O diálogo islâmico-cristão: o desafio e a promessa
Dom Timothy Kelly, OSB
Dom Abade Timothy proferiu a seguinte palestra durante um encontro de monges católicos com mulçumanos xiitas iranianos que teve lugar na Abadia Primacial de Santo Anselmo em Roma, de 14 a 17 de setembro de 2011.
Estas Conferências Monástico-Xiitas, da qual esta é a quarta, começaram quando eu era Abade de Ampleforth. Um de nossos párocos em Lancashire[1] perguntou-me se poderia levar seu amigo mulçumano, Mohammad Ali Shomali, à Abadia. Encontramo-nos, tornamo-nos amigos e eu lhe pedi que falasse aos monges sobre a espiritualidade xiita. Ele abriu os olhos de muitos naquela palestra. Em contrapartida, ele me convidou para visitá-lo em Qum, Irã.
Lá, no Instituto Ayatollah Khomeini para Educação e Pesquisa, fui calorosamente recebido e convidado a dar palestras e dialogar. Durante a visita, conversamos sobre a realização de uma conferência em Ampleforth. Essa reunião teve lugar em 2003, com a alvissareira participação do Heythrop College da London University. Eles promoveram um «dia aberto» seguido por uma conferência de três dias em Ampleforth. Os artigos dessa conferência e das duas outras que se seguiram em 2005 e 2007 foram publicados pela Melisende sob os títulos «Catholics and Shi’a in Dialogue», «A Catholic-Shi’a Engagement», e «A Catholic-Shi’a Dialogue»[2]. Os livros foram recentemente republicados e, felizmente, estão agora disponíveis em formato de brochura.
Neste ano, graças ao apoio de Dom Abade Primaz Notker Wolf e de Dom William Skudlarek, Secretário Geral do Diálogo Inter-religioso Monástico, foi-nos possível realizar esta conferência em Santo Anselmo, este centro de estudos monásticos aqui de Roma. Esta noite de abertura oportuniza-nos encontrá-los, nossos convidados de honra, e permite que os senhores encontrem os participantes e experimentem algo da amizade que construímos.
A espiritualidade mulçumana é mais intimamente relacionada à espiritualidade monástica do que a qualquer outra tradição espiritual católica. Ambas confessam Um Deus, Revelado na Palavra, cuja obra criadora e dons misericordiosos reconhecemos na oração regular ao longo do dia como indivíduos e como uma comunidade. Além disto, lemos, meditamos, ruminamos e rezamos a Palavra Revelada que nos é dada como Escritura Inspirada.
Hoje à noite quero apresentar três aspectos deste diálogo: primeiro, um sonho de futuro; segundo, uma experiência a partir da qual possamos encontrar um caminho para a realização daquele sonho; terceiro, uma imagem de como poderíamos encontrar o caminho para sua realização.
Essa imagem é de fácil descrição: imaginem que os seguidores da Regra de São Bento e os seguidores do Profeta são como dois grupos de alpinistas que escalam a mesma montanha, a Montanha de Deus, mas por lados diferentes!
Durante minhas viagens, nas quais examinei como os seguidores da Regra de Bento no mundo inteiro estavam envolvidos em diálogo com mulçumanos, a pedido de Dom Abade Primaz, pude visitar muitas comunidades masculinas e femininas, beneditinas e cistercienses, em terras mulçumanas, bem como comunidades monásticas que vivem lado a lado de comunidades mulçumanas em outras regiões. No Natal passado, consegui alcançar um objetivo: realizar uma Lectio Divina com monges e imãs mulçumanos. Todos os que participamos avaliamos aquele momento como muito enriquecedor.
