NOSSO UNIVERSO
Me. Martha Lúcia Ribeiro Teixeira, OSB
Os dois jovens arquitetos que deveriam projetar a planta da Abadia Nossa Senhora da Paz, em Itapecerica da Serra, São Paulo, pediram “ingresso no mundo monástico que iria encher, com a sua presença cheia de interioridade, os espaços limitados pelas paredes que fariam levantar”. Daí este texto, que lhes foi apresentado em 1972.
Como a Igreja, da qual é uma miniatura, o mosteiro é um MISTÉRIO. Mistério – ou sacramento – é a conjunção do divino e do humano numa realidade visível, concreta. É o sinal visível de uma realidade transcendente, invisível.A face material, exterior, de um mosteiro, (tanto tomando a palavra no sentido de “casa”, construção material como no sentido de “comunidade” ou corpo monástico) vela e revela uma realidade invisível e sobrenatural. O mosteiro-casa abriga uma família monástica. Essa família é constituída por mulheres – criaturas humanas – ligadas não pela consangüinidade natural, mas por um “sangue divino”, a graça batismal, visando todas a um mesmo objetivo de dupla dimensão: a busca de Deus na vida contemplativa beneditina, busca realizada cenobiticamente, isto é, numa “sociedade ideal, onde reina o amor, a obediência, a inocência, a liberdade das coisas e a arte de bem usar delas, a superioridade do espírito, a paz, numa palavra: o Evangelho” (Paulo VI).
São, portanto, essenciais ao “nosso universo” a verticalidade, isto é, a orientação de todo o nosso ser para Deus e a horizontalidade, isto é, a vida fraterna plena, uma vida em comunidade, a chamada vida cenobítica.Essa nossa vida cenobítica reproduz, de certo modo, a vida familiar: os seus membros mantêm entre si os laços de uma verdadeira fraternidade e todos se relacionam verticalmente, num relacionamento filial, com um de seus membros, chamado a ocupar o lugar como que de “mãe”, isto é, de foco de amor, de centro de coordenação dos esforços comuns, de fonte de estímulo e de elemento de direção e autoridade. São Bento, que programou o gênero de vida da família monástica, estabeleceu dois pólos em torno dos quais gravita a “ação”, a atividade dessa sociedade humano-sobrenatural: a oração e o trabalho – Ora et labora!
A oração litúrgica, isto é, o louvor de Deus, realizado em nome de todo o Povo cristão é sua obra principal, sua atividade primordial. Essa atividade tem uma dimensão espiritual, que a orienta para Deus - é o Seu louvor! – e tem uma função social relativamente ao Povo de Deus: a comunidade beneditina, no desempenho do Opus Dei, na sua vida litúrgica, é “colocada no candelabro” para iluminar o Povo de Deus, conforme as palavras de Paulo VI. Torna-se, assim, uma escola de oração, que incita os cristãos ao mesmo louvor, para que o mundo todo se transforme em um só coro a cantar a glória de Deus.A igreja abacial é, por isso, o coração do mosteiro. A comunidade aí realiza o seu ministério específico diante de Deus e dos homens: o da oração. Sua oração brota do silêncio vivificado pelo contato com Deus. Seus gestos brotam de sua interioridade. O povo presente na igreja, durante as celebrações litúrgicas, deverá ser “sensibilizado” para a oração, para o encontro com Deus, por essa nota pacificante, de interioridade, da comunidade que reza, como também (e isto cabe ao arquiteto!) pela “interioridade do espaço sagrado que o abriga”. Simplicidade, harmonia, luminosidade difusa, despojamento, recolhimento, em suma: beleza, que é “esplendor da ordem” deve impregnar a arquitetura desse lugar sagrado.
Partindo da igreja, onde, pela celebração da Eucaristia, da Liturgia das Horas e da oração silenciosa, a monja vive os tempos fortes de sua vida diária, ela continuará, sempre nessa dimensão cenobítica, a viver em busca da Face de seu Deus. Como um apaixonado que, em tudo e em todos, encontra algo que lhe lembra o objeto de seu amor, a monja procura continuamente a Face do Cristo, a quem se consagrou de corpo e alma. Ela o vê na sua superiora, em cada irmã, na irmã doente ou necessitada, em cada pobre que vem ao mosteiro, em cada visita. E seu olhar de fé, contemplando o mundo todo à luz transfiguradora que emana dessa Face, “trata todos os objetos do mosteiro como vasos sagrados do altar”.Brotando dessa visão sobrenatural, o trabalho manual das monjas enxerta-se na obra redentora do Cristo: os trabalhos confeccionados no mosteiro, dos quais as monjas tiram a sua subsistência, são sempre marcados por um toque de beleza, de acabamento, de perfeição, desejosos de “sugerir” uma Beleza que os transcende e que eles procuram refletir. Através desses trabalhos, intelectuais ou de artesanato, as monjas deixam transbordar sobre a sociedade a Beleza que as fascina, a harmonia de sua vida e a paz que procuram construir. Além desses trabalhos, as monjas entregam-se também aos ofícios comuns das pessoas do mundo, na sua faina diária: cuidam da casa, lavam, costuram, cozinham, entregam-se à jardinagem, etc. Seu trabalho, porém, tem sempre uma dimensão de amor que o eleva à “lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transfiguração do mundo”. Pois, como diz ainda o Vaticano II, “aos que acreditam na caridade, Cristo...admoesta que esta caridade deve ser exercida não só nas ações retumbantes, mas sobretudo nas circunstâncias ordinárias da vida” (Gaudium et Spes 38). Entre todas essas atividades assumidas pelo mosteiro, há uma que o tem sido, de modo quase ininterrupto pelos filhos de São Bento, no correr dos séculos: a hospitalidade. Paulo VI exorta-nos a exercer essa hospitalidade beneditina em nossas hospedarias, que, diz ele, “nós tanto apreciamos, como centros incomparáveis de irradiação”. E continua: “Hoje não é a carência do convívio social que impele o homem ao mosteiro, mas a exuberância. A excitação, o ambiente tumultuoso e febricitante, a exterioridade, a multidão ameaçam a interioridade do homem: falta-lhe o silêncio com a sua genuína palavra interior, falta-lhe a ordem, falta-lhe a oração, falta-lhe a paz, falta-lhe ele mesmo. Para reaver domínio e gozo espiritual, esse homem moderno tem necessidade de se reencontrar de novo no claustro beneditino”, que o acolherá como hóspede, como visitante ou como candidato á vida monástica.
Me. Martha Lúcia Ribeiro Teixeira, OSB
é Abadessa do Mosteiro Nossa Senhora da Paz,
em Itapecerica da Serra, SP.