Algumas notas sobre a experiência da formação

Dom Patrick Olive, OCSO

chapitregeneralNão se deve esperar encontrar nesta apresentação nada de novo em relação ao que já disse por escrito ou oralmente cinco ou dez anos atrás, dado que, no domínio da formação, minhas profundas convicções não mudaram. Deste modo, encontrar-se-ão aqui, consequentemente, especificações ou nuances relativas ao passado. O aspecto aparentemente impessoal destas reflexões não iludirá ninguém: elas nasceram de uma longa prática e da experiência feita na realidade [1], mas obviamente não têm a pretensão de ser exaustivas.

Uma suficiente clareza sobre a visão e os princípios a transmitir estão na base de uma formação verdadeira. Uma comunidade deve saber o que é e o que quer para ser verdadeiramente formadora. Essa clareza deve primeiro se exprimir na prática. É importante que todos adiram sinceramente àquilo que exprimem nossos textos fundacionais e suas atualizações para nosso tempo, tal como a Igreja no-los dá. Cuidado com os irmãos que «generosamente» se comprometem para que os outros tenham tempo para serem verdadeiros contemplativos! O senso de prioridade é indispensável: sua ordem precisa ser verificada e regularmente restaurada. Sob estas condições, os irmãos desenvolverão uma capacidade para o julgamento que distingue as pessoas de seus pontos de vista, os dados objetivos de sentimentos, e que podem separar o verdadeiro do falso sem ferir ninguém. Assim, a comunidade é finalmente restituída à fé livre e dinâmica. Dinâmica, porquanto livre dos falsos questionamentos que obscurecem a comunhão e a transmissão; livre, dado que essas energias estão intactas para afrontar os questionamentos de hoje. Assim, aqueles que entram podem encontrar apoio para carregar suas fraquezas e força para viver uma experiência construtiva.

Parece-me necessário insistir no fato de que, para assegurar uma formação de qualidade, precisamos contar com um grupo de formadores. Certamente, (como declaram nossas Constituições e a ratio institutionis [2]), importa que o abade e o mestre de noviços não apenas trabalhem juntos, mas, acima de tudo, trabalhem na mesma direção. Quero dizer, que eles tenham clareza sobre a finalidade da formação em um nível «teórico» (acordo objetivo sobre aquilo que declaram nossos documentos fundamentais), mas também em um nível prático: no modo de viver a vida hic et nunc [3] segundo dessas orientações fundamentais. Com efeito, no domínio da formação, as ações contam tanto quanto (e, às vezes, mais que) as palavras; é no dia a dia que os jovens irmãos recebem, em um mesmo movimento, tanto a meta a ser buscada quanto os meios concretos para alcançá-la. Se não houver harmonia nesses pontos entre os formadores, o trabalho será estéril e mesmo contraprodutivo. Mas, essa unidade de pensamento e ação deve se estender a todos os que participam da formação, professores, vice-mestres, responsáveis pelos trabalhos ..., a fim de criar uma estrutura na qual os irmãos serão capazes de crescer de modo coerente. Não é aqui uma questão de algum tipo de uniformidade exterior que evite o desenvolvimento ou manifestação das personalidades, mas um tipo de consciência comum que, ao contrário, dá uma grande liberdade de expressão tanto aos responsáveis pela formação como aos que são formados, pois os riscos do individualismo e da divisão são consideravelmente minimizados. Isto requer, da parte dos formadores, uma capacidade real de adaptação, uma qualidade flexível que não se pode, certamente, confundir com fraqueza, mas que é a condição para relações equilibradas e construtivas. Evidentemente, deve-se esperar dos formadores que sejam capazes de refletir juntos para avaliar com lucidez seu trabalho.

Para ser eficiente, a formação deve ser global, isto é, ser capaz de açambarcar todos os aspectos da vida em uma perspectiva unificadora:

A formação espiritual é, certamente, a realidade mais delicada a se assumir e é, principalmente, no contato com um «ancião» que ela pode ser feita de modo útil, pois a experiência espiritual [4] é transmitida principalmente de modo pessoal e vivencial. Deve-se evitar a crença de que, ao receber os princípios teóricos da vida espiritual, já se fez o bastante e que isto é suficiente para deixar cada irmão trilhar seu caminho sozinho. O desencorajamento chega rápido e a experiência demonstra que os irmãos precisam ser regularmente reenergizados. Além disto, deve-se ter cuidado em não permitir que práticas mais ou menos marginais se enraízem a pretexto de fervor. Neste aspecto, é mais seguro prevenir, pois a recuperação é frequentemente muito difícil, se não impossível, quando certos comportamentos já estão instalados.

A formação intelectual requer uma integração íntima com o resto da formação de  modo a evitar torná-la um domínio isolado, desconectado da vida real. Não é fácil por em prática a harmonia, mas, se não se tenta, corre-se o risco de ter os pretensos «intelectuais» que utilizam sua «ciência» para evadir-se, particularmente, da vida comum, que estão sempre prontos a percorrer mil quilômetros para falar de clausura! A qualidade da formação intelectual permite que se confrontem os questionamentos sem ser desestabilizados ou turbados; evita também deixar-se impressionar por modas que passam, ao distinguir o acessório do essencial.

