P. Michael-Davide Semeraro, osb
Superior de Rhêmes Notre-Dame (Itália)
Charles de Foucauld,
profeta do nosso desafio monástico
A canonização próxima do Irmão Charles é uma oportunidade para voltar à fonte da experiência espiritual deste buscador de Deus. Pela sua forma única de viver o seguimento de Cristo, ele foi o profeta do Concílio Vaticano II, esse tempo de uma inteligência renovada do Evangelho. Na conclusão de sua última encíclica Fratelli tutti, o Papa Francisco escreve:
«Mas quero terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos os homens e mulheres. Refiro-me ao Beato Charles de Foucauld».
Embora o Irmão Charles seja referido no Ordo como «padre», parece-me poder dizer que, na realidade, ele foi e permaneceu sempre um monge e um monge cisterciense. No momento em que a experiência do Irmão Charles já estava bastante madura, uma carta escrita de Tamanrasset, em 26 de março de 1908, ao seu cunhado Raymond de Blic, mostra-o consciente da sua evolução e do desafio que ela representa para as suas escolhas futuras: «Permaneço um monge - monge em terra de missão - um monge missionário, não somente missionário»1.
Deste ponto de vista, podemos dizer que há um trabalho em curso para compreender melhor como a espiritualidade do Irmão Charles está enraizada na mais pura tradição monástica, entendida como este fluxo de água viva, este desejo de procurar Deus de acordo com o Evangelho que atravessa, em segredo, por vezes, a longa e complexa história. O Irmão Charles tem um apurado sentido da sua história pessoal, ligado não só ao tempo que passa, mas também aos lugares que percorre; ele observa assim nas suas meditações bíblicas: «Apliquemos este salmo a nós próprios: é a história da nossa alma. Deus tirou-nos do mundo com a sua própria mão»2. Como nota Raymond Pannikar, a vida de cada homem e mulher neste mundo não é apenas a sua biografia, mas também a sua geografia. Isto é especialmente verdade para o Irmão Charles, que escreveu de si mesmo a uma amiga, quase na mesma linha que Teresa de Lisieux, na sua autobiografia: «Monge, vivendo apenas para Deus, amando as almas com todo o ardor do meu coração em vista d’Ele»3.
O escritor Norman Manea recentemente afirmou que na realidade somos todos igualmente o fruto da nossa bibliografia, e isto vale também para o Irmão Charles e seu itinerário de leitor que se tornou escritor.
Quando Charles de Foucauld se converteu a Deus, sob a sábia orientação do Abade Huvelin, sentiu espontaneamente a necessidade de se tornar um religioso e o disse, com surpreendente clareza, em uma carta escrita da Trapa, em 14 de agosto de 1901, a seu amigo Henri de Castries:
«Assim que acreditei que havia um Deus, compreendi que não podia fazer outra coisa senão viver somente para Ele: a minha vocação religiosa data da mesma hora que minha fé»4.
Na lógica do Irmão Charles, é claro que se deve buscar a forma mais perfeita de vida religiosa e, de acordo com a sensibilidade espiritual da época e seu temperamento que o leva ao heroísmo, uma tal aspiração à radicalidade e à perfeição se identifica com a austeridade:
«Eu desejava ser um religioso, viver somente para Deus e fazer o que fosse mais perfeito, o que quer que isso fosse»5.
Um retiro em Solesmes, seguido por outro em Soligny, finalmente o levou ao mosteiro trapista: «Pareceu-me que nada me apresentava esta vida melhor do que a Trapa»6. As motivações são claras: «Buscar uma vida conforme à vossa, onde eu possa compartilhar completamente vossa abjeção, vossa pobreza, vosso humilde trabalho, vosso isolamento, vossa obscuridade»7.
No mosteiro, primeiro em Notre-Dame des Neiges, depois em Akbes, parece realmente que o Irmão Charles tenha aprendido a ler dois livros: as Escrituras - e muito especialmente o Evangelho - e seu próprio coração. Em uma época em que, mesmo nos mosteiros, as devoções eram preferidas à lectio divina, o Irmão Charles aprende a se imergir na escuta e na interpretação das Escrituras, das quais ele tirará todos os dias, e até o último dia de sua existência terrena, luz para seu caminho, seguindo esta regra fundamental retomada pela Dei Verbum: «A grande regra para interpretar as palavras de Jesus são seus exemplos. Ele mesmo é o comentário de suas palavras»8.
