vacas leiteiras e porcos, passou há mais de uma geração. Ao longo dos últimos anos a Abadia apoiou-se nas doações dos hóspedes, das aposentadorias dos monges mais velhos, da venda de soja e milho biológicos, mas tudo isso junto não cobria o conjunto das despesas anuais.

New Melleray não é a única Abadia a ter de enfrentar tais exigências econômicas. É verdade, a vida monástica beneditina considera o trabalho como parte integrante do seu carisma. Mas com o acento sempre mais colocado na tecnologia e na internet, sobre normas de segurança e imperativos de lei, a noção de trabalho mudou e os monges tiveram de se adaptar.
A comunidade de Melleray teve de procurar um modo de ganhar a vida compatível com a vida monástica. Os monges votaram o fim de sua empresa de alimentação animal, em parte porque não lhes deixava bastante tempo para a vida contemplativa. Havia um sentimento de insatisfação em alguns que diziam: “eu não entrei no mosteiro para trabalhar numa fábrica”.
Os monges pensaram então em criar uma fábrica de móveis, mas um homem de negócios, amigo, dissuadiu-os. Mais ou menos na mesma época, um agricultor vizinho que tinha descoberto o interesse do comércio de caixões, pediu-lhes para fazerem esse tipo de produto nos ateliers do mosteiro. A coisa parecia interessante e instalou-se uma colaboração, depois que a comunidade deliberou sobre a proposta. Parecia um trabalho indicado para monges, pois para eles, segundo São Bento, cada hora do dia deve ser recebida como a mais impor tante, a da passagem para o Pai.
É um leigo que administra a fábrica de caixões para os trapistas e supervisiona os trabalhadores: os monges que colaboram começam às 9,30, fazem uma pausa para a oração e a refeição do meio-dia, retornam ao trabalho duas horas mais tarde; e largam martelos e serras às 16h30, antes de irem para as vésperas.
Uma pessoa leiga é também empregada como “conselheira das famílias que procuram os caixões trapistas”. Ela encontra pessoas de todo o país no momento importante de suas encomendas: é um contato muito rico em que se pode ver o Espírito Santo trabalhando, por meio dos monges, os clientes e os empregados, escutando a vida e as histórias do fim de vida no seio dessas famílias.

No mosteiro, tudo é vivido em função do serviço de conforto e consolação de que as famílias precisam. Cada caixão é feito num espírito de oração contemplativa. Cada caixão é benzido depois da compra, para marcar o começo da última viagem.
Cada pessoa que pediu um caixão, ou uma urna trapista, é citada durante a missa, na Abadia. Os nomes dos defuntos estão inscritos num livro comemorativo e uma árvore foi plantada na mata monástica situada ao lado de New Melleray ; é um memorial vivo para o defunto. Uma carta é enviada às famílias para lhes dizer como podem ajudar o ministério dos monges, assim como uma carta por ocasião do 1º aniversário da morte. Os monges da Abadia New Melleray rezam pelos defuntos e por suas famílias. Todas as famílias são convidadas a participar na missa comemorativa, a visitar o atelier e a informar-se sobre a vida e as atividades da comunidade. Todos os clientes são convidados a ter contato com os monges, cada vez que o desejarem.
Cada caixão é entregue com uma cruz, que é personalizada com o nome gravado e as datas do defunto. Esta lembrança familiar é um meio de honrar cada dia a memória de um ente querido.
Os caixões feitos em madeira de lei maciça, vêm da natureza e voltam à natureza. É um gesto de reconhecimento pelos dons de Deus. O atelier de New Melleray não se contenta em fornecer um produto, mas vive esse trabalho como uma participação na obra de amor e da misericórdia de Cristo.
[1] Este artigo foi escrito a partir de várias fontes de informação.
As lições de vida de Paulo diante da doença e da morte
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Abertura ao mundo
Prof. Roger Gil, neurologista
Diretor de um Espaço de Reflexão Ética (França)
As lições de vida de Paulo
Diante da doença e da morte
O New England Journal of Medecine (NEJM) tem como vocação publicar artigos ligados ao que se pode chamar de lado científico da medicina, justamente aquele que tem por objeto as novidades no plano do diagnóstico, preventivo ou curativo. Mas acontece, de tempos em tempos, que esta revista se abra para realidades humanas e éticas da medicina. O exemplo mais famoso é, sem dúvida, o artigo de Henry Beecher publicado em 1966[1] que provocou uma tomada de consciência da medicina ocidental, apresentando um certo número de trabalhos científicos que relatavam pesquisas feitas sobre o ser humano, e que não respeitavam a dignidade da pessoa humana. Em 2016 o NEJM prestou-lhe uma grande homenagem[2] mostrando assim que a reflexão ética não é um freio para a pesquisa, mas condição para sua humanização.
Em Agosto de 2018, o NEJM publicou um artigo que trata do lado humano da medicina, contando uma história clínica intitulada “Lições de vida de Paulo diante da morte”[3].
Paulo é um rabino que morreu três anos depois de lhe ter sido diagnosticado um câncer do cólon já com muitas metástases. Tinha 64 anos quando dores abdominais levaram à descoberta de um câncer do cólon em estágio IV já espalhado. Fez uma colostomia (ânus artificial) por causa dos tratamentos mais inovadores que se seguiram e morreu 34 meses depois do diagnóstico. O autor do artigo, médico, e seu irmão, descreve três lições que Paulo deu aos seus, durante o tempo de vida que a medicina lhe proporcionou.
Olha para trás para aprender a viver voltado para o futuro
Paulo nunca tinha feito nenhum teste de câncer do cólon. Não lamentou a respeito disso nenhum arrependimento, e estava de acordo com a filosofia de Kierkegaard segundo a qual a vida deve estar voltada para o futuro, mas deve ser compreendida a partir do passado. Assim incentivou sua esposa e filhos a fazerem o exame do câncer. Sabia que não podia mudar nada daquilo que lhe acontecia, mas sabia que contando sua história, podia ajudar outros a não terem o mesmo destino que ele. Ajudou as pessoas que tinham medo de fazer o exame do câncer do colon, o desconforto do exame era passageiro, mas a recompensa durável.
Faz teu trabalho
Paulo, rabino, pertencia à corrente conservadora do judaísmo, um ramo entre os reformadores e os ortodoxos: tinha ideias de abertura e de inclusão, de respeito pela diversidade e pela fé dos outros. Apesar de sua doença, e mesmo quando passava por quimioterapias pesadas, permanecia a serviço de sua comunidade, assumia a presidência de cerimônias religiosas. Três meses antes de sua morte, oficiou o funeral de um membro de sua comunidade. E disse antes de morrer, esperava que pudessem fazer a mesma coisa por ele, quando da sua morte. E assim aconteceu.
Ter um objetivo
Por causa de sua doença o casamento de sua filha teve de ser adiado. Quarenta e oito horas antes das núpcias, foi hospitalizado com um sangramento intestinal. Reuniu todas as suas forças para estar presente algumas horas antes da cerimônia. Seus familiares próximos ajudaram-no a vestir-se e a juntar-se aos seus de cadeira de rodas. Falou então à família e aos amigos e disse-lhes que aquele fim-de-semana pertencia aos jovens esposos. E com seu jeito desarmante, encontrou as palavras para pôr cada um à vontade e pôs humor numa situação, que poderia ter sido vivida como dolorosa. Quando nessa noite seus familiares o ajudaram a deitar-se, era claro que ele tinha chegado ao objetivo. E dentro dos dez dias que se seguiram, escreve seu irmão, foi chamado para Deus.
E o autor diz que seu irmão fez o melhor uso possível desse tempo de prolongamento de vida que a ciência médica lhe concedeu. Seu irmão, tal como ele, estava reconhecido aos cientistas, aos médicos, aos doentes que aceitaram arriscar ensaios clínicos, graças aos quais ele pode beneficiar de novos medicamentos e ter mais tempo de vida. Mais de dois anos para uma doença que vinte anos atrás o teria levado a uma morte dolorosa em alguns meses. E ele usou desse tempo para ensinar como viver, e seus mais próximos usaram esse tempo para aprender a viver.
O progresso da medicina alcança o verdadeiro sentido permitindo às pessoas atingidas pela doença, de continuarem a dar sentido à vida. Pois é só assim que uma medicina, dita personalizada, mas que é uma medicina de alta precisão, que corre o risco de tornar-se desencarnada, fará aliança com uma medicina para a pessoa. Uma das missões da bioética é promover esta aliança.
[1] H. K. Beecher, « Ethics and Clinical Research », The New England Journal of Medicine 274, no 24 (16 juin 1966) : 1354‑60, https://doi.org/10.1056/NEJM196606162742405.
[2] David S. Jones, Christine Grady, et Susan E. Lederer, « “Ethics and Clinical Research” – The 50th Anniversary of Beecher’s Bombshell », New England Journal of Medicine 374, no 24 (16 juin 2016) : 2393-98, https://doi.org/10.1056/NEJMms1603756.
[3] Jeffrey M. Drazen, « Life Lessons from Paul in the Face of Death », The New England Journal of Medicine 379, no 9 (30 août 2018) : 808‑9, https://doi.org/10.1056/NEJMp1808695.
Liturgia dos mortos: Tradições do Vietnã e ritos monásticos
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Liturgia
Irmã Marie-Pierre Nhu Ý, OSB
Priorado de Lôc-Nam (Vietnã)
Liturgia dos mortos:
Tradições do Vietnã e ritos monásticos
Dos funerais tradicionais aos funerais cristãos: as lições da história
A correspondência entre os ritos funerários tradicionais, no Vietnã, e a tradição da Igreja teve uma longa história. Não é somente o trabalho de alguns especialistas, ou o fruto de pesquisas eruditas, mas foi a ação de todo o povo de Deus, no qual se reflete o autêntico sentido da fé, seio de seu amadurecimento. Para bem entender isto é preciso percorrer os debates históricos na China e no Vietnã, que levaram à decisão de retomar o culto dos antepassados.
Na China e no Vietnã
Na época da “disputa dos ritos” do séc. 16, tempo de vivas controvérsias entre os missionários de diversas Ordens religiosas, a questão do culto dos antepassados, em ligação com o rito do funeral, foi aguda. Que há de “verdadeiro e de santo” no culto dos antepassados aos olhos da Igreja Católica?
Diante desta pergunta o Papa Clemente XI, por Decreto de 20 de novembro 1704, pôs fim a esta disputa, proibindo os cristãos de fazerem oblações em honra dos antepassados nos templos e nas casas particulares, assim como de guardarem suas placas funerárias. Na Constituição Ex Illa, de 19 de março de 1715, renovou estas proibições e ordenou a todos os missionários que fizessem um juramento diante das autoridades apostólicas e de sua Missão. O Papa Clemente XII, na sua Bula Ex Quo Singulari, de 11 de julho 1742 manteve as decisões de seu antecessor.
Para restabelecer a unidade de pensamento e de ação entre os missionários nas missões da China e seus vizinhos, o Legado, Mons. Messabarba, por meio do Mandato de Macau de 4 de novembro de 1712, autorizou os cristãos chineses e vietnamitas a fazerem oferendas e gestos diante das placas dos antepassados defuntos; o decreto estipula que estas oferendas e estes gestos podem também ser feitos na casa de culto, diante do caixão, ou do túmulo do defunto, porque expressam respeito e piedade.

Mas o mandato não acalmou as controvérsias no interior da comunidade cristã. Por oposição, Mons. Saraceni, Vigário Apostólico de Chan-si e de Chen-si proibiu o uso de licenças relativas às placas no seu Vicariato. Mons. de la Purification, bispo de Pequim, por outro lado, deu licença.
Depois, sob o governo dos Papas Clemente XII (1730-1740) e Bento XIV (1740-1758) a questão do culto dos antepassados, ligado ao rito funerário não parece ter sido regulamentada definitivamente.
Nesse momento, para evitar todo o equívoco, os Vietnamitas católicos renunciaram instalar altares, assim como placas, em honra dos antepassados em suas casas. Mas ficaram fiéis a fazer a lembrança piedosa de seus mortos, mantendo o hábito de se reunir e mandar celebrar missas pelo repouso de suas almas.
No final do séc. 17, os missionários da Companhia de Jesus defendiam que o culto dos antepassados era só uma homenagem puramente civil, um testemunho de piedade filial e de reconhecimento por seus antepassados e seus pais falecidos. Esta tomada de posição foi partilhada por chineses cultos.
Dois séculos mais tarde, a Congregação Propaganda fide, na sua instituição Plane compertum de 8 de dezembro de 1939, aprovada pelo Papa Pio XII considerou que:
“É lícito, e conveniente, para os católicos, fazer inclinações de cabeça, e outras manifestações de respeito civil pelos mortos, ou diante de suas imagens e diante das placas que têm seus nomes”.
Graças à congregação Propaganda fide, o culto dos antepassados em ligação com o rito funerário é hoje permitido: consiste em atos exclusivamente de veneração dos antepassados e dos pais defuntos. E este rito deve ser, por isso, purificado de toda a superstição.
O culto dos antepassados é permitido, tudo bem, mas como praticá-lo sem nenhuma superstição?
O debate sobre o culto dos antepassados. A oposição ao culto dos antepassados
Quando chegou ao Vietnã, em 1628, Mons. Alexandre de Rhodes percebeu logo que certas práticas funerárias eram supersticiosas e ridículas, como por exemplo, o queimar papéis votivos. Assim não hesitou em condená-las. Condenou também a festa, Cung Giô, que os vietnamitas celebram em memória de seus pais defuntos. Observando o que os vietnamitas faziam e acreditavam Mons. Alexandre de Rhodes concluiu que a cerimônia Cung Giô assentava em três erros: o primeiro consiste na crença de que as almas dos defuntos voltam à casa dos seus filhos, quando lhes agrada e quando os filhos as chamam; o segundo é a certeza que os mortos se alimentam com as oferendas preparadas sobre o altar dos antepassados; o terceiro, o mais absurdo, é a crença que a vida e a prosperidade material dependem dos pais defuntos e que eles podem tirar isso, se os filhos faltarem ao dever de realizar Cung Giô, sinal de ingratidão.
Mas segundo a tradição sino-vietnamita, a virtude fundamental sobre a qual repousa o culto dos antepassados, é a piedade filial, ou “Hiêu”. Ao contrário, a “Bât Hiêu”, ou a falta de piedade filial, é considerada crime.
O Padre Lou Tseng Tsiang definiu com muita perspicácia o que é “Hiêu”, nestes termos:
“A piedade filial é o fundamento de toda a perfeição moral, a fonte de toda a fecundidade e não há nenhum ato humano que escape às suas leis. Todos os homens têm de se inspirar nela, em todas as coisas e praticá-la”.
A revalorização do culto dos antepassados
O culto dos antepassados tem caráter religioso? Se tem, por que então não é aceito aos olhos dos missionários? Reconhecendo que os mortos estão presentes no meio dos vivos e que os ritos realizados em sua honra estão bem fundamentados, Tran Van Chuong escreve:
“O culto dos antepassados tem por fim fazer os vivos lembrar os mortos; nasce da moral que ordena fidelidade na lembrança”.
Hô Dac Diêm expressa a mesma coisa:
“Este culto vem da piedade filial. Um filho piedoso deve sempre ter presente na sua memória a lembrança imperecível de seus pais”.
Depois o Padre Cadière fez a seguinte observação :
“É preciso fazer distinções: todos os atos rituais que dizem respeito ao culto dos antepassados, não têm, em si, um carater religioso, mas isso é só exceção. Para a imensa maioria dos Vietnamitas, os antepassados, depois da morte, continuam a fazer parte da família”.
Finalmente, após longas discussões, os missionários chegaram à conclusão:
“As oferendas aos mortos nos ritos funerários devem ser feitas na plenitude de um amor e de um respeito sólido e perfeito”. “Amar e honrar os pais depois de sua morte, como durante sua vida”.
Em 1675 a Instrução do seminário das Missões Estrangeiras, na sua 2ª diretriz indica:
“Não coloqueis nenhum zelo, nem nenhum argumento para convencer esses povos a mudar de ritos, ou de costumes, a menos que sejam claramente contrários à religião e à moral… Não introduzais nossos países no país deles, mas sim a fé, que não expulsa, nem fere os ritos, nem os costumes de nenhum povo”.[13]
Assim, já o percebemos, a Igreja pede que se tome o tempo e a prudência e um bom discernimento.
Vai ser preciso esperar, no entanto, o Concílio Vaticano II para que a questão do culto dos antepassados seja totalmente resolvida.
Proposta de adaptação do ritual do funeral monástico à cultura vietnamita

