Professor Italo de Sandre

 

 

Desafios para os cristãos e para os consagrados

num mundo agitado1

 

«O Senhor disse: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo no Egito. Ouvi o seu grito diante dos seus opressores; sim, eu conheço as suas angústias”.» (Êxodo 3, 7)

 

1.Ver e ouvir para conhecer: os cristãos deviam saber que aí estão os primeiros passos de toda a obra de misericórdia e que, mutatis mutandis, é também o que se encontra no coração do trabalho das ciências sociais. Um primeiro problema, uma questão nem sempre resolvida na Igreja de hoje, estar verdadeiramente disponível e agindo para ver, escutar, conhecer a realidade da vida das pessoas e das sociedades, e não somente o que está bem e o que queremos que seja; e isto, sem ter medo de ser posto em questão. A observação sociológica não propõe uma ideologia da sociedade (como certos meios católicos, mesmo de primeiro plano, dizem ou deixam entender), mas procura contribuir para «ver» as coisas o melhor possível na sua complexidade, recorrendo a métodos fiáveis (repetíveis) e válidos (capazes de representar a realidade estudada) de modo transparente, submetido a um controle e às críticas. É neste espírito que, para dar um exemplo, nos anos 1990, os institutos religiosos masculinos e femininos do nordeste da Itália lançavam simultaneamente com o Observatório sócio-religioso da Conferência episcopal de Três Venécias, um «Observatório da vida consagrada», que publicou, entre outros, uma investigação sobre «Os jovens e a vida consagrada. Uma outra via», num volume coletivo. As representações que os jovens se faziam dos religiosos e dos padres eram já sem encanto, em tensão com os aspectos mais institucionais da vida dos consagrados, sobretudo dos padres («Eles têm a resposta antes que se lhe tenha posto as questões»). Mas mesmo este período de atenção e de abertura no mundo dos religiosos rapidamente é encerrado. Um outro exemplo. Recentemente, para preparar o congresso eclesial da Aquileia (nordeste de Itália), em 2012, os bispos das Três Venécias pediram ao Observatório sócio-religioso da Conferência episcopal das Três Venécias (OSReT)2 um importante e complexo inquérito sócio-religioso, cujos resultados, muito interessantes tanto quanto as críticas, foram apresentados e discutidos de modo comprometido por numerosos responsáveis da pastoral diocesana, mas os bispos não acharam bem publicá-lo numa obra, nem o levaram em consideração nas suas conclusões finais. Muitos católicos, bispos, religiosos, leigos estimam «saberem já» e que não tem mais necessidade de outras «complicações sociológicas». Nos nossos dias, pelo contrário, um papa como o cardeal Bergoglio quis que antes e entre as sessões do sínodo sobre o casamento e a família se escutasse todas as Igrejas e todos aqueles que quisessem contribuir com o seu próprio testemunho de vida. É uma decisão inédita, importante, mais talvez como método do que pelo seu conteúdo, que corresponde aos resultados produzidos. Quem sabe quando e quem quererá retomar esta decisão e dar assim todo o seu valor à experiência de fé e de vida que é feita na consciência dos fiéis. Complexidades das experiências que não se pode descartar sem fazer violência tanto às pessoas como à inteligência da realidade. Pessoalmente, estimo que mesmo as comunidades monásticas deveriam constituir, nos seus diversos países, pequenos grupos de investigadores e de monges, de monjas (ou, mais geralmente, de religiosos e religiosas) para conhecer e compreender a sua realidade em curso de mudança.

 

2. Desde há algum tempo, diversos estudos demonstraram que entre mãe/pai e filhos sobrevêm um importante desmoronamento intergeracional dos valores nos quais se crê (por exemplo: a verdade dos Evangelhos, Cristo) e práticas, sobretudo no domínio moral em geral, e em particular no da afetividade-sexualidade. A imagem da Igreja era já muito problemática por causa das suas mensagens de austeridade, e não é de se duvidar que a simpatia pessoal da qual é alvo o papa Francisco seja também devida como simpatia e uma confiança generalizada para com a Igreja-instituição. A religiosidade procura vias que impliquem uma presença reduzida da Igreja («um pouco de Igreja»), mas – no momento – não «sem Igreja». Observe-se a afluência a certos santuários ou lugares de culto particulares, frequentados não somente por pessoas inativas e pouco instruídas, segundo os velhos cânones da piedade popular, mas por pessoas ativas e instruídas que procuram uma via pessoal de relação de fé-confiança em meios diversamente acolhedores.

