Dom Matias Fonseca de Medeiros, osb
Monge da abadia do Rio de Janeiro (Brasil)

Dom Basílio Penido

(1914-2003)

 

 

I – Christo nihil praeponere (Nada preferir a Cristo)

PBasilioAssim que na tarde de 24 de novembro de 1961, Dom Basílio Penido recebeu da Nunciatura apostólica o decreto da Santa Sé nomeando-o abade-coadjutor da abadia de Olinda (Brasil), o jovem prior e vigário geral da abadia nullius1 do Rio de Janeiro, «não soube o que dizer»2. Inesperada, esta notícia comoveu-o profundamente! Monge feliz e homem de coração, Dom Basílio amava a sua comunidade, era amado pelos seus irmãos monges e não queria deixar nem o seu mosteiro nem a sua cidade natal onde a sua família vivia. Entretanto, o decreto não lhe deixava opção: devia obedecer e... partir! A sua intenção entretanto era dizer «não» uma segunda vez3.

Para apaziguá-lo, o seu abade, tendo ainda em mãos o documento romano, pediu-lhe que fosse diante do sacrário e que «se pusesse à escuta do bom Deus». Durante este momento de oração e também de angústia, duas palavras lhe vieram ao espírito: obediência e humildade! Antigo aluno dos jesuítas, aprendera com Santo Inácio a virtude de «obedecer como um cadáver»4; mas sabia também, como filho de São Bento, que «o primeiro degrau da humildade é a obediência sem demora; ela caracteriza aqueles que estimam nada ter de mais caro que Cristo». Oração cumprida, a alma em paz, tomou logo como divisa abacial: Christo nihil praeponere (Nada preferir a Cristo). A sucessão dos fatos mostraria que esta escolha não era somente coerente mas sobretudo consequente com tudo o que se iria passar durante o tempo do seu ministério como abade de Olinda (1962-1987) e presidente da Congregação brasileira (1972-1996). A partida para Olinda foi para ele «um verdadeiro sacrifício de Abraão».

Em 1966, pela primeira vez, viajou para Roma a fim de tomar parte do Congresso dos Abades da Confederação Beneditina, o primeiro após o Concílio Vaticano II. Graças às cartas circulares enviadas à sua comunidade de Olinda, de grande riqueza de deta-lhes, os leitores puderam acompanhar passo a passo o desenrolar do Congresso, pautado sobre a renovação da vida monástica na ótica do Concílio: um assunto nada simples ou fácil! Dom Basílio fez-se notar!

Nascido no Rio de Janeiro em 1914, viveu aí até à idade de seis anos quando o seu pai, nomeado adido militar da Sociedade das Nações, teve de mudar-se para Paris com toda a sua família. Muito dotado para as línguas, além do português, a sua língua materna, o pequeno José Maria (seu nome de batismo) dominava à vontade o francês, aprendido no colégio de Santa Cruz de Paris onde frequentou a escola primária; e, simultaneamente, o inglês em casa com a sua «nurse» britânica. Após fazer a sua primeira comunhão na paróquia parisience de Nossa Senhora das Graças de Passy, a sua família regressou ao Brasil após três anos de ausência.

Terminados os seus estudos no colégio de Santo Inácio, no Rio de Janeiro, o jovem José Maria entrou no noviciado dos jesuítas. Entretanto, a vivacidade do seu temperamento não correspondia às exigências da disciplina inaciana. Esgotado, deixou o noviciado e entrou na faculdade de medicina para, após seis anos, tendo obtido o seu doutoramento, fazer-se monge. Seguir as «observâncias monásticas» tal como eram na época, foi-lhe igualmente penoso. «Atingi o limite das minhas forças», dizia. E no entanto todas estas experiências o modelaram; sem nada perder da sua autenticidade e sem a menor mágoa, havia amadurecido!