Para a grande maioria dos Vietnamitas, os antepassados continuam a fazer parte da família. Para muitos o culto dos antepassados é, em certo sentido, uma religião de adoração dos antepassados. Por exemplo: no dia da comemoração dos antepassados, os túmulos são enfeitados e todos os membros da família devem reunir-se na casa ancestral para mostrar gratidão e reforçar os laços familiares, por meio da partilha de uma refeição. À meia-noite, na passagem do ano, assiste-se à cerimônia mais solene do culto dos antepassados, etc.
É por isso que, mesmo os cristãos do Vietnã de hoje, não querem parecer diferentes aos olhos de seus concidadãos. Por quê? Outrora os cristãos eram olhados pelos compatriotas não cristãos como pessoas cortadas de suas raízes, quer dizer suspeitas de abandonar o dever de prestar culto aos antepassados, depois do rito do funeral, e esta condenação dura até hoje, embora a Igreja do Vietnã tenha tentado adaptar os ritos do funeral, segundo a tradição.
Como adaptar o ritual monástico à cultura do Vietnã? Como e o que harmonizar, o rito do funeral com os costumes do Vietnã, especialmente na vida contemplativa no país?
Parece-me que antes de adaptar há que compreender que:
– o ritual do funeral da Igreja, particularmente na vida monástica, não se contenta em pôr em cena um simbolismo funerário, é também um culto, quer dizer celebração do desígnio salvífico de Deus, e proclama a sua fé no kerygma : Cristo morreu, ressuscitou, e com ele todos os que creem em seu nome.
– O acento é colocado no defunto, que participa pela última vez na assembleia litúrgica, e por q
– O corpo faz parte integrante da pessoa. Mesmo sem vida não é colocado no nível de simples objeto. É o corpo de tal pessoa, um corpo que manifestou o amor, a ternura, a amizade, que foi marcado pela doença, por toda a história da pessoa. Um corpo cujas feridas estão chamadas a serem transfiguradas na Ressurreição. O corpo do defunto batizado tornou-se templo do Espírito, marcado pelos atos sacramentais da Igreja, alimentado pela Eucaristia. O modo como é honrado no funeral mostra a imensa dignidade de sua vocação para a eternidade.[14]
Depois o rito é expressão de uma teologia. Primeiro esta teologia expressa o laço entre a Páscoa de Cristo e a do defunto. Esta participação no mistério pascal de Cristo está ligada ao batismo, por meio do qual somos incorporados ao Cristo. O caráter pascal da morte é também marcado pelo fato de ser um verdadeiro “transitus”, passagem para a vida eterna, que é uma comunhão dos santos para a alma já purificada e que espera “in corpore” (no seu corpo) a ressurreição dos mortos.
Mais ainda, a teologia contida no ritual lembra que a Igreja não cessa de acreditar que a comunhão de todos os membros do Cristo “obtém para uns um socorro espiritual, oferecendo aos outros a consolação da esperança”.
Finalmente, o rito sublinha a importância de honrar os corpos dos defuntos, pois que eles foram templo do Espírito Santo.
Assim a proposta que fazemos é que precisamos evitar o perigo de manter nas expressões da piedade popular para com os defuntos, os elementos, ou aspectos inaceitáveis do culto pagão dos antepassados, como a invocação dos mortos por meio de práticas de adivinhas. Mais ainda, sendo cristãos, devemos nos familiarizar com o pensamento da morte e aceitar essa realidade na paz e serenidade[15], pois o Cristo morreu e ressuscitou.
Mas esta proposta de adaptação comporta, ao mesmo tempo, uma grande dificuldade diante das tradições enraizadas há muito no Vietnã.