A atitude das mulheres não difere muito mais da dos homens. E mesmo, entre as mulheres, quanto mais aumenta o nível de instrução mais aumentam as tomadas de posição críticas para com o catolicismo e a Igreja. O que implica que a transmissão tradicional da fé pelas mulheres não pode mais ser considerada como garantida. A presença ativa, mais madura e mais crítica das mulheres, consagradas e leigas, exige uma reflexão dialógica e uma implicação profunda e comum. Do mesmo modo, o sentido tradicional do «serviço» deve ser inteligentemente revisitado em toda a sua amplitude, para mulheres e homens.

 

3. A centralidade do sujeito como indivíduo, pelo menos no Ocidente, conduziu as pessoas a sentirem-se e a pretenderem-se autônomas face-a-face com as instituições, sociais, civis e religiosas (mas não econômicas, o mercado incitando os consumidores de mil e uma formas). As tecnologias da comunicação fizeram explodir este fenômeno. O amadurecimento das pessoas opera-se através de um percurso mais longo e incerto, favorecido por um prolongamento dos percursos escolares, e tornado menos diretivo por numerosas ocasiões e infinitas aspirações tornadas possíveis. Cada vez mais, as vocações à vida consagrada emergem elas mesmas numa idade em que a pessoa já adquiriu uma personalidade madura, menos (ou mais dificilmente) diretamente adaptável ao estilo dos institutos em que ela entra, tornando mais complexa a identificação e a organização da vida comum. A unidade da vida pessoal, mesmo para um monge ou uma monja, não é assim tão simples, nem se encontra pela observação de papeis e de gestos.

Esta autonomia da pessoa, sentida e pretendida, colocou o corpo no centro. O corpo, não mais considerado como qualquer coisa de negativo, a esconder, desvalorizado em relação ao «espírito», está pelo contrário estreitamente ligado ao espírito-razão num sentido ativo e positivo. A sociedade de consumo atrai a fazer experiências, a experimentar os cinco sentidos nas ocasiões mais variadas. Assim, não se compra mais uma coisa somente para possui-la, para utilizá-la, mas quer-se poder viver com ela uma experiência emocional, física, individual ou com outras pessoas.

Os corpos-espíritos têm uma sexualidade e papeis de gênero que são transformadas em parte (e não é justo focar tudo sobre a homossexualidade, como fizeram recentemente na Itália ideologias opostas). As desigualdades tradicionais homem-mulher não são mais aceitas, em nenhum meio de vida como em sociedade. As discussões e confrontos (mesmo certas manifestações políticas de rua), que emergem no enquadramento do debate levantado pelo recente sínodo, mostraram que mesmo no seio da hierarquia e entre os «fiéis» católicos, existem diferenças por vezes radicais na maneira de pensar, de governar, de viver o seu corpo e o seu gênero. Corpos-gêneros que concernem também os consagrados, mulheres e homens, padres e religiosos, cuja escolha de uma vida virginal, celibatária não foi tematizada pelo sínodo (ou talvez não se quis fazê-lo). Dado que, na vida concreta, eles estão em interação com leigos homens e mulheres, cuja percepção do corpo e do gênero se constrói diferentemente, isto provoca problemas na elaboração das relações e da educação na Igreja e na sociedade. Nas relações entre institutos religiosos e sociedade, entre mulheres-homens consagrados e mulheres-homens leigos, o modo como cada um se exprime como pessoa abrange dimensões não-verbais e nas quais a corporeidade é em todo o caso central, como riqueza ou fraqueza na vida, na comunicação e no estar acompanhado, na ajuda dada e/ou a necessidade de ser ajudado.

