VISITA AO MOSTEIRO ETÍOPE
DE SÃO GABRA MANFAS QEDDUS, EM ZEQWALA

P. Sabino Chialà

Montanhas verdejantes, planaltos com cores vivas e variadas, grandes rios e lagos, vulcões extintos com uma impressionante geometria... é o que continua perpassando ante meus olhos ao regressar de uma recente viagem à Etiópia, onde fui convidado a pregar um retiro sobre as “riquezas” da espiritualidade etíope para religiosos católicos há tempos estabelecidos naquele país. Foi para mim ocasião de um novo encontro com aquela terra tão rica, dentre outros, de testemunhos cristãos e monásticos. 

Uma Igreja venerável, fundada no século IV, quando o norte da Europa sequer recebera a Boa Nova do Evangelho; e uma experiência monástica que se desenvolveu ao lado de sua fonte “egípcia”, com seu gênio próprio, como também o demonstram as ricas coleções de apoftegmas que ela nos legou.

Mas, de tudo isso, o que resta ainda hoje? Somente os vestígios de uma Igreja primitiva e algo supersticiosa, com um clero mal formado, com características um tanto quanto arcaicas e, portanto, a ser estudada como um fóssil? Um monaquismo agonizante por falta de jovens, de estrutura sólida e de formação séria? São comentários que às vezes ouvimos até da boca de quem teve a oportunidade de conhecer pessoalmente este mundo particular que é a Etiópia, mas talvez sem a humildade de se dispor a escutar aquilo que forçosamente ultrapassa nossos esquemas e parâmetros de avaliação. E não se trata apenas de louvar a fidelidade incansável desses cristãos que resistiram às terríveis tempestades cuja própria história os fez atravessar – elogio máximo, carregado de emoção, que podemos ouvir da boca dos mais benevolentes. Vendo com outros olhos, podemos, com efeito, descobrir uma realidade diversa... É um fragmento dessa “outra” percepção que eu gostaria de partilhar nestas linhas: uma visita ao mosteiro de São Gabra Manfas Qeddus, em Zeqwala, não muito longe de Addis Abeba.

Durante o retiro nós nos havíamos debruçado sobre o ensinamento espiritual que está na base da experiência monástica etíope, a obra intitulada Masahefta Manakosat (Os livros dos monges), que para eles faz as vezes de regra e de filocalia, e se compõe de uma antologia de três autores siríacos: Isaac de Nínive, João de Dalyatha (conhecido pelo nome de Aragawi Manfasawi, isto é, “o Ancião espiritual”) e Dadisho’ Qatraya (chamado Filoxeno de Mabboug). Através desses autores, entramos em um mundo fascinante, mas que às vezes nos parecia um tanto quanto longínquo em suas formas. Nós, ocidentais, estávamos falando dos “orientais” cercados de “Oriente”... Portanto, que haveria de melhor senão escaparmos desse magnífico oásis jesuíta de Dabre Zeit, onde estávamos hospedados, para ir “ver” este Oriente que nos estava fascinando e verificar se tudo aquilo ainda existia ou era apenas fruto de nosso romantismo estudantil? Os organizadores de nossa estadia, europeus que vivem há muitos anos na Etiópia, pessoas de visão aberta e atenta, profundos conhecedores desse Outro que estava ali, ao nosso lado, já haviam previsto aquela excursão para o último dia.

O destino era bastante próximo, cerca de 45 km de nossa casa, no cimo de um vulcão extinto de tipo “stromboliano”, isto é, de uma conicidade quase perfeita. Eu sabia que os caminhos da África não eram necessariamente auto-estradas, mas nunca tinha visto uma condução grimpar por uma senda que nada mais era senão a sucessão de um degrau após o outro! Levamos três horas para percorrermos nossos 45 km até chegarmos ao mosteiro. Ele está situado no topo de um vulcão em cujo centro se acha um lago coberto por uma mata luxuriante. As celas dos monges estão nas encostas; os espaços são delimitados por uma cerca com ramos entrelaçados e, no meio, uma pequena casa com várias salas, das quais uma para o trabalho e outra para a oração.

Os monges vivem aqui um ao lado do outro, conforme o antigo sistema anacorético; passam a semana em solidão, mas a celebração eucarística dominical os reúne na igreja central: eis-nos aqui diante desse monaquismo oriental sobre o qual havíamos falado. À nossa frente está a igreja, célebre local de peregrinação por causa do santo fundador desse mosteiro, Gabra Manfas Qeddus (Servidor do Espírito Santo), que viveu entre os séculos XIV e XV. Está situada no meio de um pátio considerado como espaço sagrado, ele próprio lugar de oração, mas a céu aberto. Eis aí um dos elementos mais tocantes da Etiópia: este senso, não do “sagrado-mágico”, mas da “presença de Deus”, da tenda de Deus no meio dos homens, cujo sinal é a igreja, do qual nos aproximamos lentamente... É impressionante ver, por vezes, pessoas rezando durante horas e com uma intensidade extrema, mesmo a algumas centenas de metros da igreja: a Presença está ali, cada um se aproxima dela com o ritmo que lhe é próprio...