[[1] Os atos exteriores, por exemplo as inclinações, as prosternações, as oferendas são praticadas tanto no culto dos antepassados e nas cerimônias das exéquias. Mas têm o mesmo sentido?
[2] Ver a tese de DUONG QUYNH, Antoin “Un aperçu historique de la controverse en Chine” na adaptação dos ritos funerários cristãos em vista de uma inculturação no Vietnã, ISL Paris 2001 p. 96-106.
[3] Ver Wieger, Histoire des Croyances religieuses en Chine, 1ère leçon – CADIERE, Croyances et pratiques religieuses des Vietnamiens, p. 266-273 – HOUANG, Âme chinoise et Christianisme, Ch. 1 TRAN VAN HIEN MINH, La conception confucéenne de l’homme, Saïgon 1962 p. 57.
[4] O estudo da filosofia da China e dos antigos livros em que se inspiram os ritos, leva a com- preender que o sacrifício oferecido aos antepassados constitui apenas uma homenagem de reconhecimento e de profundo respeito, que exclui qualquer implicação religiosa.
[5] Cf Sagrada Congregação da Propagação da Fé, “Instructio circa quasdarn ceremonias et juramentum super Ritibus Sinensibus” in AAS, 32 1940, p. 24-26 tradução francesa em DC 41, 1940 Col 183-185.
[6] Cf Alexandre de RHODES, Histoire du Royaume du Tonkin, Paris 1999 p. 70-77.
[7] Dom Pierre Célestin Lou Tseng Tsiang foi o 81º abade titular de Saint-Pierre-le-Grand, Abadia de Saint-André-les-Bruges.
[8] Dom P. C. Lou Tseng Tsiang, La rencontre des humanités et la découverte de l’Évangile, p. 51.
[9] Tran Van Chuong, Essai sur l’esprit du Droit sino-vietnamien p. 17.
[10] HÔ Dac Diêm, La puissance paternelle dans le droit vietnamien Paris 1928 p. 30.
[11] P. Cadiere, Ibid p. 41.
[12] Citado no conjunto dos documentos apresentados pelos padres Jesuítas à Santa Congregação, para responder às “questões sobre a China e seus vizinhos” (arquivos das Missões Estrangeiras).
[13] G. Goyau, Les prêtres des Missions Étrangères, Éditions Ouvrières, Paris, p. 24.
[14] Pierre Jounel, La célébration des Sacrements, Desclée, Paris 1983 p. 905.
[15] Perante a morte, os vietnamitas estão habituados a chorar em voz alta, e o rito funerário é por vezes ambíguo entre a presença e a ausência do falecido.
Renunciar ao sono da morte
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Meditação
Irmão Ireneu Jonnart,
Abadia de Chevetogne (Bélgica)
Renunciar ao sono da morte
“A vinda do Filho do Homem vai ser semelhante ao que aconteceu no tempo de Noé” (Mat 24,37): identificar a boa nova da salvação com a violência de um dilúvio que vai engolir todos os seres vivos, parece uma coisa inacei- tável. A não ser que se veja atrás deste quando apocalíp- tico, a chegada de um mundo novo, regenerado e rico em promessas - começar pela que o Senhor fez, quando disse que nunca iria fazer de novo tal destruição. (Gen 8,21) !
E de fato, o contexto evangélico convida a entender a referência a Noé, como um apelo à vigilância, à espera confiante de um acontecimento feliz, que se deve acolher desde já. Mas para isso convém acordar. É que o mundo está dormindo! Não se vê dormir, mas ontem como hoje ”comiam, bebiam, davam-se em casamento…”Mas há uma diferença entre uma existência biológica, indispensável – alimentar-se e procriar – e uma vida em plenitude, consistindo em pôr-se em diapasão com um élan vindo do além e que age na pessoa de modo irresistível, assim como o movimento do amor.
É esta vida em plenitude que vem a Noé, ao penetrar na arca, símbolo da interioridade humana mais profunda. Neste santuário está a fonte da luz e da vida, como o comutador a que se deve estar ligado. É lá também que reside o Filho do homem. Assim convém acolher a vida que dorme em cada um de nós. Isto exige uma purificação: tal é o sentido do dilúvio! Um banho que regenera o homem mergulhado no coração das águas primordiais, as dos primeiros dias do mundo, como as águas onde vive o feto, um batismo que acorda a memória profunda das origens da vida, em si e no seu desenvolvimento.
Mas e os outros homens que estão fora da arca salvadora? “Dois homens estarão no campo, um será tomado e o outro deixado”. Aqui como sempre que dois tipos de pessoas aparecem nos evangelhos, temos de ter consciência que os dois são um só, são as duas faces de uma mesma pessoa, ou seja nós mesmos.
Trata-se de purificar o velho homem que está em cada um de nós, a fim de fazer espaço, de deixar vir um homem novo, um ser despertado para a vida, capaz de se tornar vigilante. Uma pessoa vigilante, estando sempre não em estado de alerta permanente – velar não quer dizer vigiar – mas despertar para lutar contra a própria inércia e suas ideias concebidas sobre o que deve acontecer, pois “é na hora em que menos pensais que virá o Filho do homem”. Não se apoiar sobre esquemas de pensamento preestabelecidos, mas acolher o que vem. E pelos outros homens, pois vigiar consiste também em cuidar dos outros, vigiar pelos outros.
Tal é o ensinamento de Noé: ele tem consciência de uma certa responsabilidade na chegada de uma nova criação. Depois dele, cada um é convidado a experimen- tar que a purificação do mundo, e o desenvolvimento da Vida em plenitude passa por sua própria interioridade e acontece graças a sua capacidade de vigiar.
Anglicanos e beneditinos
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Uma página de história
Padre Nicolas Stebbing, OSB anglicano
Comunidade da Ressurreição (Zimbabwe)
Anglicanos e beneditinos
Todos os que conhecem a história da Inglaterra, sabem que Henrique VIII foi célebre por causa de suas esposas, por causa de sua ruptura com Roma e por causa de sua decisão de acabar com a vida monástica. Todos os protestantes e reformados afastaram a vida monástica, por diversas razões teológicas, ou morais, mas a decisão de Henrique VIII não foi por causas teológicas ou morais.
Ele percebeu que dos mosteiros e das ordens religiosas vinha a principal oposição à sua ruptura com o Papa. Depois precisava de dinheiro, que poderia vir da venda das propriedades monásticas e pensou que teria a ajuda dos leigos nobres, vendendo-lhes essas propriedades.[1]
Ele usou para este fim os serviços de Thomas Cromwell, e entre 1532 e 1540, quer dizer alguns anos, foi destruída uma vida monástica florescente.
No entanto, no século 19 houve uma reaparição do espírito católico na Igreja anglicana, mais conhecida como “Movimento de Oxford”, e que se tornou mais tarde o “Movimento anglo-católico”. Os anglicanos redescobriram uma vida sacramental na sua totalidade, uma teologia renovada e sólida da Igreja e uma tradição de oração, que havia atravessado séculos. Isto suscitou o desejo de fazer renascer a vida religiosa. Queriam reencontrar uma tradição de oração, que desse acesso maior, mais generoso e mais atrativo a Deus. E queriam mulheres e homens capazes de trabalhar nos bairros pobres das cidades.
As primeiras comunidades anglicanas – nasceram nos anos 1840 – foram de irmãs religiosas que tiveram de provar à Igreja que não eram parasitas, nem românticas desocupadas. Comprometeram-se assim no trabalho paroquial, no ensino, nos cuidados de enfermagem, e nas obras sociais. Ao mesmo tempo quiseram ter um estilo de vida monástica, usar hábito, rezar o ofício completo e ter uma vida de oração. Elas imitavam muito as religiosas católicas romanas. No final do séc. 19, havia milhares de irmãs anglicanas.
Do lado dos homens, a vida religiosa recomeçou com a fundação da Fraternidade São João Evangelista em 1865. Em 1890, apareceram a Comunidade da Ressurreição e a Fraternidade da Missão Sagrada. Estas comunidades de homens eram essencialmente formadas por padres; asseguraram as missões e retiros, fizeram um trabalho missionário na África do Sul e na Índia. No séc. 20, várias pequenas comunidades franciscanas se juntaram para formar a Fraternidade São Francisco.
No séc. 20, igualmente, despois de tentativas que não deram certo, foi fundada a primeira comunidade beneditina: Nashdam Abbey[2]. Como aconteceu com as ordens católicas romanas depois do Concílio Vaticano II (a partir de 1962) houve uma baixa do número de monges, e os religiosos tiveram dificuldade em adaptar sua vida ao mundo em mutação. Muitas comunidades desapareceram. Foi difícil prever qual seria o futuro neste campo, sobretudo no Ocidente.
Quando o movimento ecumênico abateu as barreiras entre anglicanos e católicos, religiosos católicos começaram a ir a comunidades anglicanas e a dizerem-lhes “Vocês são monges beneditinos” (menos é claro aos franciscanos anglicanos). “Não, não somos”! dissemos. “Sim, vocês são”. E tinham razão. Dir-se-ia que a vida beneditina era natural para a Igreja anglicana e que a vida religiosa aí tomasse essa forma. A que se deve isso?
Em primeiro lugar, quando o arcebispo Cranmer reduziu o Ofício romano à versão anglicana da Oração da manhã e da tarde, e a tornou obrigatória para todos os padres, criou uma forma de devoção anglicana baseada nas mesmas leituras, salmos e orações como a da tradição monástica. Embora simplificada, a estrutura e a regularidade do Ofício diário, era a mesma.
Depois, mas só na Inglaterra, há o fato das catedrais da Idade Média serem mosteiros beneditinos. Assim quando a vida monástica desapareceu, os capítulos das catedrais funcionaram, praticamente, como o capítulo do mosteiro. Havia corais que cantavam o Ofício cotidiano; a vida do culto continuou e era seguido pelos leigos. O louvor litúrgico a Deus tornou-se uma das caraterísticas mais gloriosas da Igreja da Inglaterra.
Em terceiro lugar, as duas Universidades Cambridge e Oxford eram, em grande parte, fundações religiosas. Depois que os monges foram expulsos, o pessoal e os professores ficaram, e eram na sua maioria clérigos celibatários. Vivendo em comunidade com os estudantes, comiam juntos, rezavam juntos o culto obrigatório na capela, continuavam assim o aprendizado da vida beneditina sóbria. Mas não se deve idealizar a situação, pois houve muitos abusos, muito laxismo e muitos fracassos. No entanto, o princípio ficou e quando no séc. 19 os fundadores da vida religiosa anglicana procuraram um modelo, reproduziram, naturalmente a vida de seus colégios. Uma vida comum, uma oração comum e uma formação sólida podem ser consideradas a base do monaquismo beneditino.
Tudo aconteceu tão naturalmente, e em silêncio. Mas quando a vida beneditina católica romana começou a renovar-se no séc.20, e que as duas Igrejas se aproximaram com o ecumenismo, entendemos por que São Bento estava tão presente na Comunhão anglicana: sempre esteve!
Quais são as diferenças?
O nosso próprio mosteiro – Comunidade da Ressurreição – e a nossa Casa Mãe de Mirfield, em Yorkshire, depois do Concílio Vaticano II, tornaram-se Comunidades gêmeas com a Abadia Beneditina de São Matias em Trier (Trèves). A amizade continuou a crescer e tornou-se muito importante para os dois lados.
Visitamo-nos mutuamente, regularmente, aprendemos uns dos outros. Os monges de Trèves têm um novo estilo de vida monástica, fiel ao ensinamento de São Bento, e no entanto engajado na vida da cidade.
Eles nos mostraram que a vida beneditina não tem necessariamente um só estilo. Há lugar para vários carismas diferentes, cada um vivendo num diálogo fiel com a Regra original. Reconhecemos honestamente que não foi fácil para vários membros da nossa comunidade aceitar a identidade beneditina e estar integralmente integrados na família beneditina. Muitos não sentiam a necessidade. Vários tinham medo de ter de fazer mudanças inaceitáveis para eles e para seus ministérios.
Foram precisos mais ou menos 20 anos para os temores desaparecerem, e em 2018 pedimos – e obtivemos – pertencer à Congregação da Anunciação.
Continuamos a estudar o que isso exige na nossa vida comunitária, mas algumas coisas tornaram-se claras:
– Fazemos parte de uma grande família e estamos em diálogo com uma grande tradição. Em vez do pequeno mundo da vida religiosa anglicana e de sua curta história de menos de 200 anos, podemos agora nos apoiar sobre a enorme força de 15 séculos de vida beneditina.
– Um campo chave diz respeito à formação: a formação inicial dos noviços e a formação contínua da comunidade. No passado, os novos membros eram sobretudo padres ordenados, que tinham sido formados em seminários de uma maneira quase monástica. Os que chegavam como leigos tinham, geralmente, uma boa formação na vida de devoção anglo-católica. Bastava formá-los para a vida comunitária e para as nossas tradições. Era assim outrora (embora haja quem duvide), mas não é o caso hoje. Uma grande parte da tradição anglicana morreu. As pessoas chegam só com pouquíssima formação sobre a oração e sobre a vida sacramental. Temos de lhes dar uma base sólida e ajudar a descobrir uma boa orientação monástica. As fraquezas da nossa vida monástica são muito claras para alguns de nós e temos de fazer face à falta de formação contínua. É um problema que partilhamos com várias outras comunidades beneditinas.
– Descobrimos que a Regra de São Bento não nos faz sair do mundo real da vida cristã para ir para o mundo monástico, “exótico” como alguns temem), muito pelo contrário.
Isto nos ajudou a descobrir que a verdadeira base da nossa vida é que cada um vive, dia a dia, com os irmãos e irmãs que Deus lhe deu, e que aceitar esse processo permite fazer crescer verdadeiramente o povo de Deus, segundo Sua vontade. É viver o Sermão da Montanha, que todos os cristãos tentam pôr em prática.
Ao mesmo tempo isso nos ajudou a reenquadrar os diferentes ministérios que exercemos, num contexto que lhes permite integrarem-se melhor na vida monástica. Continuamos a ensinar teologia, a pregar nas igrejas, a ter contato com os que fazem retiro, a visitar a Europa no quadro de diversos tipos de encontros ecumênicos, a trabalhar com as Igrejas do Zimbábue, da África do Sul e até dos Estados Unidos da América. É bom para uma pequena comunidade, que está envelhecendo, mas parece estar dando certo e há jovens que desejam juntar-se a nós. É a melhor prova de que está acontecendo alguma coisa boa!
Ecumenismo
Como Anglicanos temos alguma coisa a oferecer ao mundo beneditino? A primeira coisa é o fato de sermos anglicanos! São Bento escreve na sua Regra, escrita antes dos grandes cismas da Igreja; a vida beneditina prosperou na Europa e na Inglaterra durante quase mil anos antes que a Reforma dividisse os cristãos de uma maneira tão trágica.
Nós todos que seguimos a Regra de São Bento, estamos unidos por muitas mais coisas do que aquelas que nos separam. Se pudermos consertar certas feridas que nos separam ainda, será um verdadeiro presente que podemos oferecer à Igreja Universal.
Ut omnes unum sint – “Que todos sejam Um”, é com este objetivo que devemos trabalhar, e não só pela oração, mas vivendo juntos a Regra tornaremos nossa oração mais real.
Rezem por nós, irmãos e irmãs em São Bento!
[1] Um paralelo interessante aconteceu em Zimbabwe no ano 2000. Robert Mugabe precisava quebrar o poder da oposição: para isso comprou a ajuda de seus partidários. Enviou seus antigos companheiros de combate e outros fiéis a comprar, sem compensações, terras de agricultores brancos. As fazendas que deviam ser distribuídas aos pobres, a maior parte das vezes ficaram com seus partidários, e isso teve consequências desastrosas para o país. Há histórias semelhantes na Europa da Leste, no tempo do comunismo ou durante o Império de Pompeu e de César!
[2] Os irmãos deixaram Nashdom nos anos 80 para se instalarem em Elmore. Em 2010 os 4 últimos monges partiram de Elmore para se instalarem em Sacrum College, um centro anglicano de Estudos (nota do editor).
Orar com as mãos
12
Trabalho e vida monástica
Irmão Bernard Guékam, OSB
Abadia de Keur Moussa (Senegal)
Orar com as mãos
O trabalho monástico em Keur Moussa foi desde o princípio da fundação orientado para a implementação de técnicas agrícolas e pecuárias, a alfabetização, os cuidados de saúde elementares, a prevenção das doenças endêmicas e a educação em saúde materna e infantile, dispensados às populações num raio de trinta quilômetros. Estas atividades foram entendidas como o desenvolvimento visível de uma identidade humana e religiosa. A este propósito, um hóspede de passagem fazia a seguinte observação: «Vós orais enquanto trabalhais», como para traduzir que não há diferença entre o monge de coro e o monge das oficinas, na horta ou no galinheiro. O inverso parece igualmente verdadeiro. Não se encontra uma fórmula mais adaptada para abolir a tensão tão frequentemente vivida entre ora et labora. A questão levanta-se então sobre o que constitui o traço específico da nossa identidade monástica no nosso ambiente senegalês.
O setor da atividade da suinicultura parece-me ser uma imagem que traduz, ainda que imperfeitamente, um aspecto da nossa vida quotidiana em Keur Moussa, não apenas pela atividade que é exercida enquanto tal, mas sobretudo pela maneira como ela determina, orienta as vidas e cria um espaço de diálogo. O porco, como é sabido, é um animal identitário que condensa em si a fronteira entre três grandes religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islão. Ora, o nosso país, sendo precisamente uma terra onde o Islã está fortemente enraizado, a visão de dejetos daquela origem nas descargas ou pelas ruas dos bairros suscita um olhar sobre o caráter multiconfessional e multicultural do meio social e ambiente. No mosteiro, o setor da suinicultura é mantido pelo noviciado. Ele constitui frequentemente a primeira provação do jovem que ingressou recentemente na vida monástica. De fato, a criação de porcos, tal como a das cabras e das vacas, não conhece domingos nem feriados e necessita consequentemente de uma presença regular, e sobretudo matinal. Para um jovem que imerge na vida monástica, o trabalho da pocilga, por exigir muita força, revela-se decisivo para a capacidade do jovem em perseverar, pelo menos no princípio, na sua iniciação à vida monástica. Logo, este setor é, parece-nos, um indício revelador sobre o «risco» de empenhar hoje a sua vida na vida singular da vida monástica.
Uma arte espiritual
Sobre o trabalho manual, São Bento declara justamente isto na sua Regra : «Então serão verdadeiramente monges, se viverem do trabalho das suas mãos, como os nossos pais (da Igreja) e os apóstolos» (RB 48,8). Evidentemente, ele entende aqui o trabalho manual cotidiano como uma estrutura a partir da qual o destino do monge adquire efetivamente forma. Isto não deixa de causar certo espanto pois na Regra, onde trata do Ofício divino, São Bento afirma simplesmente que serão monges preguiçosos, indolentes, inertes no serviço que lhes foi confiado (nimis iners devotionis suae servitium, RB 18,24) aqueles monges que não recitarem o saltério em uma semana. Ele sugere aqui a ideia de uma qualidade intrínseca, ao passo que no propósito relativo ao trabalho manual, põe em jogo o próprio processo de se tornar monge. No capítulo que trata do trabalho manual, São Bento insere ao mesmo tempo os momentos da prática da lectio divina ao longo do dia, para pôr bem em evidência o caráter orante do labora. Isto significa que a prática de toda a atividade manual no mosteiro, além de «conservar um saudável equilíbrio de espírito e de corpo, de exercer e desenvolver as diversas faculdades que Deus (nos) deu» (cf. Declarações da Congregação de Solesmes, nº 63), é uma exposição ao olhar de Deus e à sua salvação. Se a lectio divina é assim considerada em São Bento como um gênero de trabalho, segue-se a necessidade de redefinir ou de requalificar os termos ora et labora. O trabalho manual, enquanto oração, é, para a oração, o fruto maduro da palmeira que se transforma em óleo depois de moído, triturado, e posto na prensa. Em contrapartida, a oração enquanto oração das mãos é, para o trabalho, a bigorna por meio da qual o ferro aquecido toma forma. Este é modelado segundo a intenção do ferreiro. É por isto que no mosteiro o trabalho manual deve ser executado em silêncio, salvo quando a palavra se torna uma necessidade. Sendo assim, o trabalho manual não mais é simplesmente uma atividade feita às pressas pelo monge para se dedicar à oração. Ele é ao mesmo tempo preparação e prolongamento da oração.
O trabalho manual em contexto monástico é uma via cósmica de acesso a si, do crescimento em si do ser monge. Pode-se dizer, parafraseando Michel Foucault – num outro contexto –, que o trabalho manual se revela como um perfeito exercício do cuidado de si, não egoísta, mas enquanto ações que se exercem de si sobre si, ações pelas quais nos responsabilisamos, pelas quais nos modificamos, pelas quais nos purificamos e pelas quais nos transformamos e transfiguramos.
Na realidade, o tomar conta de si é necessário, pois evita toda a dependência (econômica) que prejudicaria o ideal de unidade (monos). Pode-se comparar esta ideia do cuidado de si mediante o trabalho manual com a divisa do nosso mosteiro (O deserto florescerá). Há aqui a ideia de pôr à prova os desertos das nossas afetividades, da nossa necessidade de reconhecimento pela invocação da misericórdia, da paz e da compaixão: é o meio de fazer crescer, proteger e de preservar.
O hóspede muçulmano, com frequência presente na nossa mesa sem se ter anunciado, pode mais ou menos acusar a exigência e a delicadeza que lhe devemos, a fim de que se sinta bem no mosteiro, confecionando-lhe um outro prato que lhe trará gosto e paz, no caso em que o famoso é o menu do dia. O diálogo interreligioso apresenta-se e atravessa então o prato de cada um. O deserto começa a florir para nós nesse instante, quando não pretendemos reduzir o hóspede a nós.
Voltando ainda à nossa pocilga, há interesse em notar que nos acontece frequentemente solicitar os serviços de um vizinho muçulmano para o transporte de alimentos para uma localidade próxima do mosteiro. Este serviço, depreende-se, não é gratuito, mas é sempre com alegria no coração que o nosso vizinho o faz, reservando uma parte do produto para os seus carneiros de que ele gosta tanto quanto da nossa pocilga. Este trabalho de circunstância permite-lhe um aumento dos seus magros recursos sem o que não poderia alimentar as suas mulheres e os numerosos filhos.
A explicação
O propósito beneditino que acaba por conferir ao trabalho manual monástico o seu estatuto de explicação da identidade oculta do monge situa-se no mesmo capítulo 48 da Regra, consagrado ao trabalho, onde São Bento recomenda de maneira precisa tratar os utensílios do mosteiro como os vasos sagrados do altar. Deus não está ausente do trabalho humano. Ele está presente aí tanto quanto entre a comunidade reunida para a oração. Assim, dever-se-ía compreender este outro propósito de São Bento: «Que nada se sobreponha à obra de Deus», no sentido da aproximação da mesma proposição (injunção) que faz a respeito do trabalho manual: «É então que serão verdadeiramente monges, se viverem do trabalho das suas mãos, como os nossos pais (da Igreja) e os apóstolos». Trata-se aqui fundamentalmente de não se preferir a si a Cristo, que é a vida do monge, segundo esta afirmação de São Paulo: «Para mim, viver é Cristo». As nossas principais atividades, a saber: a horta, o ateliê de aperfeiçoamento da kora e os diferentes ateliês de profissionalização dirigidos, desde a fundação, aos jovens desejosos de se auto-empregar, foram e são ainda o marcador de uma presença beneditina na aldeia de Keur Moussa.