 

4. Em toda a sociedade, os estilos de vida (maneiras de estar, de pensar, de crer, de agir, de ser em relação) tornam-se uma realidade central, constituem um medium fundamental de comunicação verbal e não-verbal dos valores pessoais através das práticas da vida. A importância dos estilos de vida provém da personalização daquilo em que se crê e do que se pensa na vida cotidiana. É preciso ter em conta o fato de que, na realidade atual, aqueles que que se dizem católicos adotam efetivamente entre eles estilos de vida extremamente diversificados, e mesmo opostos (de fato, um bom número dos que se dizem católicos não observam nem a moral social nem a moral ensinada pela Igreja em matéria afetiva e sexual; têm opções políticas diferentes, etc.). O que torna necessários, sobretudo no domínio religioso, um olhar realista e um discernimento dialógico sério sobre a vida cotidiana, a fim de se responsabilizar mutuamente e não somente de repreender «os outros», tendo bem em conta o fato de que o declínio crescente da religiosidade da Igreja se faz acompanhar de uma busca de sentido frequentemente confusa mas bem presente, em todo o caso entre os jovens. Certos teólogos definiram de modo simplista estes jovens como: «as primeiras gerações de descrentes», «pequenos ateus» em crescimento, o que levou involuntariamente um grande número deles, mesmo entre os padres e os religiosos, a dizer que nada mais há a fazer. Esta perspectiva não ilumina suficientemente o problema da existência de uma nova espiritualidade (não necessariamente anti-religiosa) que vale a pena viver e exprimir; uma espiritualidade a estudar, a compreender e com a qual é preciso dialogar. Um grande número de pessoas já deixaram a Igreja porque ela as ignorava neste percurso.

 

5. Quando me recordo das reflexões que fazíamos nos anos 1990, acho atual o convite paradoxal dirigido aos intitutos religiosos femininos e masculinos, não somente de «sair», como o papa Francisco os incita a fazer, mas também e mesmo em primeiro a abrir, de um modo apropriado mas concreto, não somente os «museus», mas também as portas dos espaços da sua vida cotidiana, para que um maior número conheça os estilos de vida, humana e cristã e não somente identitária, das comunidades consagradas (o back office, e não somente o front office; o interior da casa e não somente a fachada), que elas apreciem a humanidade, a proximidade. Proximidade também nessa transparência de que devem ser testemunhas. Proximidade igualmente entre institutos religiosos, entre mosteiros, entre comunidades que deveriam partilhar antes de tudo as suas experiências e o seu testemunho de vida, tanto contemplativa como ativa. Talvez haja aí formas de cooperação desejáveis, se não necessárias. Estas eram impensáveis no passado, devido a um cuidado de salvaguardar a identidade de cada instituto, que primava pelo testemunho da escolha da vida religiosa e monástica, se não e só da vida cristã (como não pode ser de outra forma em certas sociedades).

Esta necessidade é ainda reenforçada (pelo menos no Ocidente) pela diminuição ou a extinção das vocações, pelo envelhecimento e a redução numérica de muitas comunidades, que conduzem à retroação previsível da parábola do tempo para algumas comunidades ou famílias religiosas, e em todo o caso a uma vida reduzida no seu seio.

 

6. A propósito da Igreja em geral, pode-se retomar por um instante o tema aflorado do «serviço». Mais uma vez as palavras e os atos do Papa – que não raro são fortemente criticados – parecem hoje orientar-nos para um serviço verídico e efetivo mais do que um reforço da autoridade: vir concretamente em ajuda aos que são fracos, pobres, marginais, aos que conhecem o sofrimento e também àqueles que saíram de um quadro de vida «regular». «A autoridade», no sentido institucional, religioso, moral, é habitualmente compreendido como uma forma legítima do poder de ordenar, de obrigar os outros a fazer o que pessoalmente a autoridade estima como justo e bom de realizar, ações comuns e estruturas que funcionem exclusivamente de cima para baixo, por meio de ordens, regras, deveres. Na realidade, uma tal forma de poder não é a única; ela tem tendência a ser rígida e a não ser submissa com pouco ou nenhum controle. De um ponto de vista sociológico, parece que se recorre naturalmente ao expediente retórico que consiste em associar a priori a um tal modelo vertical o termo de «serviço», e que pode não ser percebido como tal pelos outros. De fato, nos nossos dias, a partir de todas as observações feitas até agora, uma tal legitimação é posta em causa, evidente na esfera civil, menos gritante mas também muito presente no mundo religioso, como as investigações o demonstraram. Ora, quando a autoridade não é nem reconhecida como legítima (e não usufrui mais do consentimento-confiança) nem apreciada, o que ela faz é interpretado e eventualmente acolhido com um outro olhar. O fato de ela «servir», de realizar atos e pronunciar palavras que «servem» a vida das pessoas e das comunidades, será de fato interpretado pelas pessoas interessadas. A autoridade deve ser reconhecida com uma nova frescura, numa relação que não é mais de alto para baixo, de comando-obediência, como no passado, mas numa relação de respeito e de não-humilhação, de escuta recíproca e de diálogo sobre as necessidades e as expectativas, as possibilidades e os limites. Entre o autoritarismo e a autoridade, é atual, por exemplo, a competência que será valorizada (os leigos conhecem bem domínios tanto ou mais «competentes» que os religiosos), a empatia, a convicção de que a capacidade de trabalhar e de caminhar em conjunto é uma riqueza. O serviço deveria ser melhor reconhecível como tal, dar razão da sua própria validade, sem o vestuário da não autenticidade.