Ao mesmo tempo, graças aos auspícios do reitor do Beda College aqui em Roma, pude realizar meus estudos doutorais na University of Trinity St David, conhecida anteriormente como Lampeter University no País de Gales. Assim, o título de minha tese é «Um conceito ampliado de tradição pode ser o fundamento de um novo estilo de comunidade beneditina dedicada ao diálogo com o Islã?». Depois de cinco anos de visitas, estudos e pesquisa, o título desta palestra, «Diálogo Beneditino-Mulçumano: o desafio e a promessa» é, certamente, um desafio. A promessa embutida nele ainda é incerta. Dois anos atrás, um questionário enviado a todas as comunidades beneditinas, mediante o auxílio gentil do Abade Primaz, ao menos para mim, produziu um resultado desapontador. A partir das setenta comunidades que responderam ao questionário, ficou claro que o diálogo com o Islã é uma prioridade baixa. Poucas comunidades têm alguém qualificado em Islamismo e o diálogo está focado em amizade e cooperação em questões práticas, mas raramente chega à «espiritualidade». Em certa medida, isto é compreensível: os mosteiros existem para suas comunidades cristãs locais e, em muitas partes do mundo, as comunidades se tornaram menores e as vocações diminuíram.
Mas, voltemos à montanha. O Deus Uno, Criador, Onipotente e Misericordioso é confessado por mulçumanos e monges. Cada um escala essa Montanha de Deus usando uma trilha diferente, enfrentando desafios diferentes, ao tempo em que mantemos contato uns com os outros como amigos, como «coalpinistas», profundamente respeitosos uns dos outros e partilhando a mesma meta: uma intimidade cada vez maior com Deus cuja Palavra chama cada um a escalar a montanha. Uma Palavra diversa, uma visão diversa sobre a Montanha e a partir da montanha, mas a mesma firme convicção de que o convite da Voz de Deus aponta para um estado muito mais gratificante que aquele com o qual cada um escala essa montanha. Lá reside tanto a promessa que inspira «os alpinistas» quanto o desafio que requer um comprometimento corajoso.
Alguns dos senhores assistiram «Homens e Deuses», o premiado filme sobre os monges trapistas de Tibhirine, Argélia, lançado ano passado. A certa altura no filme, o Prior, Dom Christian de Chergé, diz: «Flores selvagens são plantadas em qualquer lugar: apenas Deus pode fazê-las crescer!». Esta afirmação levou-me a refletir sobre o significado da existência de um mosteiro católico no coração de um país mulçumano, no ambiente hostil do semiárido, na terra-de-ninguém da guerra civil argelina. Por que lá? O mundo mulçumano tem muitos outros lugares que são pacíficos. O Ocidente tem comunidades mulçumanas com as quais os monges poderiam dialogar.
Mas, como mostra o filme, naquele ambiente hostil os monges ofereciam a certeza da amizade, o auxílio médico que muitos necessitavam, a ajuda econômica promovida por suas habilidades no comércio de produtos agrícolas, tudo isto apoiado por uma união na fé em um Deus que cuida, é acessível pela oração e para o qual a amizade e a hospitalidade são sinais da Presença Divina. Nesse contexto, os monges são verdadeiramente como «flores selvagens», mas a amizade e o respeito que a comunidade mulçumana local demonstrava para com eles era um sinal de que Deus fazia aquelas flores crescerem.
Mais tarde, no filme, há uma cena que mostra Dom Prior Christian e dois monges encontrando-se com líderes comunitários de Tibhirine, pedindo sua opinião sobre se deveria partir ou ficar. As autoridades argelinas queriam que eles partissem para que não fossem incluídos na lista de cristãos assassinados. «Somos como pássaros em um galho», disse um deles, «sem saber se deveríamos voar ou ficar». Com simplicidade estonteante, a esposa do líder comunitário de Tibhirine replicou: «Não, nós é que somos os pássaros, vocês são o galho. Se partirem, que será de nós, então?».
Esse diálogo evidenciou sobremaneira a importância particular daquela comunidade monástica para aquela comunidade mulçumana. Os monges viviam e partilhavam a vida simples deles, rezavam orações repetitivas similares e lhes ofereciam toda a ajuda que podiam. Eles não eram grandes benfeitores que traziam um novo hospital ou uma escola. Um plano divino reuniu aqueles dois grupos que eram, da perspectiva divina, ambos profundamente comprometidos com o Deus amoroso, misericordioso e indulgente. Em seus espaços silenciosos respectivos, Deus é recordado na medida em que cada um se abre à presença divina revelada no próximo.