As populações das proximidades, logo no início das nossas atividades, certamente apreenderam melhor quem éramos vendo-nos trabalhar, como diz o provérbio wolof : «Liguèye jamou Yalla la », que se traduz literalmente : «Trabalhar é orar a Deus». Hoje ainda, com as mudanças sociais, a savana arborizada transformou-se numa pequena coletividade e aqueles que passam pelo mosteiro espantam-se que ela não seja de fato particularmente luxuriante, mas sempre em devir, enfrentando as mudanças climáticas que a tocam gravemente; a salinização dos lençóis de água do sub-solo devida aos défices pluviométricos, o desaparecimento das espécies vegetais e o afluxo das aves e os seus efeitos devastadores sobre a horta.
A audácia de se reorientar
A nossa comunidade, ela mesma, aprendeu a compreender a sua identidade a partir dos lugares de ação e das mutações do seu ambiente sociocultural e político. Desde o princípio, os fundadores tiveram a audácia de se orientar bem diferentemente, não mais partindo de questionamentos vindos de exigências autoritárias da vida monástica, mas inversamente a partir da resposta aos apelos do lugar da fundação que faziam urgir a reformulação de um discurso monástico verdadeiro. As teorias missionárias de então, como a da plantação, não ajudam muito com efeito a enfrentar este tipo de desafios, pois não se tratava de replantar o jovem rebento a mais de cinco mil quilômetros do seu lugar de proveniência, e esperar que ele desse a mesma folhagem e os mesmos frutos da sua terra de origem.
Procurar encontrar
O profetismo desta divisa do mosteiro de Keur Moussa e a promessa que ela contém traçaram a fenda do desejo da transformação do local doravante tornado habitável. Isto conduziu os nossos vizinhos agricultores de então, e os citadinos, na maior parte hoje, a nos revelarmos também como pessoas economicamente fortes e detentoras de um saber-fazer prático. Inversamente, apercebemo-nos também que não nos compreendemos ainda suficientemente quando não nos compreendemos a nós próprios. O risco possível da recusa em levar em conta a necessidade de procurar caminhar e de reconduzir a utopia, continua a petrificar-se numa identidade mais ou menos mal assumida.
Compreender-se com efeito a si mesmo como comtemplativos, categoria que nos é habitualmente atribuída, assume paradoxalmente um duplo efeito, por um lado pela redução da nossa identidade a pessoas que renunciaram a toda a atividade; por outro lado, a tendência ao afastamento das diversas formas de produção econômica, até mesmo à negação imaginária de tomadas de responsabilidade em cargos econômicos. É como se a melhor forma de conservar a priori a integridade da utopia monástica residisse na negação pura e simples do trabalho manual.
O termo «procurar Deus» qualifica profundamente o monge como tal, segundo São Bento e a antiga tradição espiritual. Esta expressão, parece-me, é a que melhor serve para definir o sentido da vida monástica, como procura de unidade (monos). Longe de toda a divisão, consequentemente, o labora, entendido doravante como a oração das mãos, constitui a essência da vida monástica e reveste, por este mesmo fato, o caráter de exercício espiritual; enquanto que Cristo é o sentido.

Dom Ambrose Southey
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Monges e monjas, testemunhas para o nosso tempo
Dom Armand Veilleux, OCSO
Abadia de Scourmont (Bélgica)
Dom Ambrose Southey
(1923-2013)

Kevin Southey nasceu em Whitley Bay, na diocese de Hexham e Newcastle a 22 de janeiro de 1923. Alguns meses antes do seu 18º aniversário de nascimento, a 25 de setembro de 1940, entrava na Abadia de Mount Saint Bernard, Leicestershire. A Abadia, cujo encerramento fora levado a cabo pela Ordem alguns decênios antes, conhecia então um renovação de vida particularmente excepcional sob o abaciado de Dom Malachy Brasil, vindo de Roscrea em 1933.
O jovem noviço recebeu o nome de Ambrose quando da sua tomada de hábito. Fez a sua profissão solene em 1945 e foi ordenado presbítero em 1948. Alguns anos mais tarde, foi enviado a Roma para aí fazer estudos em Direito Canônico (1951-1953). Depois do regresso a Mount Saint Bernard, foi nomeado subprior e, no ano seguinte, prior. Quando Dom Malachy, muito afetado pela doença, apresentou a sua demissão, em 1959, após mais de vinte cinco anos de abaciado, Dom Ambrose foi eleito abade. Alguns anos mais tarde, em 1963, a comunidade de Mount Saint Bernard, sempre florescente, pôde fazer uma fundação em Bamenda, Camarões, e o seu jovem abade foi gradualmente assumindo importantes responsabilidades no seio da Ordem. Em 1964, era eleito Abade vicarial e em 1974 Abade Geral. Toda a sua vida iria em diante, estar estreitamente ligada à da Ordem, num período particularmente importante da evolução desta. Era quase impossível recordar uma sem recordar a outra. Assim que Dom Ambrose Southey apresentou a sua demissão como Abade Geral da Ordem Cistercience da Estrita Observância no Capítulo Geral de 1990, a Santa Sé acabava de aprovar as nossas novas Constituições. Esta aprovação era o ápice de um longo processo de aggiornamento começado com o concílio Vaticano II. A humildade e discrição de Dom Ambrose eram tais, que poucos conheciam todo o papel que desempenhou neste processo desde o seu começo. Vale a pena recordá-lo.
No Capítulo Geral de janeiro de 1964, no qual Dom Ignace Gillet foi eleito Abade Geral, Dom Ambrose foi escolhido para Abade vicarial. Sob o regime das nossas antigas Constituições, este papel era mais importante do que é hoje. O Abade vicarial era o promotor do Capítulo Geral. Dom Ambrose fez-se notar nesta função de promotor pela sua capacidade de escuta e o seu igual respeito por cada pessoa do processo colegial.
O Capítulo Geral de 1964 foi assaz breve porque se tratava de um Capítulo de eleição de um novo Abade Geral, Dom Gabriel Sortais, falecido no outono, no princípio da segunda sessão do Concílio Vaticano II. A ordem do dia compreendia mesmo assim alguns outros pontos considerados urgentes. Tratava-se aí em particular da questão dos irmãos conversos longamente estudada sob o mandato de Dom Gabriel. O abade de Westmalle, Dom Edouard Wellens, pediu que não se adiasse a marcação de um novo Capítulo Geral, «vista a urgência e a importância das questões que muito preocupavam os elementos jovens e ferverosos das nossas comunidades» (Compte rendu, p. 11). Um pouco tomado desprevenido diante desta situação e não querendo dividir a questão, Dom Ignace decidiu criar uma comissão especial para estudá-la. Dom Ambrose recebia o cuidado de presidir a esta reunião.
Desde a abertura da reunião, Dom Ambrose precisou os objetivos deste: «Tratar-se-á de estudar a natureza e as origens das dificuldades experimentadas pelos jovens religiosos em certos países diante das formas exteriores da nossa vida, e de propor ao Padre Reverendíssimo conclusões ou “vota”, que poderão eventualmente ser submetidos ao Capítulo Geral». (Relatório, página 1 – Arquivos da Casa generalícia). Dom Ambrose conduziu com habilidade esta reunião que, no relatório que fez ao Abade Geral, propunha reunirem-se de novo para continuar a sua preparação do Capítulo Geral.
A segunda reunião, que teve lugar em Monte Cistello, em dezembro 1964, foi, como a primeira, presidida por Dom Ambrose. Jamais um Capítulo Geral fora tão bem preparado, de tal modo que o Capítulo de 1965 decidiu que uma comissão semelhante chamada «Comissão de preparação» prepararia o Capítulo seguinte. Esta comissão ia tornar-se um importante órgão da Ordem.
Dom Ambrose estreou como Promotor no Capítulo Geral de 1965, que teve lugar antes da conclusão do Vaticano II. Era durante os três capítulos seguintes que a sabedoria e a perícia do novo Promotor iriam se revelar.
O Capítulo Geral de 1967 teve lugar em Cîteaux de 20 maio a 5 junho. A 6 agosto do ano anterior, Paulo VI promulgará o Motu Proprio Ecclesiae Sanctae dando um certo número de normas para aplicação de Perfectae caritatis. O documento previa para este período de renovação um Capítulo Geral especial, que poderia acontecer em várias sessões sucessivas e durar alguns anos. Ele dava assim a este Capítulo Geral o poder de aprovar ad experimentum um certo número de mudanças nas Constituições. O Capítulo Geral de 1967 permitiu pois às comunidades um certo número de experiências, em particular no domínio litúrgico.
O Abade Geral, Dom Ignace Gillet, estava sinceramente convencido de que algumas destas decisões, em particular o uso da língua vernacular na liturgia e a possibilidade de modificar a estrutura do Ofício divino, constituíam uma desobediência às decisões do Concílio. Algumas das suas intervenções junto da Congregação dos religiosos criaram um mal-estar na Ordem, tanto que quando da abertura do Capítulo de 1969, um importante número de capitulares eram da opinião que o Abade Geral devia apresentar a sua demissão. Num encontro pessoal de Dom Ambrose com Dom Ignace surge um compromisso que iria permitir ao Capítulo continuar o seu trabalho com serenidade. Este Capítulo, durante o qual se votou com quase unanimidade a Declaração sobre a vida cisterciense e o Estatuto sobre a unidade e o pluralismo, e onde se decidiu pedir à Santa Sé uma Lei-quadro permitindo uma renovação da liturgia a respeito da experiência espiritual de cada comunidade, foi uma virada na evolução da nossa Ordem na época moderna. Pôs-se também em marcha o processo de renovação das nossas Constituições que iria permanecer ativo até 1990.
Assim que Dom Ignace se demitiu no Capítulo de 1974, conformemente à intenção que havia exposto a Dom Ambrose no seu «encontro apoteótico» durante o Capítulo de 1969, este último foi eleito Abade Geral logo no primeiro escrutínio com uma grande maioria dos votos.
Logo após a eleição de Dom Ambrose, este anunciou com o fair play pelo qual era conhecido, por respeito para com a maioria dos capitulares que haviam votado a favor de um mandato com termo determinado, que se submeteria de novo ao voto dos capitulares quando do segundo Capítulo que se seguiria ao de 1974.
No decorrer do generalato de Dom Ambrose, e sobre a sua pacífica e apaziguante conduta, a Ordem abordou um determinado número de questões fundamentais, cuja solução permitiria terminar a redação das nossas Constituições. Foi o longo debate sobre a «colegialidade», objeto de árduas discussões entre as regiões da Ordem que apresentavam mais sensibilidades culturais diferentes do que divergências, concernindo as relações entre os dois ramos da Ordem, a feminina e a masculina. Estas trocas conduziram à visão de uma Ordem única composta por monges e monjas, sob a autoridade de dois Capítulos Gerais interdependentes. Uma evolução posterior conduzirá à aceitação pela Ordem e por Roma de um Capítulo único.
Dom Ambrose presidiu, durante este período, a três Capítulos Gerais de grande importância na história moderna da Ordem. Os primeiros a por em prática as novas Constituições foram os monges de Holyoke, nos Estados Unidos em 1984. No ano seguinte, as monjas do Escorial. Finalmente, a primeira RGM (Reunião Geral Mista) de Roma em 1987, onde monges e monjas estabeleceram o texto definitivo das suas Constituições, que após um exame pela Congregação dos Religiosos e das discussões com esta, foi promulgado por Roma no Pentecostes de 1990.
Fiel à sua promessa, Dom Ambrose manifestou ao fim de seis anos a vontade de apresentar a demissão ou de se submeter a uma votação do Capítulo. No que foi dissuadido, pois a opinião inteiramente unânime na Ordem era que ele devia permanecer no governo da Ordem até à conclusão do longo trabalho sobre as novas Constituições. Apresentou a sua demissão no Capítulo geral de setembro de 1990. Para todos e, em particular, para os que haviam vivido com ele vários Capítulos Gerais sucessivos, foi uma alegria ter a sua presença como convidado de honra em cada Capítulo Geral seguinte até ao de 2011.
O Abade Geral na Ordem Cisterciense da Estrita Observância pode exercer uma grande autoridade moral porque detém muito pouco poder jurídico. No Capítulo geral de 1951, após a demissão de Dom Dominique Nogues, Dom Gabriel Sortais, enquanto Abade vicarial, fez uma particularmente longa alocução explicando o que se esperava de um Abade Geral. Era uma espécie de «programa » que ele de resto pôs em prática ao longo do seu generalato de doze anos. Ele via-se como o irmão mais velho dos outros abades, ajudando-os a não se deixarem soçobrar nas circunstâncias difíceis. Regozijava-se pelos «poderes» muito limitados do Abade Geral vendo a sua autoridade na base da confiança, do afeto e da persuasão. (Ver Prestação de contas das Sessões, 1951, pp. 36-39)
Foi neste espírito que Dom Ambrose exerceu o seu serviço durante dezesseis anos. Tendo uma formação de canonista, sabia que o Capítulo Geral é um colégio e que um colégio é por natureza uma pessoa moral em que as decisões são tomadas com igualdade de direitos. Ninguém exerce a autoridade sobre o Capítulo, mas no seio deste há um Presidente que tem a responsabilidade de convocar o Capítulo, de estabelecer a agenda e de zelar para que todos possam exercer aí os seus direitos. Dom Ambrose sabia, através de intervenções pouco frequentes, exercer uma autoridade moral muito forte quando os valores fundamentais da Ordem eram postas em causa e que decisões importantes deviam ser tomadas.
Dom Gabriel Sortais havia habituado a Ordem a uma longa carta circular do Abade geral no princípio de cada ano. Dom Ambrose, tal como o seu predecessor, Dom Ignace, manteve esta tradição mas com um estilo próprio, muito apreciado. Enquanto as cartas circulares de Dom Gabriel se tornavam facilmente em longos tratados de vida espiritual, as de Dom Ambrose eram mais ao espírito dos Padres do monaquismo, uma partilha de experiência sobre questões bem concretas.
Tendo sempre permanecido si próprio sem se identificar com a sua função, Dom Ambrose, tornou-se naturalmente sub regula vel abbate, desde o momento da sua demissão. Pouco tempo depois, sondaram-no para um posto importante na Congregação dos Religiosos, no Vaticano. À pessoa encarregada de lhe perguntar se aceitaria uma tal função respondeu sem hesitar: «Vou falar ao meu abade». No dia seguinte, após ter dialogado com o seu abade, respondeu que tendo deixado o seu serviço de Abade Geral, não por estar fatigado, mas simplesmente porque pensava que era tempo para ele, após tantos anos de deslocações, regressar à vida monástica comum, não seria lógico nem coerente da sua parte aceitar um posto que o retirasse de novo do mosteiro. Isto não o impedia de permanecer disponível para servir a Ordem em situações mais humildes.
À época em que Dom Ambrose era jovem abade de Mount Saint Bernard, teve entre os seus monges o bem -aventurado Cyprian Tansi. Era pois normal que viajasse a Onitsha, na Nigéria, para a beatificação deste último por João Paulo II a 22 março 1998. Não era todos os dias que se podia assistir à beatificação de alguém de quem se foi abade! E contudo, durante todas estas festividades, Dom Ambrose, Abade Geral emérito, juntou-se com muita modéstia aos outros monges e monjas vindas para a circunstância, sem nunca tentar atrair sobre si as atenções.
A fundação monástica em vista da qual Michael Cyprian Tansi veio a Mount Saint Bernard não pôde realizar-se na Nigéria mas sim nos Camarões, em 1964, durante o abaciado de Dom Ambrose. Logo que, pouco tempo após a sua demissão como Abade Geral, a comunidade de Bamenda teve necessidade de um superior ad nutum, aceitou de boa vontade prestar este serviço. Fez o mesmo, alguns anos mais tarde em Scourmont, na Bélgica. Tendo a princípio aceitado este serviço em Scourmont por um ano, consentiu em permanecer aí um segundo ano, mas encarregou-se de procurar alguém mais jovem que pudesse assumir o serviço por pelo menos alguns anos. O que não o impediu de permanecer em Scourmont ainda alguns anos para aí preencher o cargo de mestre de noviços. De seguida, sempre no mesmo espírito de serviço, preencheu durante vários anos o ministério de capelão do mosteiro de Vitorchiano, na Itália, antes de regressar à sua Abadia de Mount Saint Bernard para aí viver pacificamente os últimos anos da sua vida.
Expirou em paz, pouco depois de ter participado na concelebração comunitária, na manhã de 24 agosto de 2013. Tinha 90 anos, 71 de profissão monástica e 64 de sacerdócio. Tinha quinze anos de abade da sua comunidade e dezesseis de Abade Geral.
Uma longa vida ao serviço de Deus e da Ordem num grande espírito de simplicidade e de modéstia.