 

7. Tudo o que dissemos até aqui subentende uma linha vermelha, uma maneira de pensar as coisas e as pessoas que é bom qualificar de «pensamento complexo». Ao longo do século XX as ciências cultivaram um sentido metódico, sistemático da complexidade do conhecimento e da vida, e chegou-se à maturidade neste domínio essencialmente no momento em que se procurou analisar com novos instrumentos precisamente as sociedades, as pessoas, o nosso mundo e o universo como sistema. O próprio papa Francisco – mesmo que numa linguagem teológica e pastoral – exprimiu-o implicitamente à sua maneira na sua primeira exortação apostólica, onde nos dá contínuos exemplos nos seus discursos pronunciados nos Estados Unidos, na África, na sua Laudato sí, nas suas exortações pós-sinodais, nas conferências de imprensa dialogadas que dá durante as suas viagens, e cada vez mais. Falar de complexidade significa não ser redutor, simplista, e não fazer resumos, do gênero do que apenas se retem aquilo que nos convem. Isto significa saber refletir sobre as implicações de toda a ação levada a cabo. Isto quer dizer: querer mostrar como a ordem e a desordem, o bem e o mal, o justo e o injusto são imbricados entre si; que é preciso saber olhar as coisas com realismo, e designar aquilo sobre o qual é preciso exercer um discernimento para poder de seguida projetar e fazer juntos algo de melhor; que saibamos reconhecer também os limites e os conflitos a fim de construir pontes. Compreender que o todo é mais do que as partes que o constituem, mas que – quando, por exemplo, se trata de pessoas, de famílias, de sociedades – paradoxalmente o todo é ainda menos do que a soma das suas partes, porque cada pessoa e cada família vale por si mesma, para lá dos valores do grupo em que inserem. Um todo (por exemplo, uma família, uma comunidade religiosa, uma Igreja) tem o seu próprio DNA, o seu próprio «código-fonte», que está também presente em cada uma das partes do todo (tal é a concepção cristã da pessoa). A complexidade atual das experiências religiosas é o fruto – como tentamos dizer – de mutações ligadas e de um enorme alcance: a centralidade absoluta: a) do sujeito, da autonomia das escolhas que formam as pessoas; b) das inovações tecnológicas para uso dos indivíduos como massas que têm também direta e indiretamente levado; c) à inédita mobilidade de milhares e milhares de pessoas, e logo; d) à existência simultânea de uma grande pluralidade de experiências e de instituições religiosas, e sempre mais submetidas à aceitação ou à recusa da parte dos indivíduos.

Se se preferir manter uma visão redutora, ter-se-à a impressão de estar em segurança, mas inevitavelmente se se fechará; não se escutará, mas também não se será escutado.

 

 

1. Intervenção no Capítulo Geral da Congregação Subiaco-Monte Cassino de setembro 2016. Italo de Sandre é professor de sociologia na universidade de Pádua. Ensina «sociologia e religião» na faculdade de teologia da Trivenécia e no Instituto de liturgia pastoral de Pádua. Faz parte do comitê científico do ORSeT, Observatório sócio-religioso da Trivenécia. Nos últimos anos, as suas investigações têm sido sobretudo orientadas pelos problemas fundamentais da ação social, em particular as implicações analíticas dos processos de solidariedade e de comunicação, e as transformações dos códigos simbólicos no enquadramento de um pluralismo cultural, moral e religioso crescente.

2. OSReT: Osservatorio Socio-Reliogioso Triveneto. Centro de investigação fundado em 1989 sob forma de associação entre as dioceses das Três Venécias, e órgão da Conferência episcopal. Cf.: https://www.osret.it/it/pagina.php/100. [Nota do editor]