Mesmo vinculados por seu voto de estabilidade em Tibhirine, os monges não estavam certos se deveriam ficar ou partir, pelo menos até que a violência amainasse. Como Irmão Christophe colocara: «Não vim para o mosteiro para tomar parte em um suicídio coletivo». Contudo, nas palavras de uma mulher mulçumana – «se partirem, onde encontraremos repouso?» – os monges ouviram a voz de Deus a chamá-los a ser fiéis ao seu compromisso. O Divino Espírito dentro de seus corações clarificara a questão. Não poderia haver partida.
Para o povo de Tibhirine, o sequestro e subsequente morte dos monges foi um choque profundo. Seu modo de vida naquele ambiente semiárido tornou-se mais frágil, mas, acima de tudo mais, sua forte fé em Deus foi abalada. A Palavra revelada ao Profeta, palavras de conforto e amor, misericórdia e compaixão, tinha sido desfigurada: eles não mais podiam partilhar suas angustias com «seus» monges, aqueles cuja fé afirmava a sua própria. Eles perderam seu galho e com ele o apoio que ele lhes dava, em muitos níveis.
Atualmente, os pomares e campos de Tibhirine ainda produzem colheitas, as frutas são processadas e vendidas, mas os monges ainda estão por retornar.
Deixem-me voltar à «montanha». De seu cume, cada um de nós, mulçumano ou monge, ouve a Voz de Deus, mas há uma diferença importante no modo como ela é revelada. Para um a Palavra se torna «Encarnação», Deus, Palavra feita carne; para o outro, a Palavra se torna «Livro/Ilibração», Deus, Palavra feita discurso, falada em árabe e escrita no Santo Corão.
O modo de vida dos seguidores da Regra de Bento sustenta-se sobre quatro pilares: uma oração estruturada ao longo do dia; o encontro com Deus na Lectio Divina; o trabalho para prover seu sustento e o engajamento com sua comunidade local. Esses quatro pilares ressoam eloquentemente nos pontos essenciais da vida e espiritualidade mulçumanas. Aqui reside a importância singular de um diálogo beneditino com o Islã.
Podemos aprofundar a Palavra de Deus até o extremo: não pela pregação, mas pela partilha; não pelo ensino da Palavra, mas permitindo que a Palavra nos forme; não debatendo, mas ouvindo a inspiração que vem dos outros. Este é o dom que emerge do compromisso partilhado para com a Palavra de Deus revelada a cada um. A partilha daquilo que cada um compreende da Voz de Deus que se revela permite que contribuamos uns com os outros e aprendamos uns com os outros. Encontramo-nos não com altas vozes e frases inteligentes, mas com corações que se dilataram com o amor inspirado pela Palavra de Deus. Não esqueçamos o encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30). Ela lhe revelou uma verdade que ele não queria reconhecer. Ela forçou-o a derrubar um muro. Quando muros são removidos, um espaço é criado e, nesse espaço, é possível partilhar as intuições derivadas da meditação, ruminação e oração com esses textos sagrados, permitindo que cada um se enriqueça com o outro.
Christian de Chergé descobriu o dom do Islã de modo dramático. Durante seu serviço militar na Argélia, ele foi encarregado das «relações comunitárias». Ele se tornou amigo de um homem casado da comunidade local. Eles andavam juntos, conversavam, discutiam muitos assuntos e construíram uma amizade profunda. Certa feita, um homem armado surgiu dos arbustos e apontou uma arma para Christian. Seu amigo colocou-se entre eles e disse: «Este é um bom homem: não o machuque!». O agressor fugiu. Na manhã seguinte, o amigo de Christian foi encontrado morto. Christian enxergou na intervenção de seu amigo um ato do amor que se doa semelhante ao do Cristo. Ele nunca esqueceu que aquele marido e pai de cinco filhos oferecera sua vida pelo «outro». Isto confirmou a fé de Christian de que a palavra revelada do Islã é uma verdadeira palavra de Amor. Desta descoberta, cada um pode ser encorajado a partilhar a Palavra de Amor com o outro e, mediante a escuta das descobertas dos outros, levar o Amor a ser engrandecido.