Madre Anna Maria Cànopi
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Monges e monjas, testemunhas para o nosso tempo
Irmã Maria Maddalena Magni
Beneditina da ilha San Giulio (Itália)
Madre Anna Maria Cànopi
Permanência no amor

A ilha San Giulio é um montículo rochoso que emerge das águas de um dos lagos mais sugestivos do norte de Itália junto ao Alpes. No seu centro encontra-se uma antiga basílica edificada em honra do evangelizador desta terra : o padre grego Jules, morto – segundo a tradição – entre o fim do século 4º e o princípio do 5º, após ter edificado a sua centésima igreja.

A história dpontou neste lugar, ao longo dos séculos, a sua marca majestosa, sem nunca conseguir apagar a graça e o encantamento produzidos pela sua beleza solitária. As águas atraentes e tão sedosas do lago conservaram uma espécie de clausura natural que não dpontou de seduzir um grupo de monjas chamadas pelo bispo da época a tornarem-se guardiãs da herança de fé do santo evangelizador bem como da procura – nesses tempos atribulados e difíceis – de um lugar adaptado a uma vida de oração. É assim que a 11 outubro de 1973 começou a história da Abadia beneditina «Mater Ecclesia ».
A 21 março de 2019, dia do Transitus de São Bento, as irmãs em torno, com todo o seu afeto, do leito de Madre Anna Maria Cànopi, prodigaram-lhe o seu último adeus, ela que durante tanto tempo, quarenta e cinco anos, foi, pela graça, a Madre toda cheia de sabedoria e guia da comunidade. Ao longo do tempo, tinha sido uma personalidade amada e reconhecida por milhares de pessoas de todas as origens e camadas sociais. Nos dias que precederam o seu funeral deu-se conta das pessoas de lugares extremamente diversos, aproximando-se com grande emoção da urna da Madre para o último adeus…
Madre Anna Maria nasceu a 24 abril 1931 num bairro próximo de Pavia, no seio de uma família numerosa de agricultores na qual reinava um autêntico amor cristão, muito simples, mas expresso em profundas relações de afeto. Os seus irmãos e irmãs, vendo a sua compleição delicada, depressa compreendendo que não era da mesma constituição física que eles, decidiram então, de comum acordo com os seus pais, fazerem-na prosseguir os estudos. Provações familiares – não esqueçamos que eram os cruéis anos da guerra – não a pouparam, fazendo-a conhecer o sofrimento. Além disso, durante os estudos, teve que suportar o afastamento do lar, fazendo rapidamente experimentar a solidão da cidade, e abriu-a ainda mais a uma profunda ligação ao Único que pode preencher o coração humano… Além da frequência dos estudos universitários, paralelamente, tornou-se assistente social, comprometendo-se generosamente no serviço aos mais desprotegidos. Escreveu a este propósito: «Sentia uma imensa compaixão para com todas estas pobres pessoas, e porque me dava conta que tinham acima de tudo necessidade de salvação, senti-me cada vez mais atraída não tanto a fazer qualquer coisa de material por eles, mas a oferecer-me a mim mesma, toda inteira, na oração, unindo-me ao sacrifício redentor de Jesus, que só ele pode renovar o interior dos corações.» (Uma vida para amar, Interlinea, Novara 2012, p. 27).
Tendo compreendido que para dar Jesus aos homens teria de se consagrar inteiramente a ele, no silêncio e oração contínua, começou a amadurecer no seu interior a vocação monástica, e foi assim que entrou a 9 julho 1960 na Abadia de São Pedro e São Paulo, em Viboldone, nos arredores de Milão. Entre os sacrifícios e renúncias que mais lhe custaram, foi a interrupção de um começo de carreira literária promissor. Com efeito, alguns dos seus poemas haviam já atraído da atenção dos críticos. Bem depressa, no entanto, o Senhor devolveu-lhe largamente o que ela deixara por ele. As circunstâncias concretas puseram-lhe a pena nas mãos, pena que se torna desde essa época instrumento privilegiado do testemunho da sua fé: desde os primeiros trabalhos de revisão literária da nova tradução da Bíblia italiana, até à redação da Via Sacra no Coliseu, em 1993, desejada por João Paulo II – foi a primeira mulher chamada a uma tal iniciativa. Madre Cànopi, dotada de um estilo simples e claro, atravessada por um grande fôlego poético, chega assim a uma notoriedade em que nunca havia verdadeiramente pensado. Dpontou uma obra consequente, feita de uma centena de livros traduzidos em várias línguas. Estes livros foram o fruto da sua lectio divina sobre a Palavra de Deus, ou também do ensinamento monástico, como por exemplo a obra «Mansidão, caminho de paz», que se revelou um sucesso inesperado, mesmo junto do público laico. Esta grande atividade literária era evidentemente fruto de todas as suas horas de oração, de retiros dados às irmãs, durante os diferentes períodos da sua vida monástica, e sobretudo de um imenso desejo de ajudar qualquer um a aproximar-se da Palavra de Deus.
Se o contexto envolvente dos começos da aventura deixava pressagiar uma espécie de vida semi-eremítica, na realidade, o germe da vida monástica caído entre as pedras floresceu com abundância, e floresceu para lá de toda a esperança. A pobreza que vivíamos era alegre, e deixava-nos tudo esperar da parte do Senhor. A oração do coro era a nossa principal atividade, acompanhada do trabalho manual, assim como da hospitalidade. Com efeito, desde os começos, numerosas foram as pessoas que desejaram partilhar a liturgia, a escuta da Palavra, e pôr-se na escola da orientação espiritual plena de amor da nossa Madre Anna Maria. Bem depressa, chegaram novas irmãs, e tivemos que resolver a espinhosa questão da restauração dos edifícios doravante demasiado obsoletos. O crescimento não parava, e fomos, se se pode exprimir assim, literalmente obrigadas a aceitar a proposta de fundar um priorado em Saint Oyen, no coração dos Alpes, depois um outro em Fossano no Piemonte. Cedo, estávamos igualmente em medida de enviar irmãs para ajudar outros mosteiros que necessitavam de ajuda. Atualmente, a nossa comunidade é composta de aproximadamente setenta monjas, provindas de outros países europeus e igualmente de outros continentes: América do Norte, América do Sul, África. Temos em comum o desejo de viver o Evangelho no seio da fraternidade monástica, a fim de reunir na oração o coração de cada irmão.
Na certeza que, segundo o ensinamento do nosso Pai São Bento, o mosteiro deve ser «casa de Deus», temos igualmente acolhido entre nós monjas que se encontravam em Roma para estudos, e que não podiam ir aos seus países de origem durante o tempo das suas férias. Isto abriu-nos o coração à riqueza do monaquismo vivido em culturas diferentes. Nasceram aí amizades duradouras… Aconteceu até que uma monja budista em particular se ligou de amizade com a nossa Madre. Esta atitude de grande abertura para com aqueles que se hospedavam entre nós ou nos escreviam, por exemplo missionários, ajudou-nos sempre a sentir «em casa » em todos os países do mundo, certas de que com a oração podíamos estar presentes em todo o mundo, lá onde outra ajuda humana seria impossível. Quando, a 11 outubro de 1980, Madre Teresa de Calcutá visitou a nossa diocese de Novara, foi pedido a Madre Anna Maria que lhe escrevesse uma carta em nome de todas as irmãs contemplativas de clausura. Neste texto de tonalidade profética, a Madre escreveu: «A tensão que te habita, o desejo ardente de universalidade que te faz ultrapassar todas as fronteiras, mantem-me toda imóvel sob a cruz para unir-me à única fonte que vence o ódio e consegue reunir o que está dividido.»
Este olhar todo dirigido para reunir a realidade de cada um, para dar uma nova esperança a cada homem, fez-nos profundamente sentir o coração da nossa sociedade tão doente de egoísmo, de desilusões, de solidões aflitivas e dolorosas. A Madre Anna Maria partilhava conosco, com uma grande sensibilidade, o peso de sofrimento e de dor que tantas pessoas vinham depositar cotidianamente no seu coração maternal, recebendo em retorno o reconforto de uma escuta cheia de amor. Nem os prisioneiros eram excluídos: segundo as suas próprias palavras, visitava-os espiritualmente todas as manhãs, antes de imergir na oração do coro, movida por um intenso desejo de acolher no seu coração todos os homens para apresentá-los ao Senhor. Durante muitos anos, manteve uma correspondência epistolar com certos detidos.
É a procura incessante, sem tréguas, do coração humilde, que sustenta a fidelidade de Madre Cànopi, hora a hora, dia após dia, neste testemunho amante de fidelidade à vida monástica. A Madre Anna Maria amava profundamente, naturalmente, a vida, como o bem mais precioso, o que lhe conferia um particular dom de intercessão junto de casais à espera de um filho. Nunca se sentiu «uma personagem excepcional», nunca adotou a atitude de uma «grande mestra », mas o seu comportamento constituía um eloquente testemunho. Uma indomável vontade acompanhou-a até aos últimos dias da existência terrestre. Estava sempre pronta a oferecer uma palavra a quem lhe solicitasse um conselho, e a agradecer a todos quantos, ao longo dos anos, haviam sustentado o crescimento da comunidade. Dotada pela natureza de dons excepcionais de inteligência e sensibilidade, purificadas pelo contato constante com o Senhor e a sua Palavra, abordava cada pessoa com a maior naturalidade, sabendo simplificar os problemas que lhe eram submetidos, fazendo partilhar a sua imensa compaixão, uma incrível capacidade para sofrer com os que sofrem, a alegrar-se com os que se alegram… Acima de tudo, foi uma mulher de paz, esquecida de si mesma, capaz de perdoar, ou melhor ainda, incapaz de se sentir ofendida. A sua divisa, Humiliter amanter, exprime aquilo que viveu. Dpontou também à comunidade uma diretiva expressa na invocação Funda nos in pace: estabelece-nos nesta paz que é o próprio Cristo, nosso único amor e desejo.
À medida que com o tempo declinavam as suas forças físicas, parecia que, pelo contrário, acrescia a sua capacidade de acolher e oferecer com doçura cada despojamento vivido, até se tornar toda inteira oração. Tinha sempre entre os dedos o terço do santo Rosário, e não deixava nunca de seguir com a mais viva atenção a liturgia a partir do seu leito de doente.
Soube igualmente gerir com humildade e sabedoria a sua sucessão, participando da nomeação da abadessa que, após ela, teria a assumir cargo tão delicado. Tudo isto nos permitiu viver uma profunda continuidade na nossa história, e nos obriga a ir em frente sem ressentimentos estéreis sobre o passado.
Madre Anna Maria foi e permanece um imenso dom que o Senhor fez à sua Igreja, em particular ao mundo monástico. Reasseguradas pela promessa que ela mesma nos fez de permanecer sempre conosco, desejamos vivamente dar graças, continuando a viver tudo o que ela nos transmitiu, no seu ser inteiro. Somente assim poderemos, o mais dignamente possível, ser e permanecer suas filhas espirituais.
Madre Teresita D’Silva
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Monges e monjas, testemunhas para o nosso tempo
Madre Nirmala Narikunnel, OSB
Abadessa de Shanti Nilayam (Índia)
Madre Teresita D’Silva
Fundadora e antiga abadessa de Shanti Nilayam
«Combati o bom combate. Terminei a corrida, guardei a fé. Agora, é-me reservada a coroa de justiça que o justo juiz me dará nesse dia » (2 Tm 4,7). Este dia chegou para Madre Teresita a 12 novembro de 2019. Estou segura de que o Senhor a acolheu dizendo-lhe: «Vem, bendita de meu Pai, recebe o reino preparado desde a fundação do mundo» (Mt 25,33).
Audrey D’Silva nasceu a 7 de novembro 1933, filha do casal Dr. Oswald D’Silva e da Sra. Blanche D’Silva. Foi batizada na igreja Nossa Senhora da Salvação em Dadar, Bombaim, e recebeu o nome de Florence Louisa, mas foi sempre chamada Audrey. Nasceu numa grande família de dez crianças, sete meninas e três meninos.
Audrey passou em seu exame de fim de escolaridade em 1951. Pouco tempo depois, começou a ensinar no convento de Dadar. Frequentou o colégio Sophia em 1952, obteve o seu diploma de professora em 1953 e o diploma de religião em 1963, ambos no colégio jesuíta São Xavier. Foi presidente da Curia Junior de Bombaim. Em 1960, o padre Benedict Alapatt, osb, falou-lhe das beneditinas e da beleza do canto do Ofício divino num encontro deste organismo. O padre Benedict sugeriu a Audrey que visitasse o mosteiro Santa Helena de Wennappua (Sri Lanka). Fez aí uma estadia durante as férias e leu a Santa Regra. O padre Benedict apresentou-lhe em seguida a Abadia de Stanbrook, mas finalmente, foi à Abadia de Santa Cecília de Ryde que uma carta foi dirigida. Assim começou a correspondência que Audrey manteve com a Madre Abadessa Bernedette Symers. Audrey demitiu-se do ensino e dpontou a Índia a 13 de outubro de 1963. Passou alguns dias em Roma, onde assistiu a uma audiência pública com o papa Paulo VI. Depois voou para Inglaterra rumo à Abadia de Santa Cecília. A 21 de outubro de 1963, começou o postulado e fez a primeira profissão a 2 de julho 1965. Em sua tomada de hábito, recebeu o nome de irmã Teresita. Dpontou Ryde em 1968 acompanhada da Madre Abadessa Bernedette Symers para o congresso monástico de Bangkok, regressou à Índia sempre acompanhada da Madre Abadessa. Chegaram a Shanti Nilayam, perto de Bangalore, a 16 de dezembro de 1968.
A bênção do mosteiro e da capela assim como a profissão solene de irmã Teresita aconteceram em 26 de julho de 1969, presididas pelo arcebispo Monsenhor Lourduswamy. As primeiras candidatas, irmã Clara e irmã Maria José, partiram para Ryde a 27 de julho 1969, a fim de receberem a sua formação monástica. Madre Teresita D´Silva foi nomeada superiora pela Madre Abadessa Bernadette Symers e a partir deste momento tomou a responsabilidade de Shanti Nilayam até à resignação em 2013 por razões de saúde.
Madre Teresita era uma pessoa profundamente ligada à vida monástica, vida simples de oração e trabalho. Enraizada na fé, era uma pessoa cheia do Espírito. Nada preferia à obra de Deus, o Ofício divino. Transmitiu às irmãs o mesmo amor e desejo. Falava pouco, orava muito, tinha um real dom para o ensinamento e sabia guiar os outros. Foi mestra de noviças durante algum tempo. De 1970 até ficar doente, dava aulas às jovens professas e acompanhava espiritualmente irmãs e pessoas em retiro.