Enquanto estudante de medicina, começou a frequentar a «Ação Universitária Católica», que reunia a juventude universitária católica, e que esteve na origem do «Instituto Superior de Estudos Católicos». Muito interessado pela renovação litúrgica e patrística, um bom número destes jovens entraram na vida religiosa e no clero secular.

Homem de comunicação fácil sempre cheio de entusiasmo, a sua cultura geral e muito ampla, aliada a uma grande simplicidade, fez dele, muito cedo, um verdadeiro «leader». Personalidade aberta e acolhedora, sedenta de tudo ver e compreender sem ser mundano, nenhum problema de ordem moral, política ou social lhe escapava.

A sua espiritualidade, profundamente ancorada nos Exercícios de Santo Inácio de Loyola e na regra de São Bento, não o fez esquecer outros autores espirituais que ele também apreciava: São João da Cruz, Santa Teresa do Menino Jesus, Charles de Foucauld, Thomas Merton.

Leitor apaixonado da literatura francesa, conhecia bem os escritos de Jacques Maritain, Paul Claudel, François Mauriac, Julien Green, Charles Péguy entre outros, como também Georges Bernanos, que se tornou seu amigo pessoal quando do exílio deste último no Brasil.

A renovação da Igreja, do pensamento teológico e sobretudo da vida monástica dos anos pós-conciliares encontraram nele uma ardente e fiel adesão. A prática desta renovação num mundo em mudança exigia muita sabedoria e prudência. Diante dos desafios que se apresentavam ele não hesitou, no momento certo, em fazer o que devia.

A sua capacidade de escuta e de diálogo com a comunidade permitiu-lhe, pouco a pouco, introduzir as reformas conciliares. Entre estas é preciso sublinhar a sua abertura ecumênica. Em 1966, acolheu em Olinda três irmãos de Taizé. Vivendo numa casa junto à abadia, os irmãos integraram-se bem na comunidade: tomavam parte em certos Ofícios litúrgicos, nas refeições comunitárias e no trabalho manual.

O cuidado dos pobres, que numa lamentável e aflitiva situação viviam à volta do mosteiro, não lhe escapava menos. Vastos terrenos da propriedade da abadia, com o consentimento da comunidade e das autoridades civis, foram doados aos mais desvalidos para que pudessem aí ter o seu domicílio. Assim nasceu em Olinda um novo bairro chamado até hoje «Vila São Bento».

Para uma "caminharem juntos", quando do Congresso dos abades de 1967, convidados por Dom Basílio, os abades e priores dos mosteiros
brasileiros presentes reuniram-se para refletir sobre o seu projeto de estabelecer laços mais fraternos e mais próximos entre as diversas comunidades no Brasil sob a regra de São Bento. Era preciso encontrar uma linguagem comum que pudesse exprimir o carisma monástico, a sua vocação e missão na sociedade e em face desta. Por medo de perder as suas próprias tradições5, os abades tiveram discussões «particularmente difíceis». Tendo compreendido que o objetivo principal deste reunião não era senão «fazer a unidade na diversidade, os superiores finalmente aceitaram o projeto de se reaproximar. A decisão foi fundar a Conferência de Intercâmbio Monástico do Brasil – CIMBRA. Dom Basílio foi eleito o primeiro presidente da organização.

 

II – In carcere eram (Eu estava preso)

O ano de 1964 marcou uma transição decisiva na vida política do Brasil e também da Igreja. A 31 de março, um golpe de estado impôs ao país uma ditadura militar que duraria vinte e um anos. Algumas semanas depois, Monsenhor Hélder Câmara tornou-se arcebispo de Olinda e Recife. Num primeiro momento, as relações do novo arcebispo com as autoridades no poder eram respeitosas, o diálogo era possível. Todavia, ao endurecimento do regime seguiram-se atos de repressão. Encarcerados os oponentes, tortura, perseguição política tornavam cada vez mais difíceis as relações entre ambas as partes. Graças às suas boas relações com alguns oficiais, Dom Basílio6 torna-se o intermediário entre Dom Hélder, franca e abertamente oposto a todo o tipo de violência, e o comando militar do Recife. Sempre do lado do arcebispo, de quem era amigo fiel e mesmo um confidente, cumpriu com sucesso esta missão tão complexa!