A formação humana é mais necessária e, sem dúvida, mais delicada hoje do que no passado. Os jovens irmãos são mais marcados pela estrutura (ou pior ainda, pela falta de estrutura) de suas vidas fora do mosteiro; as personalidades são pouco estruturadas, frequentemente por causa de uma vida familiar caótica. Demanda-se da comunidade coisas que ela não está preparada para ofertar e que podem extrapolar suas capacidades. O discernimento é, muitas vezes, longo e é-se tentado tanto a renunciar à recepção de pessoas deste tipo (mas, então, quem entraria?) quanto a buscar um médico. A via média é, por vezes, pesada para se assumir, mas é a única possível.

A formação profissional não deve ser jamais negligenciada, pois é no trabalho que muitos elementos constitutivos da vida dos irmãos são verificados: atenção aos outros, paciência, senso de responsabilidade; percebe-se claramente o quanto o amor fraterno é um discurso ou uma realidade. Ao dar aos irmãos os meios para adquirir uma verdadeira competência técnica em uma área ou outra, assiste-se ao nascimento de um equilíbrio sólido geral da personalidade.

A vida hodierna apresenta-nos questões que não são de fácil identificação e cujas respostas não são evidentes. Antes de tudo, deve-se evitar «errar a guerra» e compreender que as questões de hoje – e, consequentemente, o modo de respondê-las – não são aquelas de vinte ou quarenta anos atrás. Deve-se evitar exercitar os jovens irmãos em combates que não são os deles e com os quais eles nada têm a ver. Uma análise da situação requer muito cuidado e atenção às nuances, mas é indispensável ao confronto de questões que nos serão propostas. Como exemplo, proporei aqui três pontos:

A fragilidade da juventude de hoje. De modo paradoxal, direi primeiro que isto é, talvez, menos importante do que frequentemente se afirma. Confrontados com situações com as quais nossas gerações não o foram, penso que eles não reagem tão mal. Diz-se que eles são imaturos, mas eles também são melhor informados, mais abertos a realidades diferentes e mais lúcidos quanto à fraqueza de seu tempo do que nós fomos antes deles. Entretanto, permanece verdade que as condições – particularmente, as familiares – com as quais certo número deles são confrontados tocam diretamente alguns dos principais requisitos para nossa forma de vida: o papel do pai [5], o equilíbrio de sentimentos, o lugar da sexualidade, o gerenciamento de conflitos, etc... Precisamos estar conscientes destes obstáculos, sem enfatizá-los excessivamente. Não podemos brincar de pais substitutos, nem, muito menos, de «parceiros»; deve-se mensurar até que ponto se ponte aceitar seus limites, ser capaz de administrar certa gradação na evolução de suas atitudes e não nos deixarmos impressionar a ponto de recuarmos quanto aos verdadeiros requesitos de nossa forma de vida; a juventude, mesmo ferida, nada lucra com uma vida reduzida que, em lugar de lhes ajudar a progredir, conserva-os em suas fraquezas.

O uso das mídias contemporâneas obriga-nos a fazer uma reflexão séria e escolhas delicadas. Aqui, a formação está diretamente implicada. O aspecto imediatamente acessível do universo virtual está em oposição direta a nosso modo de vida que supõe um uso paciente do tempo e um sentido de realidade, barreira contra as ilusões. Entretanto, acima de tudo, não é por medo de perigos no uso desses meios que devemos reagir, mas pela escolha positiva de valores frágeis que supõem uma distancia em relação àquilo com o qual eles competem e que os podem dissolver. Precisamos mensurar o que perdemos e o que ganhamos na utilização dessas mídias e tirar as conclusões práticas que se impõem. Algumas são óbvias, outras mais matizadas. Contudo, não se pode deixar de levantar esses questionamentos sem maiores riscos. Deve-se também notar que, muito frequentemente, os recém-chegados não se surpreendem ante nossa reserva a esse respeito; o contrário é que os surpreenderia, dado que eles não têm certas ilusões relativas a esta questão que são próprias de gerações mais antigas.