Em 1982, Shanti Nilayam foi elevado a priorado e Madre Teresita foi nomeada prioresa. Em 1993, o mosteiro passou à Abadia e Madre Teresita foi eleita por unanimidade primeira abadessa. Foi presidente da Federação beneditina indo-sri-lankaise (FBIS). Foi várias vezes a Roma e outros países. Tinha um grande zelo por propagar a vida monástica em diversas regiões da Índia. Deu conferências sobre assuntos espirituais, a fim de suscitar novas vocações. Durante o seu superiorado, a comunidade pôde fazer quatro fundações em Gujarat, Shillong , Dindugal, Myanmar, e empreendeu uma quinta em Jamshedpur. Ainda que doente, foi constantemente fiel ao ofício divino no espírito da escola do serviço do Senhor. Quando em casa, era sempre presente no Ofício, até ficar acamada, cinco meses antes da morte. Foi tratada no hospital St. John’s e ficou a cargo de médicos batistas do hospital durante os seus dois últimos meses. O chamado de Deus vinha buscar a nossa Madre bem amada a 12 de novembro de 2019 às 15 horas. Que Deus lhe dê a recompensa do repouso eterno! A sua alma repouse em paz. Amém.
Obrigado a todos quantos estiveram presentes no funeral e a todos os que oraram sem poder estar presentes fisicamente. Sentidos e particulares agradecimentos ao caro padre Jérôme, presidente da Federação beneditina indo-sri-lankaise, à Madre prioresa de Grace and Compassion, Madre Metilda e à prioresa das irmãs de Sainte- Lioba, Madre Vandhana, pela sua presença, assim como a outras superioras maiores da Índia, por enviarem os seus representantes ao funeral de Madre Teresita. A família beneditina da Índia estava toda bem representada. Estamos igualmente muito reconhecidas à AIM pelas mensagens e condolências recebidas assim como aos outros mosteiros que enviaram as suas condolências e orações.
A propósito da Carta Caritatis
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Notícias
Dom Mauro-Giuseppe Lepori,
Abade Geral da Ordem Cisterciense
Être utiles à tous
A propósito da Carta Caritatis[1]
Pouco antes do Natal, 23 dezembro marcará exatamente o nono centenário da aprovação da Carta Caritatis. Ao longo deste ano, temos meditado e estudado este antigo documento que é com efeito o ato de nascimento da nossa Ordem. Com espanto, e alguma contrição, constatámos quanto é necessário à consciência e vitalidade da nossa identidade, do nosso carisma cisterciense marcado com o carisma fundamental de São Bento.
[…] Não serve da nada celebrar e estudar, organizar colóquios, se os impulsos que o Espírito Santo mete nos textos fundadores não nos estimularem à vida, a viver mais intensamente a nossa vocação hoje, na situação atual da Ordem, da Igreja e do mundo.
Desejar o bem de todos
[…] Talvez devêssemos prestar a nossa atenção sobre a dimensão católica, no sentido literal do termo, a dimensão «universal», com a qual os nossos primeiros padres conceberam a fidelidade à sua vocação monástica.
Parece-me tudo resumido numa frase do primeiro capítulo: «Prodesse enim illis omnibusque sanctae Ecclesiae filii cupientes – Desejando ser-lhes [quer dizer aos abades e aos monges] úteis, assim como a todos os filhos da Santa Igreja». A Carta explica de seguida os domínios e meios pelos quais queremos tornar explícito e eficaz este desejo do bem para a Ordem e para toda a Igreja, mas penso que devemos antes de tudo apropriarmo-nos deste desejo do bem e seu alcance universal, porque é como o sopro que pode dar e voltar a dar sentido e vitalidade a tudo o que a nossa vocação nos dá e nos pede que vivamos. […]
O centro que unifica e irradia
A Igreja nasceu do lado aberto de Cristo, como Eva do lado aberto de Adão. Os Padres da Igreja meditaram muito sobre este mistério. E os primeiros cistercienses parecem ter tirado a Carta Caritatis precisamente da contemplação deste mistério que une a caridade, a Igreja e a salvação do mundo. A insistência deste documento sobre a caridade e a salvação das almas concentra-se no desejo ardente (cupientes) de ser úteis (prodesse) a todos os filhos da santa Igreja. Tal é a definição da caridade de Cristo expressa na Hora pascal em que se oferece pela salvação do mundo, engendrando da Cruz a Igreja, esposa do Salvador e mãe dos redimidos. […]
Estar conscientes de que a nossa vocação e missão de cristãos e de monges e monjas irradia sempre e somente deste mistério ajuda-nos a não nos dispersarmos, a nada dispersar na nossa vida, pensamentos, palavras e ações, os nossos esforços. Se com frequência é tão custoso nos mosteiros gerir o tempo e as atividades, para viver as relações humanas na harmonia e na misericórdia, para gerir em particular as fragilidades nas quais nos parecemos afundar, isto vem sobretudo de uma falta de atenção ao mistério central da salvação, a nossa e a dos outros. Se pelo contrário o centro é claro e se o preferirmos a tudo, então tudo o que somos e vivemos pode irradiá-lo.
Prodesse
A palavra que devemos então sublinhar na Carta Caritatis, lá onde ela fala do desejo ardente de servir todos os filhos da Igreja – e os filhos da Igreja são todos os seres humanos, porque a Igreja é chamada a ser uma Mãe que transmite a vida de Cristo a toda a humanidade –, a palavra que define a fecundidade da nossa vida e vocação é pois o verbo latino prodesse que significa literalmente «Ser para», logo servir, ser útil, ser um bem para os outros.
O ardente desejo de ser úteis a todos é o desejo que Deus deu especialmente à criatura humana, feita à sua imagem de Pai e Criador e abençoada para ser fecunda engendrando: «Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, e criou-os homem e mulher. Deus abençoou-os e disse-lhes: “Sede fecundos e multiplicai-vos…”» (Gn 1,27-28).
Não somos verdadeiramente humanos se não desejarmos transmitir a vida, se não quisermos ser úteis aos outros mais do que a nós mesmos. Em Cristo, é-nos dado ser plenamente humanos, plenamente fecundos através da maternidade universal da Igreja, tanto pelo casamento como pela virgindade. Esta fecundidade é sempre possível, porque é uma fecundidade da graça, operada pelo mesmo Espírito Santo que, realizando o impossível, fecundou o seio da Virgem Maria para dar nascimento ao Filho de Deus na nossa humanidade.
Como o grão de trigo
Na situação atual do mundo e da Igreja e das nossas comunidades, muitos duvidam que uma fecundidade da nossa vida e vocação ainda seja possível. Como é pois possível ser fecundos diminuindo, e mais ainda morrendo?
A Igreja vem constantemente lembrar-nos que o que não é possível às nossas forças e capacidades é sempre possível à fé e ao amor que lançam com esperança, como semente na terra, a situação na qual nos encontramos. O que torna também a morte fecunda é o amor com o qual lançamos a nossa vida no dom esponsal de Cristo à Igreja para que ela possa engendrar filhos de Deus no mundo inteiro.
Mas isto não é somente o segredo da fecundidade da morte: é antes de tudo o segredo da fecundidade da vida. Aqueles que creem poder dar fruto sem morrer para si mesmos permanecem estéreis, mesmo se aos olhos do mundo tudo parece assegurar o seu sucesso. […]
No momento da aprovação da Carta Caritatis, Cister havia engendrado doze mosteiros. Eram pois treze, como Jesus com os doze apóstolos. Eles sabiam que eram ainda pequenos e frágeis, mas sentiam uma força que os fazia crescer, que os projetava em frente. Acima de tudo, estavam conscientes, à luz do Evangelho, que o seu sucesso não estava ligado ao poder ou ao número, mas totalmente contido no desejo de dar a vida pelo reino de Deus. Tendo compreendido bem a advertência de São Bento ao abade, que deve ser mais cioso de servir que de dominar – «prodesse magis quam praeesse» (RB 64, 8) – o seu desejo não estava em triunfar, em conquistar espaços de poder, mas em ser úteis, na Igreja e à Igreja, sacrificando-se, perdendo a vida no serviço a Cristo, para a vida do mundo. A vida do mundo está em que todos os homens se tornem filhos de Deus. […]
O nosso carisma
Prodesse. Devemos reapropriar-nos desta pequena palavra que sozinha pode tornar bela, alegre e útil a nossa vida, as nossas comunidades, qualquer que seja o estado em que se encontrem, e também a Igreja inteira, com todos os seus tesouros de graça, mas também as suas fragilidades humanas. […] Fazia-nos bem confrontar com este termo a vida e a experiência das nossas comunidades e pessoas, na situação em que se encontrem hoje, neste tempo de transição que vivem a Igreja e a sociedade inteira, talvez no meio do drama de uma crise política e social como aquela em que vivem, para dar um exemplo, as nossas irmãs da Bolívia. Fazia-nos bem comparar o que vivemos com a frescura sempre nova do desejo dos nossos padres em serem úteis à Igreja universal e ao mundo inteiro.
Prodesse omnibus, ser úteis a todos: como este desejo e esta vocação julgam eles a maneira frequentemente instintiva e talvez autorreferencial com a qual julgamos os nossos problemas, crises, e com a qual procuramos uma solução? Somos verdadeiramente animados por este desejo do bem para todos, ou pensamos que a solução seria a que beneficiaria apenas a nós? Temos a fé em que a pobreza, a fraqueza e mesmo a morte, vividos em Cristo, podem elas também, ser úteis ao mundo inteiro? […]
Como é belo, como é necessário e urgente, que todas as nossas comunidades, com todos os monges e monjas que as compõem, com todas as pessoas unidas ao nosso carisma, possam voltar a ser capazes de formular com as nossas vidas esta palavra transmitida pelos nossos padres, «prodesse», «como o esposo que sai da câmara nupcial» (Ps 18,6), quer dizer, como Jesus nascido da Virgem para fazer a todos os homens o dom da sua presença, do seu amor, da sua salvação!
[1] Excerto dos anelos de Dom Mauro-Giuseppe Lepori às comunidades cistercienses para o ano de 2020.
A Carta de Caridade (Colóquio )
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Notícias
Éric Delaissé,
Responsável pelo CERCCIS, Cîteaux
Colóquio internacional
Colégio dos Bernardinos, Paris, 16 e 17 outubro de 2019
A Carta de Caridade (1119-2019)[1]
Um documento para preservar
a unidade entre as comunidades
A Associação para a Irradiação da Cultura Cisterciense (ARCCIS), em parceria com o Colégio dos Bernardinos e a Fundação dos mosteiros, organizou um colóquio em Paris a 16 e 17 de outubro passados, a propósito da história e atualidade de um texto fundamental, que festeja o seu nono centenário.
Cister tinha sido fundado em 1098. O ano 1113 viu nascer a sua primeira filha : La Ferté. A entrada de Bernardo de Fontaine e dos seus companheiros em Cister iria rapidamente suscitar o estabelecimento de novas filhas. É neste contexto que é preciso compreender a redação da Carta da Caridade . O texto nasce do cuidado do abade Estevão Harding em organizar as relações entre Cister e as novas comunidades que dela saíram. Importa salvaguardar para os monges o espírito de Cister nos novos estabelecimentos e de regular as relações entre os mosteiros. O prólogo da Carta precisa ainda que «este decreto devia trazer o nome de Carta da Caridade porque o seu teor, rejeitando o fardo de toda a renda material, persegue unicamente a caridade e a utilidade das almas nas coisas divinas e humanas».
Se festejamos o nono centenário da Carta, é preciso todavia notar que este texto conheceu vários estados. A sua redação começou provavelmente a partir de 1114, mas prossegue, bem após a morte de Estevão, ao longo do século 12. Geralmente, distingue-se quatro estados deste documento essencial: 1) A Carta de caridade e de unanimidade, hoje perdida; 2) a Carta de caridade anterior, aprovada pelo papa em 1119; 3) o Resumo da Carta da caridade, produzida por volta de 1124; 4) a Carta de caridade posterior, aprovada por Alexandre III em 1165, mas uma primeira vez por Eugénio III em 1152.
O texto aprovado em 1119 nota já os princípios essenciais que devem reger as comunidades cistercienses. O primeiro capítulo da Carta indica que «a Igreja-mãe [a Abadia fundadora] não reclamará da sua filha nenhuma contribuição de ordem material». Um outro aspecto diz respeito à regra de São Bento. Neste sentido, o capítulo segundo sublinha que «a Regra será compreendida e observada por todos de uma só maneira ». Esta unanimidade traduz-se ainda através do terceiro capítulo segundo o qual «todos terão os mesmos livros litúrgicos e os mesmos costumes». Em outros capítulos do texto, regulando as relações entre as Abadias, importa notar que a Carta da Caridade dota a ordem cisterciense de mecanismos essenciais ao seu bom funcionamento. É assim que o quinto capítulo institui uma visita anual da Igreja-mãe à sua filha : cada ano, o abade da Igreja-mãe deve visitar todas as comunidades por ela fundadas. Da mesma forma, o sétimo capítulo estabelece um «capítulo geral dos abades em Cister»: todos os abades cistercienses devem apresentar-se uma vez por ano em Cister para uma reunião geral.
Após uma introdução por Dom Olivier Quenardel (Abadia Nossa Senhora de Cister), o colóquio que teve lugar em Paris a 16 e 17 de outubro reuniu, em torno de sete pontos, historiadores, monges e monjas, mas também dirigentes do mundo empresarial para fazer o elo sobre a história e a atualidade deste texto quase milenar. Cinco pontos são ligados à história. O primeiro era consagrado à Carta da Caridade no século 12 e às suas diferentes versões. Neste quadro, Alexis Grélois (Universidade de Rouen) tratou da génese e da evolução do texto falando da importância de empreender um estudo sério da datação do documento e sublinhando a reavaliação necessária do papel do episcopado na sua elaboração («Génese e evolução da Carta da Caridade no século 12»). Estudando as versões da Carta Caritatis, Monika Dihsmaier (Heidelberg) interessou-se por sua vez mais particularmente pelos mecanismos de tomadas de decisão, quando dos capítulos gerais («Entscheidungsfindung und die Versionen der Carta Caritatis»).
O segundo ponto do colóquio visava o papel de Estevão Harding e de Bernardo de Claraval na construção da ordem cisterciense. Ao longo da sua intervenção, Brian Patrick McGuire (Roskilde Universitet) demonstrou que não obstante a envergadura de São Bernardo, a sua marca é indectável na Carta Caritatis. Ele interessou-se pelas relações entre Bernardo e Estevão, tendo este último um papel central para estabelecer a estrutura da ordem («Abbot Stephen of Cîteux and Abbot Bernard of Clairvaux : Bonds of Charity?»). Quanto ao padre Alkuin Schachenmayr (Abadia de Heiligenkreuz), tratou de Estevão como autor presumido da Carta Caritatis. Neste contexto, ele inclinou-se sobre a percepção deste abade – notoriamente sobre a sua veneração – ao longo dos tempos («Abbot Stephen as Purported Author of the Carta Caritatis»). A intervenção de Martha G. Newman (University of Texas) constituía um terceiro ponto do colóquio, ligando-se ao estudo do lugar da Carta Caritatis nos textos do fim dos séculos 12 e 13 («The Benedictine Rule and the Narrow Path: The Place of the Charter of Charity in the Exordium Magnum and other late twelfth-century Cistercian texts»). Ela demonstrou que nenhum texto deste período apresenta a Carta Caritatis como o fator caraterístico central do modo de vida cisterciense: eles insistem mais sobre os elementos específicos contidos na Carta, como o Capítulo Geral e a visita do abade-pai à casa-filha. Um quarto ponto do colóquio era consagrado à aplicação da Carta Caritatis. Constance Berman (University of Iowa) interessou-se por pôr em prática este texto («The Charter of Charity in Practice»). A sua intervenção demonstrou que, nos anos 1170, a preservação da paz e da caridade aparecem como um cuidado recorrente nas cartas. Quanto a Jörg Oberste (Universität Regensburg), interrogou-se sobre o que permitiu aos cistercienses manter o espírito da sua fundação (Auf neuen Wegen Altes bewahren – Was leistete die zisterziensische Ordensverfassung des 12.und.13 Jahrhunderts?). Ele indicou que a Carta Caritatis não deve ser compreendida como uma constituição no sentido de um simples sistema jurídico, mas que visa mais proteger a Regra e a vida ascética praticada em Cister. A Carta como fonte de inspiração em outras ordens religiosas, foi o objeto de um quinto ponto do colóquio. Neste quadro, Guido Cariboni (Università Cattolica, de Milão) tratou dos cônegos regulares, concentrando-se em particular sobre a rede canônica saída de Saint Martin de Laon («La Carta Caritatis quale documento per fondare un’abbazia »). A sua intervenção demonstrou que os documentos provenientes de Saint Martin de Laon e as suas filiações apresentam elementos retirados dos cistercienses; em certos casos, antecipam mesmo a experiência de Cister tal como aparece nas primeiras versões da Carta Caritatis.
Certas partes do colóquio apresentaram aspectos mais ligados à atualidade. É assim que um sexto ponto dava uma abertura ao management na sociedade civil. Hubert de Boisredon, presidente-diretor geral de Armor, empresa especialista das tintas e consumíveis de impressão, ofereceu assim uma releitura dos princípios da Carta Caritatis sob um ângulo empresarial («A Carta Caritatis, fonte de inspiração para sociedades de um mesmo grupo»). Enfim, um sétimo e último ponto deste colóquio foi consagrado à Carta Caritatis vivida hoje no seio da família cisterciense. Nesta ótica, uma mesa redonda reuniu representantes das comunidades monásticas da família cisterciense: Dom Vladimir Gaudrat (Abadia de Lérins, Ordem cisterciense), Dom Jean-Marc Chéné (Abadia Nossa Senhora de Bellefontaine, Ordem cisterciense da estrita observância), Madre Mary Helen Jackson (mosteiro Nossa Senhora de La Plaine, Cistercienses Bernardinas d’Esquermes). O colóquio terminou com uma intervenção do padre Gérard Joyau (Abadia Nossa Senhora de Scourmount): ele interessou-se pelo lugar da regra de São Bento no processo de unidade das comunidades cistercienses («A regra de São Bento, fundamento da unidade das Abadias cistercienses segundo a Carta Caritatis»). Pôde notar o quanto a Carta Caritatis, documento com nove séculos, é ainda um texto para a família cisterciense de hoje, com os mecanismos institucionais que perduram no respeito da tradição de cada um dos componentes da mesma família.
[1] Cortesia da revista Collectanea Cisterciensia.
12° encontro EMLA
18
Notícias
Padre Enrique Contreras, OSB
Presidente da EMLA
Apresentação do 12º encontro
monástico latino-americano (EMLA)
Seis anos após o último encontro dos mosteiros da América Latina (EMLA), que aconteceu no México, vivemos uma nova reunião sobre a vida monástica no nosso continente.
A organização foi confiada à Conferência das comunidades monásticas do Cono-Sur (SURCO), pois este serviço gira em torno das três zonas ou regiões nas quais a União monástica latino-americana está dividida. As duas outras são a ABECCA (Associação Beneditina-Cisterciense do Caribe e dos Andes), que compreende a UBC (União Beneditina e Cisterciense do México) e a CIMBRA (Confe- rência de Intercâmbio Monástico do Brasil).