Logo ao entrarmos no pátio, um monge se aproximou para dar as boas-vindas: nós nos apresentamos e pedimos para ver a igreja, que estava fechada. Infelizmente, não foi possível: a celebração da eucaristia havia terminado naquele instante e os anjos ainda estavam lá... não deveríamos incomodá-los em suas últimas orações. Podíamos começar a juntar elementos para “justificar” a superstição da qual esta Igreja está penetrada... ou tentar humildemente entrar num outro mundo: a escolha estava ali, à nossa frente! Decidimos entrar... e um monge já estava a postos para nos conduzir naquele périplo físico e, ao mesmo tempo, espiritual: passamos por entre as casas dos monges até chegarmos a uma outra igreja, dedicada à Virgem, ou, mais exatamente, a Kidana Mehret, uma invocação mariana tipicamente etíope. E aqui surge a pergunta – bem ocidental – que aflora quase instintivamente aos nossos lábios: quantos vocês são aqui? Fizemos essa pergunta não para verificar a exatidão do axioma acima referido, segundo o qual o monaquismo etíope estaria agonizando: já havíamos ultrapassado esses questionamentos. Queríamos simplesmente saber os números para poder responder quando fôssemos interrogados acerca do que “vimos”. Nosso guia não nos decepcionou: em torno de duzentos e cinqüenta monges e cem monjas. Não davam a impressão de estarem morrendo!

Trata-se, por conseguinte, de um “mosteiro duplo”, com homens e mulheres que trabalham lado a lado. Foi-nos explicado que cada uma das duas comunidades cuida da própria subsistência: os monges trabalham sobretudo nos campos e as monjas fazem tecidos. Há uma certa cooperação entre os membros de ambas as comunidades, mas – como foi sublinhado diversas vezes – sem que o objetivo essencial, a saber, que cada um trabalhe para a própria subsistência, seja afetado. Isso supõe, entretanto, uma certa organização... Não a pudemos ver, mas a realidade mostra – contra uma outra idéia pré-concebida – que ela deve de fato existir, mesmo sendo de uma maneira diferente da nossa.

Ao lado da igreja de Kidana Mehret, nosso guia mostra uma pequena porta que conduz a uma área ainda mais afastada: ela abriga um pequeno grupo de monges que vivem por turnos uma experiência mais intensa de oração e jejum, como um coração orante no centro da comunidade. Um outro aspecto desse monaquismo que estamos descobrindo é a variedade dentro de uma mesma comunidade: para responder a esse gênero de chamados, eles não sentem necessidade de fundar uma congregação cujo carisma seria o de uma vida mais solitária, e, com certeza, isso não é por falta de organização.

Descemos então ao centro do vulcão, onde se conta que Gabra Manfas Qeddus permanecia em oração com o corpo dentro d’água (não posso deixar de pensar em São Bruno no seu pequeno lago nas serras da Calábria).

O périplo já ia chegando ao fim quando um de nossos guias, um jovem monge chamado Walda Yohannes, quis ainda fazer alguma coisa por nós, percebíamos em seus olhos. Convidou-nos para ir a sua cela. Não nos atreveríamos sequer a pensar nisso. Eis diante de nós, bem vivo, um outro fragmento desse monaquismo oriental: a hospitalidade sagrada! Entramos na parte principal da cela e nosso hospedeiro nos ofereceu, para comer e beber, seu pão preto com pimenta e chá. Estávamos em família e continuamos a falar de nossas experiências monásticas recíprocas. Mas, enquanto estava comendo, meu olhar se fixou numa porta fechada pela metade que dava para a parte da cela consagrada à oração (eles ainda conservam o sistema dos anacoretas egípcios do século IV!). Hesitei muito antes de ousar fazer a pergunta... finalmente ousei: seria possível entrar naquele coração sagrado da cela? Vi então no semblante de nosso hospedeiro um processo complicado e rápido que não poderia nem descrever nem esquecer: um “não” que, de imediato, se transformou em “sim”; um não ditado por uma “regra”, mas que logo passou para um sim procedente de um “encontro”: é a oikonomia oriental! Ficamos descalços, o monge Walda Yohannes colocou em seus ombros o manto amarelo da oração e entramos naquele espaço simples e rico ao mesmo tempo, para ali descobrir o que ainda nos faltava para apagar um outro clichê afirmando que o monaquismo etíope seria “analfabeto”: diante de imagens sagradas ocidentais, que preferi fechar os olhos, havia uma pequena biblioteca (em grande parte manuscrita!), com textos bíblicos, litúrgicos, patrísticos e hagiográficos. Meu hospedeiro, compreendendo meu interesse, começou a mostrá-los com entusiasmo, fazendo-me adivinhar que ele passa uma parte considerável de seu dia debruçado sobre aquelas páginas. De repente, vejo no meio daqueles poucos livros nosso Isaac (ele mesmo!). Finjo não conhecê-lo e procuro saber mais sobre a importância que este autor pode ter para um monge. Ele me olhou com um outro sorriso que não poderei esquecer; um sorriso no qual transparecia uma certa comiseração para com o monge que se considera como tal sem ter lido Isaac: no entanto, eles existem! Nosso hospedeiro é pobre, diz-nos que ainda não pôde comprar o livro de Aragawi Manfasawi, um os outros pilares da espiritualidade monástica oriental, mas que está trabalhando para ganhar o dinheiro necessário: ele esculpe em madeira para fazer cruzes de bênção.

Nossa jornada chegou ao fim e regressamos à planície. As poucas horas passadas no cimo daquele vulcão não foram suficientes para conhecer, mas talvez nos ajudaram a perceber outra coisa sobre o monaquismo e a Igreja etíope... Outra coisa além do que, às vezes, julgamos saber.

P. Sabino Chialà é monge do mosteiro de Bose (Itália).

Traduzido do francês por D. Matias Fonseca de Medeiros, OSB.