A necessidade de escutar uns aos outros direciona-nos para o diálogo regular, mas também para um relacionamento comunitário crescente com o outro, não apenas vendo o visitante mulçumano à porta como o Cristo, mas também escutando atentamente suas palavras, reconhecendo que também neles podemos ouvir a Palavra de Deus e aproximar cada vez mais essas duas revelações – Deus, Palavra feita homem e Deus, Palavra feita discurso.
Para compreender isto plenamente, recomendo as palavras do Arcebispo Dom Michael Louis Fitzgerald, MA[3], um gigante do diálogo com o Islã. Ele escreve que, em um diálogo efetivo, cada um tem que se afastar de sua posição de fé, submeter-se a uma kénosis semelhante àquela encontrada em «Cristo Jesus [que] ... esvaziou-se a si mesmo ... tomando a semelhança humana» (Fl 2,5-7). Ao não impor os modos de expressão de nossa fé, tornamo-nos mais capazes de apreciar os modos de expressão da fé do outro, como ela se articula em suas palavras, não através de nossos filtros. Esta experiência foi recentemente confirmada no Seminário «Construindo Pontes» sobre o tema da oração, organizado pelo Arcebispo Rowan Williams[4], outro gigante do diálogo mulçumano-cristão.
O dom paradoxal de Tibhirine foi que os assassinos atingiram algo que ninguém mais poderia. Ao pensar que purificavam a nova Argélia de influências exteriores, aos olhos do público, eles enalteceram as novas dimensões que aquela pequenina comunidade monástica trouxera para a vida da comunidade local, simplesmente por serem homens de Deus. Eles mostraram como a Regra de Bento pode ser adaptada para esse diálogo de espiritualidade com o Islã. Seu exemplo oferece a monges e monjas, beneditinos e cistercienses, uma nova dimensão de sua vocação pré-existente para o diálogo. Eu o chamarei de diálogo da espiritualidade monástica com o Islã. Sim, uma nova dimensão de sua vocação, mas também uma nova dimensão para a qual apenas eles estão qualificados. Aqui reside o desafio; aqui reside a promessa.
Se os monges falharem em responder, certamente a «escalada» será mais difícil. A montanha de Deus revela a voz de Deus a todos os alpinistas. Aqueles que escalam essa montanha não podem se permitir fechar os ouvidos, não apenas pelo risco de cair da montanha, mas também por arriscar as vidas de outros ao fracassar na oferta de encorajamento apropriado. A promessa é atraente, mas também encerra um risco. Não obstante a recusa possa parecer a solução mais fácil, o risco de longo prazo que ela conserva retornará para assombrar nossos sucessores.
Rezemos para que o mundo monástico masculino e feminino, beneditino e cisterciense, seja inspirado a aceitar este desafio e a recolher as ricas recompensas que ele trará. A melhor vista do cume é reservada para aqueles que se disponham a aceitar o risco.
Dom Timothy Wright, OSB, atualmente, é diretor espiritual do Beda College, em Roma, e delegado do Abade Primaz para as relações mulçumano-monásticas. É Abade Titular de Westminster e Abade emérito da Abadia de Ampleforth, Inglaterra (1997 a 2005), período no qual Mohammad Ali Shomali organizou uma série de diálogos entre alguns monges e teólogos católicos e mulçumanos xiitas iranianos.
Traduzido do inglês por Irmão Tomás de Aquino Santos Nonato, Obl. OSB (Oblato secular da Arquiabadia de São Sebastião da Bahia).
[1] N. do. T.: Condado a noroeste da Inglaterra.
[2] N. do. T.: Os títulos «Católicos e Xiitas em Diálogo», «Um Relacionamento Católico-Xiita» e «Um Diálogo Católico-Xiita» não estão disponíveis em vernáculo.
[3] N. do T.: Ex-Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, é membro da Sociedade dos Missionários da África (Padres Brancos), Arcebispo Titular de Nepte, Núncio Apostólico na República Árabe do Egito e Delegado Papal junto à Liga de Estados Árabes.
[4] N. do. T.: Atual Arcebispo de Cantuária, Primaz da Inglaterra (Igreja Anglicana) e líder espiritual da Comunhão Anglicana Mundial.