Encontro Monástico
O costume dos «encontros» é muito antigo no monaquismo cristão. Desde a origem, encontramos testemunhos desta prática. Assim, no texto fundador da nossa vida monástica, a Vida de Santo Antão, escrita por Atanásio de Alexandria a meio do século 4º, lemos:
«Numa certa ocasião, os monges pediram a Antão que viesse visitá-los e observá-los, assim como os lugares (onde viviam) durante algum tempo; o qual se pôs a caminho com os monges que vieram buscá-lo. Um camelo transportava pão e água para eles, porque aquele deserto era muito seco, e não se encontrava água potável, salvo naquela montanha isolada de onde o trouxeram e onde Antão se entregava à ascese. Durante o caminho, esgotou-se a água. Fazia muito calor e todos perigavam. Procuraram nos arredores sem encontrar água, não podendo mais caminhar; caíram então por terra ; desesperados, deixaram o camelo partir. O velho homem, vendo que todos estavam em perigo, aflito e gemendo profundamente, afastou-se deles, ajoelhou-se e levantou as mãos em oração. Nesse preciso momento, o Senhor fez brotar água no mesmo lugar onde ele orava. Então todos beberam e recuperaram forças. Após se terem reabastecido, procuraram o camelo e encontraram-no. Com efeito, as cordas haviam ficado presas numa pedra e o camelo não pudera prosseguir. Os monges desataram-no, deram-lhe de beber, e carregaram-no com as provisões de água. Puderam então seguir caminho sem perigo.
Assim que chegaram aos mosteiros exteriores, todos, vendo Antão como um pai, o abraçaram. E ele, como se tivesse trazido as provisões da montanha, alimentou-os com palavras e distribuiu por eles um benefício espiritual. Nas montanhas (ele tinha) a verdadeira alegria, zelo para progredir e reconforto pela confiança mútua (cf. Rm 1,12)».
O texto citado transmite certos ensinamentos importantes. Sobretudo, o desejo de partilhar a experiência de vida e os ensinamentos de um grande santo.
Entretanto, para que este desejo possa concretizar-se, é preciso fazer uma longa viagem, não isenta de perigo e sem sérias dificuldades. Uma vez ultrapassados os obstáculos, a reunião permite-lhes tirar proveito com grande alegria de uma troca feliz.
EMLA
Ao longo dos anos, os encontros latino-americanos confirmaram muitas e muitas vezes a importância e o feliz desejo de partilhar as dificuldades e as alegrias da nossa vocação comum entre as monjas e os monges. É o objetivo principal da estrutura do nosso EMLA.
Acrescento de imediato que a história desta estrutura nem sempre foi fácil, bem pelo contrário. Mas a necessidade de um encorajamento mútuo prevaleceu sempre através de uma troca frutuosa das nossas experiências do carisma monástico.
A Vida de Santo Antão mostra-nos que as viagens, mesmo que hoje não comportem mais os mesmos riscos de então, não devem ser encorajadas com ligeireza : longas distâncias, longas horas de trajeto em avião, em camionete ou carro, longas filas de espera. Os perigos de hoje, por vezes mais importantes que os dos nossos predecessores, testam a paciência monástica tão frequentemente citada. Entretanto, as dificuldades são sempre largamente ultrapassadas pelas grandes vantagens de que nos beneficiamos em nossos encontros. Podemos sintetizá-los com as palavras do salmista : «Que doçura, que delícia, viver juntos e ser unidos» (Ps 132,1).
Os frutos do EMLA
A vida de Santo Antão sintetiza de maneira admirável os frutos do encontro fraternal. Antes de mais, a partilha do alimento das palavras que nos fornecem um benefício espiritual de qualidade. De seguida, a alegria e o desejo ardente de progredir na vida espiritual. Em terceiro, o reconforto que deriva da confiança mútua.
Assim, nos nossos encontros, alimentamo-nos do pão da palavra e do pão da Eucaristia. Era precisamente o tema central do 12º encontro do EMLA: «Eucaristia e vida monástica ». E por acaso, este encontro começou a jornada com a celebração da memória de São Jerônimo, este verdadeiro apaixonado pela palavra de Deus.
Partilhamos igualmente o alimento fornecido por conferências, mesas redondas, reuniões de grupo, assembleias plenárias, trocas pessoais. E tudo isto com a certeza absoluta dos benefícios espirituais. Pudemos constatar, não somente neste EMLA, mas também nas precedentes, a alegria profunda que prova que não estamos sós no caminho de e para Cristo. Queremos renovar-nos no desejo sincero e ardente de progredir na vida segundo o Espírito.
Qualquer coisa de especial
A Vida de Santo Antão falou-nos de reconforto graças à confiança mútua. No nosso 12º EMLA, isto traduz-se fundamentalmente em duas palavras: simplicidade e harmonia. Com efeito, uma simplicidade harmoniosa caracterizava tudo o que foi vivido na vida cotidiana, nas reuniões e, de maneira particular, na nossa peregrinação ao santuário de la Cura Brochero, como um manto invisível, sobre os lugares da casa pastoral e espiritual que fundou e animou São José Gabriel de Rosario Brochero, e que está sempre em atividade.