Homem de grande coragem – por vezes audacioso – durante estes anos obscuros, assim que a perseguição, seguida de prisão e tortura, tocou jovens estudantes universitários, não hesitou, correndo grandes perigos, em esconder alguns deles no mosteiro para em seguida facilitar a sua fuga e salvar as suas vidas!

Os prisioneiros políticos, jovens ou não, eram então muito numerosos. Como padre e médico (!) chegou a visitá-los regularmente na prisões. Antes de aí entrar sofreria toda a sorte de humilhações da parte dos agentes de polícia encarregados da vigilância. Suportava-os com uma paciência e uma resignação admiráveis. Quando das reuniões comunitárias, muito discretamente, de tempos em tempos relatava alguma coisa. A um irmão indignado que lhe perguntou como podia ele tolerar todos estes inconvenientes, dava com toda a simplicidade a seguinte resposta: «Santa Teresa do Menino Jesus dizia que “tudo é graça”: vê, Deus concedeu-me uma graça muito especial de poder assim tomar parte dos sofrimentos de Cristo na sua paixão; e depois, no dia do juízo final, é Jesus que me dirá: “Eu estava preso, e tu visitaste-me”». Dom Basílio foi sempre um homem de perdão e de misericórdia!

A sua cruz peitoral era em madeira com a sua divisa – «Christo nihil praeponere» – gravada nela. Um dia, quando de uma visita, um prisioneiro que, curioso, observava a cruz pediu-lhe que o deixasse vê-la de perto, sem nada dizer. Duas semanas depois, este jovem, que tinha algum conhecimento de marcenaria, em sinal de reconhecimento e de amizade, ofereceu-lhe, em nome dos seus companheiros de prisão e em seu próprio, uma nova cruz peitoral também em madeira, exatamente igual à original mas com uma nova divisa: «In carcere eram» («Eu estava preso»). Muito emocionado, a partir de então dom Basílio começou a utilizá-la.

O amor de Cristo preferido a qualquer outro era a única grande paixão de toda a sua vida! A sua profunda ligação à Igreja e aos irmãos, o seu incansável combate por «aqueles que têm fome e sede de justiça», sobretudo os pobres e os prisioneiros, os seus firmes compromissos para a renovação de uma vida monástica autêntica e fiel à tradição, mas ao mesmo tempo aberta e acolhedora aos valores da modernidade, testemunharam sem sombra de dúvida, a sua fidelidade a Cristo e ao Evangelho. Os últimos anos da sua vida, já doente, passou-os no seu mosteiro de profissão. É lá que ele regressa a Deus a 2 de junho de 2003 com a idade de 88 anos. Na alegria e na paz de Cristo ressuscitado, abriu novos caminhos.

 

1. Nome dado pelo Código de Direito Canônico de 1917 às atuais abadias territoriais. Em 2002, a Santa Sé suprimiu este título e privilégio à abadia do Rio de Janeiro.

2. Certas expressões entre aspas foram pronunciadas por Dom Basílio quando descrevia aos seus noviços algumas passagens da sua vida.

3. Postulado abade do Rio de Janeiro uma primeira vez, em 1948, recusou firmemente esta eleição, porque «era demasiado jovem, sem qualquer experiência», segundo as suas próprias palavras. Tinha 34 anos.

4. «Perinde ac si cadaver esset»: expressão latina das antigas Constituições dos jesuítas, que ele muito gostava de repetir em conferências dadas aos noviços sobre o valor da obediência.

5. Além dos mosteiros da Congregação brasileira, um bom número de mosteiros pertenciam a outras Congregações.

6. O seu pai, já falecido à época, era almirante da Marinha brasileira onde três dos seus sobrinhos eram oficiais superiores.