Muitos dos elementos fundamentais da sensibilidade espiritual do Irmão Charles têm suas raízes na tradição monástica beneditina e, muito especialmente, na escola cisterciense. A preferência absoluta pelos mistérios da vida de Jesus, e a contemplação de sua encarnação como forma de segui-lo, são fruto da escuta dos textos dos padres cistercienses que eram lidos durante as vigílias e no refeitório. Muitos dos temas e ênfases que são frequentemente apresentados como intuições originais do irmão Charles, na realidade, fazem parte de uma tradição que o Irmão Marie-Albéric respirou profundamente na Trapa e que ele, em seguida, expressou em escolhas completamente pessoais. Assim ele escreveu, em 24 de abril de 1897, a Raymond de Blic: «Eu deixei a Trapa depois de ter recebido a dispensa completa de meus votos, para encontrar em outro tipo de vida o que eu havia buscado na Trapa sem encontrá-lo lá». Em seguida, o Irmão Charles afirma: «Eu amo e estimo a Trapa»9.
Seria, portanto, muito interessante tentar encontrar os paralelos entre as intuições do Irmão Charles em sua meditação sobre a vida do Senhor Jesus - especialmente através das meditações dos Evangelhos em forma «escrita» que ele impôs a si mesmo - e os comentários de monges cistercienses como Bernardo de Claraval, Guerrico d’Igny, Isaac da Estrela, Guilherme de Saint-Thierry, Baudouin de Ford... Este é um grande desafio, pois esta pesquisa poderia conter muitas surpresas e talvez até conduzir a uma compreensão mais profunda do Irmão Charles, como parte de uma tradição fiel, mas viva, da qual ele tirou a força, a coragem e a serenidade das inovações que são exigidas dos monges e das monjas de nosso tempo.
Em uma declaração recente, o Abade Geral dos Trapistas nota que, ao longo do século passado, certas intuições profeticamente percebidas pelo Irmão Charles se tornaram comuns aos monges de hoje:
«As comunidades estão se tornando menos institucionais, vinculadas a relações pessoais mais do que formais, como vemos em comunidades e mosteiros menores»10.
Na linha da mais pura tradição cisterciense, o sonho do Irmão Charles é redescobrir uma vida cristã na qual seja dada grande importância a essa intimidade. Esta por sua vez, gera caridade e benevolência, que culmina em «indulgência terna e compassiva para com os pecadores, da qual tanto precisamos, sendo tão propensos à severidade para com os outros»11. A raiz distante desta caridade, porém, permanece uma atitude de intimidade orante, uma paixão do desejo e da imitação, que, na linguagem da época, é descrita como amor puro.
O Irmão Charles optou por se colocar no caminho dos outros para poder encontrá-los, conhecê-los e amá-los. Ele busca um lugar fronteiriço, muito antes de falarmos de «situações de fronteiras». Uma nota do Irmão Charles é muito esclarecedora aqui:
«Quem ousaria dizer que a vida contemplativa é mais perfeita do que a vida ativa ou vice-versa, já que Jesus conduziu ambas? Uma só coisa é verdadeiramente perfeita: fazer a vontade de Deus»12.
Certamente não é por acaso que Notre-Dame des Neiges conserva hoje a memória do Beato Charles de Foucauld, como se ele nunca tivesse deixado seu mosteiro ou como se tivesse voltado para lá depois de seu longo itinerário. Teria ele procurado outra coisa que não fosse permanecer «sob a guia do Evangelho»13, como diz São Bento em sua Regra, colocando-se na escola dos outros para aprender de todos a inesgotável arte do amor?
1. Carta a R. de Blic, 26 de março de 1908.
2. Meditação sobre o Antigo Testamento, Salmo 104.
3. Carta a H. de Castries, 14 de agosto de 1901.
4. Carta a H. de Castries, 14 de agosto de 1901.
5. Ibidem.
6. Ibid.
7. Carta a Louis de Foucauld, 12 de abril de 1897.
8. Meditação sobre o Evangelho, 199, Mc 6,7.
9. Carta a R. de Blic, 24 de abril de 1897.
10. Relação de Dom Eamon Fitzgerald ao Capítulo Geral da Ordem Cisterciense, de 14 de setembro de 2014, em Assis, Collectanea Cisterciensia, 76 (2014) 4, p. 339-348.
11. Ch. de Foucauld, Carta a Massignon, 15 de julho de 1915.
12. Ch. de Foucauld, Med. sobre o Evangelho, 194, vocação.
13. São Bento, Regra, prólogo.