As comparações nunca são apropriadas. Resisto pois a toda a forma de expressão que daí resultasse: «Era melhor se…». Pelo contrário, após ter participado em vários EMLA, pude novamente reconhecer como o Espírito Santo nos guiava através de um caminho de progresso espiritual contínuo, não obstante os nossos numerosos limites humanos.
O 12º encontro confirma-nos a necessidade de viajar para estarmos juntos, encontrar-se, participar, dialogar. Poder sustentar o nosso progresso espiritual com alegria, beneficiando das palavras que nos reforçam e nos renovam, a fim de seguir a Cristo com mais devoção.
Um desejo e uma inquietude
Parece-me que o nosso 12º EMLA suscitou um desejo quase espontâneo de aprofundar a nossa experiência da lectio divina. Este tema surgiu muitas vezes, de modo esporádico, ao acaso dos encontros, mas merecia um tratamento mais extenso, mais aprofundado que abra o caminho a uma renovação desta prática essencial da vida monástica cristã.
Uma preocupação, talvez demasiado pessoal, que eu ressinto em cada EMLA: nosso retorno às fontes, aos ensinamentos dos padres do monaquismo. É verdade que as solicitações do nosso tempo são numerosas, assim como os desafios aos quais devemos fazer face diante da realidade de uma época complexa. Mas isto nos isenta de rever atentamente os ensinamentos que os nossos pais nos legaram na vida monástica? Em todo o caso, o EMLA confirma mais ainda, para cada um, com uma nova e maior urgência, a necessidade de nos encontrarmos para continuar a crescer na confiança e alegria de saber que Deus Pai no seu Filho ama-nos até ao extremo (cf. Jo 13,1); e isto sustem-nos na nossa vocação monástica comum. Como o ensinou a Vida de Santo Antão, apoiando-se nos ensinamentos de São Paulo: «Possamos encorajar-nos mutuamente… pela fé que nos é comum, a vós e a mim (Rm 1,12).
Viagem à Argentina (1)
19
Notícias
Dom Jean-Pierre Longeat, osb
Presidente da AIM
Viagem à Argentina,
outubro de 2019
Segunda feira, 23 setembro
Destino: Argentina para o encontro do EMLA, reunião dos superiores dos mosteiros da família beneditina para toda a América Latina.
A Argentina conta com uma quinzena de mosteiros da família beneditina : três nascidas a partir da Abadia de Santa Escolástica de Buenos Aires (Córdoba, San Luis, Rafaela); a comunidade de Córdoba fundou por sua vez a do Paraná ; entre os mosteiros masculinos, há o de Luján e o de Los Toldos e ainda o de Niño Dios (que fundou uma outra comunidade na Argentina, El Siambón); existem dois mosteiros trapistas no território, um de monges (Azul) e um de monjas (Hinojo), duas comunidades de Tutzing em Buenos Aires e Los Toldos e uma comunidade de beneditinas em Santiago del Estero. É uma rica história que começou no fim do século 19. Durante a viagem tive a oportunidade de visitar sete destas comunidades.
No aeroporto de Buenos Aires, fui acolhido por duas irmãs de Santa Escolástica e partimos para o seu mosteiro que ficava a uma hora de carro. Após instalar-me na hospedaria, pedi para celebrar a missa antes do almoço. Fi-lo na cripta, e, para minha grande surpresa, um certo número de irmãs estava presente para uma celebração improvisada. Celebrei em francês, mas a bibliotecária forneceu os livros para que as irmãs pudessem seguir e responder nessa língua..
À tarde, fiz um passeio junto a um braço do Oceano que fica a apenas 15 minutos. No regresso, tivemos um encontro com a comunidade, numa vasta sala, em círculo. Após voltarmos a escutar o Evangelho do dia, falámos livremente sobre todo o tipo de questões tocando as nossas vidas. Ambiente caloroso que dá bem o tom desta estadia argentina.

Terça feira, 24 setembro
Levantei-me às 4 horas da manhã. As Vigílias são às 5 h 15, Laudes às 7 h 30 e a missa às 8 h 30. A manhã passou-se em visita ao mosteiro.
Escondida nos arredores de Buenos Aires, não longe das margens de la Plata, esta comunidade de monjas beneditinas deseja ser para todos os habitantes da cidade um farol pela sua vida de oração e contemplação, e pelo seu trabalho.
As crônicas relatam que, durante numerosos anos, o P. Andrés Azcárate, monje de Silos (Espanha) e prior-fundador da Abadia de San Benito em Buenos Aires, desejou fundar na Argentina um mosteiro de monjas… Numerosos jovens argentinos, atraídos pela vida beneditina encorajaram o P. Andrés na sua tentativa. O Padre Prior, conhecendo bem as Abadias espanholas e o fervor da sua observância, enviou então as primeiras candidatas a Estella (Navarra), para abraçar a vida monástica e formarem-se aí. Mas a guerra civil em Espanha travou estes projetos. Em 1937, o Padre Prior dirigiu-se à Abadia Santa Maria de São Paulo, Brasil, cuja abadessa e fundadora é Madre Gertrudis Cecília da Silva Prado, para empreender esta obra de formação. A Abadia de Santa Maria pertence à Congregação Beneditina Brasileira, mas as suas primeiras religiosas tinham sido formadas na Abadia Nossa Senhora da Consolação, em Stanbrook, Inglaterra, que iniciou a fundação em 1911. A Abadia Santa Maria seguiu, à semelhança de Stanbrook, os costumes da vida beneditina estabelecida por Dom Guéranger para as religiosas de Sainte-Cécile de Solesmes.
Em Santa Maria, em 15 de outubro 1938, o D. Prior pediu à Madre Abadessa e à comunidade a admissão das primeiras filhas argentinas para a fundação de Santa Escolástica. A Madre Abadessa aceitou o pedido e abriu largamente as portas da sua Abadia às sete candidatas.
A 8 dezembro do mesmo ano, solenidade da Imaculada Conceição, foi colocada a primeira pedra do edifício. Enquanto o mundo se batia em guerras terríveis, um novo mosteiro beneditino nascia na Argentina, conformemente à divisa «PAX». A igreja abacial seria colocada sob a proteção da Rainha da Paz.
A 17 de setembro de 1940, a profissão da primeira noviça teve lugar em Santa Maria e a 21 novembro, a das seis outras Argentinas. Entretanto, o número de argentinas reunidas no noviciado de Santa Maria aumentou, sendo todas muito fervorosas.
Hoje a comunidade é composta por cerca de 30 monjas. As suas atividades consistem num ateliê de ornamentos, um outro de objetos de arte, um ateliê de encadernação, uma impressora de convites e cartões-postais, uma chocolataria e uma hospedaria.
A liturgia é ao mesmo tempo em espanhol e canto gregoriano. Os edifícios do mosteiro são espaçosos; o terreno estende-se por três hectares no meio das habitações da cidade de Victoria.
À tarde, a Madre Abadessa delegouduas irmãs para me acompanharem à beira do rio Luján na cidade de Tigre. Caminhámos um pouco ao longo do rio e discutimos muito sobre a situação do país e da Igreja. A secularização é galopante, as bases da fé são postas em causa, enquanto por outro lado a devoção popular permanece muita viva. Em todo o caso, a questão da transmissão da fé, na Argentina como de resto no mundo, está em vias de conhecer uma fase particularmente difícil. Evidentemente, isto envolve o futuro da vida religiosa. A comunidade de Santa Escolástica, que é contudo bem viva e dinâmica não recebe noviças desde há oito anos.
Quarta feira, 25 setembro

De manhã, dirigimo-nos à antiga Abadia de San Benito no centro de Buenos Aires. Como já disse, esta fundação foi obra da Abadia de Silos em 1914. Perdurou neste lugar até 1973, data em que os monges se transferiram para Luján.
Fomos recebidos pelo padre Pedro, monge de Luján, que permanece ali para o que agora serve de pouso para os monges do seu mosteiro. A comunidade de Luján é proprietária dos espaços e tentam alugá-los: vários organismos se sucederam desde os anos 70.
O que impressiona de imediato é a desproporção desta construção que se queria originalmente ao serviço de um projeto muito grande. Com efeito, o padre Andrés, prior e fundador, construiu, por etapas, uma Abadia que pudesse alojar uma centena de monges. Mas a fundação nunca foi bem sucedida. No auge da sua maior glória, pôde albergar cerca de 50 monges, mas que vinham todos de Espanha, recrutados essencialmente entre os “oblatinhos” de Silos. A visita dos edifícios, desprovidos de locatários desde há alguns meses, é eloquente. Ademais, a construção não pôde ser acabada : o claustro apresenta dois lados com arcadas que se elevam sobre o vazio, e as torres da igreja não estão completas. Imagina-se os esforços desenvolvidos para chegar a sustentar este projeto gigantesco!
Voltamos para o jantar nas irmãs beneditinas congregação beneditina missionária de Tutzing, instaladas muito perto daí. São cinco. Todas cheias de vitalidade, mantêm diversas tarefas como a animação de uma pensão para jovens moças em situação de emigração, nomeadamente da Venezuela ; o acompanhamento de jovens do bairro em dificuldades; o acolhimento de hóspedes na sua hospedaria, e também claro a vida regular. Como é frequente, nas irmãs de Tutzing , a comunidade é muito internacional: a prioresa é brasileira, duas são argentinas, uma coreana e uma namibiana. A atmosfera é muito livre e despretensiosa. Há duas comunidades de Tutzing na Argentina.

No princípio da tarde, partimos com o P. Pedro para o mosteiro de Luján onde vou permanecer todo o dia seguinte. Mas antes, fazemos uma parada na catedral de Buenos Aires para orar em comunhão pelo Papa Francisco que aí foi por muito tempo arcebispo. Atravessamos a cidade de Buenos Aires que conta 3 milhões de habitantes, alargada em 14 milhões pela aglomeração.
Após uma hora e meia de viagem, chegamos ao mosteiro de Luján onde fomos acolhidos pelo Padre Abade Jorge, recentemente eleito (a 14 setembro de 2019) após um tempo como prior administrador.
Após o jantar, encontro a comunidade durante a «recreação». São 15 monges com várias gerações representadas. Os mais jovens têm mais de 30 anos e os dois mais idosos têm 92 e 93 anos.

Quinta feira, 26 setembro
Após o café da manhã, Laudes e missa, partimos com o Padre Abade visitar a basílica de Luján a alguns quilômetros do mosteiro.
A pequena estátua em barro cozido de 38 centímetros, conhe cida hoje como a Virgem de Luján, data de 1640. Um proprietário rural queria fazer construir no seu domínio uma capela consagrada à Virgem Maria. Pediu a um amigo que vivia em Pernambuco, Brasil, que lhe enviasse uma estátua da Virgem, e ele enviou-lhe duas: uma de Nossa Senhora da Compaixão (a Consolata), e uma outra da Imaculada Conceição.
À época, os caminhos eram em terra, e enquanto a carroça transportava as estátuas do porto em direção ao campo, no norte da cidade, a noite caiu e a carroça teve de parar junto às margens do rio Luján. Mas no dia seguinte, no momento de retomar a rota, os bois não se moveram. Os boiadeiros descarregaram a caixa contendo uma das estátuas, mas a carroça não se mexia de todo. Eles voltaram a colocá-la na carroça e desceram a outra estátua, e a carroça rolou normalmente. Eles constataram então que o que a impedia de avançar era a estátua da Imaculada Conceição. Concluíram que se tratava de um milagre: a Virgem queria permanecer naquele lugar.
Testemunha do milagre, o «negrito Manuel» era, dizia-se, um homem caloroso e simples a quem foi confiada a missão de guardar a imagem porque, como havia dito o seu mestre de então, «não havia ninguém mais que servisse» senão ele. Durante quarenta e um anos, a estatueta permaneceu num eremitério a 25 km da atual basílica. Em 1671, ela foi transferida para um oratório, donativo de doña Ana de Matos, e ao fim de um certo tempo começaram os trabalhos de construção do primeiro santuário do qual se descobriram as ruínas. É nesta capela que têm lugar as primeiras peregrinações e os primeiros milagres.
E o guardião de Nossa Senhora, encarregado de acolher os peregrinos, será até ao fim da sua vida o «negrito Manuel», que morreu em odor de santidade. Foi enterrado por trás da capela, que existiu até 1740.
No fim do século 19, apos a coroação pontifical da pequena estátua e a primeira peregrinação oficial vinda de Buenos Aires, em agradecimento pelas graças concedidas durante a epidemia de febre amarela, empreendeu-se a construção da monumental basílica, hoje um dos centros de peregrinação mais importantes da América latina. Esta construção deveu-se à iniciativa de um padre francês, o padre Salvaire.
Após a basílica, visitamos a cripta onde estavam reunidas reproduções de estátuas da Virgem de numerosos países do mundo. Fiquei impressionado pela variedade de todas estas estátuas. Nunca medira o quanto a apropriação da imagem da Virgem permitia a cada cultura nacional ou regional identificar-se com aquela que foi a primeira discípula de Jesus, e que se tornou assim a mãe de todos os que seguem o seu filho. É uma forma de tornar a fé mais acessível.
No regresso, paramos numa antiga casa nas terras do mosteiro (a propriedade estende-se por 300 hectares à imagem das grandes explorações agrícolas da Argentina!). Este edifício foi transformado em centro de formação agrícola para as jovens da região. Esta obra está sob a responsabilidade de uma fundação dedicada a este gênero de projeto. Há quarenta alunos atualmente, que se repartem em dois anos de formação. Os professores e animadores são pessoas convictas e muito empenhadas. O estabelecimento é acompanhado no plano espiritual pelo Opus Dei: uma capela está aí em vias de construção. Entretanto o pessoal compromete-se em nada ensinar que se oponha às diretivas dos poderes públicos, nomeadamente em matéria de ética familiar e social ou de bioética.
Durante a tarde, o Padre Abade levou-me a visitar as atividades econômicas do mosteiro: a loja situada a 1 km dos edifícios monásticos e é mantida por uma família empregada pelos monges; a criação de gado bovino (90 vacas leiteiras), igualmente confiada a empregados leigos; a confeitaria onde trabalham os monges mas igualmente alguns leigos. Visito também os arredores: em particular uma antiga fiação montada por uma família vinda da Bélgica no século passado. O fundador desta empresa tinha uma perspectiva social segundo o ideal da doutrina social da Igreja. Além da fábrica, criou todo um conjunto de atividades para ajudar a população a sair da pobreza : grupo escolar, atividades de lazer, piscina coberta… As crianças herdaram a obra mas não a puderam prosseguir e finalmente esta faliu. A escola permaneceu lá, mas as outras atividades pararam definitivamente. O mosteiro contribuiu muito para o acompanhamento das pessoas que se depararam com o desemprego assim que a fábrica fechou.
No final da tarde, tomamos um tempo para ler em conjunto o Evangelho do dia e partilhar o que ele nos inspirava. Para tanto pusemo-nos perto de um rio pertencente à antiga fiação onde as pessoas do país vêm descansar.
Ao longo do dia, o Padre Abade fala abundantemente da situação do país. Este atravessa uma crise política profunda. A pobreza ganha terreno. O contexto político é particularmente tenso. Muitos na Igreja da Argentina estão fortemente comprometidos com os pobres: os bispos intervêm frequentemente a este respeito.
De noite, novo encontro com a comunidade. Trocamos alguns presentes porque amanhã será a partida para outras comunidades em vista da sessão do EMLA nos dias que se seguirão.
Continua: https://www.aimintl.org/pt/communication/report/119