As diferenças de gerações, de origens e de cultura demandam uma atenção particular hoje, visto que os entrosamentos entre as pessoas são mais numerosos e mais frequentes que no passado. É bom que elas existam em uma sociedade que tende a endurecer as diferenças e as oposições. Obviamente, precisamos fazer algumas distinções:

- a diferença de gerações é um fato biológico ante o qual são inúmeras as ressonâncias na vida comunitária. Viver certa «sinfonia» de gerações não é evidente e requer uma reflexão específica para cada tipo de geração: os anciãos, para aceitarem seu estado; os mais jovens, para relativizar o seu próprio estado. Esta harmonia não nos é dada de antemão, mas deve ser buscada. Deve-se desconfiar – aqui e alhures – dos slogans fáceis: os mais velhos são incapazes de evoluir ou os jovens têm tanto a nos ensinar, etc... Parece-me que o verdadeiro desafio seja a transmissão, ao qual voltarei mais tarde;

- a diferença de origem ou de cultura não me parece que deva ser artificialmente enfatizada como uma barreira impossível de se transpor. Seja lá de onde eles vierem, os irmãos são homens, antes de tudo, que têm mais coisas em comum do que ao contrário. É necessário passar de uma percepção sentimental um do outro, ou principalmente sensitiva em alguma medida, a uma reflexão capaz de distanciamento para análise comportamental (primeiro de si próprio!); assim, podem-se relativizar muitas diferenças e fixar-se sobre uma base sólida e ampla. As diferenças, quando melhor alocadas em seus próprios lugares, são também melhor respeitadas e melhor integradas em um todo que se enriquece. Este é um passo decisivo em sua formação.

Um processo lúcido de formação necessariamente deve integrar a noção de fracasso e tentar tratá-lo tão positivamente quanto possível. Quaisquer que sejam nossos esforços e nossa boa vontade, nós nos depararemos inapelavelmente com o fracasso: erros de julgamento e discernimento, limites profundos demais para serem superados, uso do tempo, falhas imprevisíveis e resistências fortes demais à obra de Deus. Não devemos ficar nem surpreendidos nem desencorajados, muitos menos resignados. Somos servidores de um projeto que não é nosso e nunca tempos todas as cartas nas mãos. A liberdade humana é também para nós um mistério e o combate entre as trevas e a luz, uma realidade muitas vezes tangível. O tempo, finalmente, o mestre de todos nós, é um fator determinante aqui: ele revela sem piedade nossa aptidão para construir solidamente sobre base sólida ou para juntar coisas provisoriamente que se despedaçarão com o primeiro sopro de vento. O discernimento da capacidade de perseverança é delicado e nunca seguro; entretanto, sem esse trabalho, construímos sobre a areia. Por isto o trabalho do formador requer uma boa dose de humildade, de humor, de paciência e de otimismo. Sempre recomeçar – pois toda formação implica repetição – «sem se cansar ou ir embora» (RB 7,36 – 4º grau), deve ser a lei do formador. O fracasso coloca-o ante seus próprios limites – evitando-se a culpabilidade tanto quanto possível – e convida-o a rever seu modo de fazer as coisas para agir melhor no futuro. Deste modo, o formador é formado por seu próprio trabalho de formação.

Para finalizar, gostaria de enfatizar que a formação depende muito de nosso relacionamento com a memória e com sua transmissão. Nossa época mantém um relacionamento ambíguo com seu passado: nós o adulamos ou o desprezamos, mas raramente somos lúcidos sobre ele: precisamente porque é visto primeiramente como «passado» e não como um elemento de transmissão da memória. A ruptura da memória, para uma pessoa ou um grupo, é algo dramático que leva à completa desorientação, à angústia e à falta de esperança. Analogicamente, o grupo que é afetado pela mesma doença tem dificuldade de localizar seus pontos de referência, de fazer comparações, de se reconhecer mais herdeiro que criador ou, mais precisamente, criador porque herdeiro. Uma das faltas mais marcantes nos jovens irmãos que se apresentam é precisamente esta: eles não sabem o que são porque não sabem de onde veem – as manipulações de hoje dão ao problema um caráter físico que causa tremor. Por conseguinte, é de primeira importância que eles encontrem pessoas que sejam – ao menos o mais possível – claras sobre essas questões e comunidades que vivam um relacionamento equilibrado com suas memórias. Se este for o caso, uma espécie de osmose acontecerá mediante a qual o irmão jovem se apropriará da memória comum e se tornará, em consequência, «transmissor de memória», enriquecendo-a com sua própria experiência. Se não for este o caso, produziremos pessoas nostálgicas e desorientadas. Parece-me que esta seja uma dos maiores questões hoje: ao procurar nossa própria maneira de confrontá-la, colocamo-nos no coração da Igreja que vive no mesmo processo dinâmico.

Dom Patrick Olive, OCSO, é Abade da Abadia de Notre Dame de Sept-Fons (França).

Traduzido do inglês por Irmão Tomás de Aquino Santos Nonato (Oblato Secular da Arquiabadia de São Sebastião, Salvador, BA).

[1] O mesmo para o imperativo (deve-se, tem-se, precisa-se, etc...) que é uma facilidade de estilo e deve ser entendido com sentido optativo.
[2] N. do. T.: norma da instituição.
[3] N. do. T.: aqui e agora.
[4] Por ela compreendo os meios concretos de busca de Deus e de perseverar nessa busca.
[5] Não está claro se viver «sem um pai» – que é o caso das gerações atuais – é mais difícil do que «viver contra o pai» – que é o caso das gerações precedentes!